Religião-Filosofia-História



Em uma abadia beneditina nos Alpes marítimos italianos, em 1327, chegam Frei Guilherme de Baskerville, um franciscano que se declara discípulo de Roger Bacon e amigo de Guilherme de Ockham, e o jovem Adso de Melk, noviço da ordem de São Bento. Frei Guilherme vinha como precursor da embaixada que o imperador Luís da Baviera tinha enviado para conferenciar com os representantes do Papa João XXII.

Já os nomes escolhidos por Eco para esses personagens são significativos. O nome Guilherme de Baskerville evoca, evidentemente o famoso conto policial de Conan Doyle O Cão dos Baskerville, o que associa o investigador dos crimes da Abadia, Frei Guilherme, a Sherlock Holmes. Tanto mais que seu acompanhante e discípulo, Adso, tem um nome consonante com o do Dr. Watson.

Mas não são apenas os nomes que lembram Sherlock. A própria descrição da pessoa de Frei Guilherme feita por Eco tem muito a ver com a figura do famoso detetive. Mais: são coincidentes até à cópia. Vejam-se, em paralelo, os textos de Eco e de Conan Doyle:

Texto de Eco

Texto de Conan Doyle

"Era pois a aparência física
de Frei Guilherme de tal porte
que atraía a atenção do
observador mais distraído.
Sua estatura superava a de
um homem normal e era tão
magro que parecia mais alto.
Tinha olhos agudos e penetrantes,
o nariz afilado e um tanto adunco
conferia ao rosto
a expressão de alguém que vigia,
salvo nos momentos de torpor,
dos quais falarei. Também o queixo
denunciava nele uma vontade firme. (...)
vi-lhe sempre as mãos cobertas
pela poeira dos livros,
pelo ouro das miniaturas ainda frescas,
pelas substâncias amareladas
que tocara no hospital de Severino.
Dava a impressão de não poder pensar
a não ser com as mãos"(R.26-27-28).
"Sua energia parecia inexaurível,
quando o colhia um
excesso de atividade"(R. 26).
"Até seu físico era tal

que despertava a atenção do
mais descuidado observador.
Quanto a sua estatura, passava
de um metro e oitenta, mas era tão magro que parecia mais alto ainda.
Seus olhos eram agudos e penetrantes,
e seu nariz delgado e aquilino,
acrescentava às suas feições
um ar de vigilância
e decisão.
Também o queixo, quadrado e forte,
indicava nele um homem resoluto. (...)
Suas mãos andavam
invariavelmente salpicadas de tinta
e manchadas por substâncias químicas,
(...)

"Nada era capaz de ultrapassar
a sua energia quando era
tomado por um excesso de atividade"

(Conan Doyle, Um estudo em vermelho, Círculo do Livro, São Paulo, p. 17).

É claro que Eco quis fazer de seu Frei Guilherme uma cópia de Sherlock Holmes. O leitor ingênuo ficará encantado por ter encontrado um "plágio" de Eco, e pensará que a trama policial constitui o que há de mais importante em O Nome da Rosa. Quanta alegria na ilusão do entendimento superficial!

Por outro lado, o franciscano Frei Guilherme evoca Guilherme de Ockham. Nas Postille al Nome della Rosa, diz Eco: "Eu precisava de um investigador possivelmente inglês (...) que tivesse um grande sentido de observação e uma particular sensibilidade para a interpretação dos indícios. Estas qualidades não se encontram senão no âmbito franciscano, e depois de Roger Bacon (...) um franciscano do século XIV e inglês, não podia ignorar a disputa sobre a pobreza, especialmente se era amigo, seguidor ou conhecedor de Ockham (diga-se de passagem que, a princípio, eu tinha decidido que o investigador devia ser o próprio Ockham, depois abandonei a idéia, porque humanamente o Venerável Inceptor me é antipático)"(P.25)

O nome de Adso, por sua vez, pode muito bem ser derivado do verbo latino Adsum, que significa estar presente. É através de Adso - da testemunha presente aos fatos- que Eco narra sua história. Apesar de tudo ver, Adso - di-lo Eco - nada compreenderá do que presenciou, nem mesmo ao tronar-se velho. O propósito declarado de Eco foi "fazer compreender tudo através das palavras de alguém que não compreende nada"(P.32)

Estes dois personagens centrais são as máscaras pelas quais se expressa o autor da obra. Adso é a boca, enquanto Frei Guilherme é o pensamento de Eco, ou pelo menos o pensamento para o qual vão suas simpatias. "Uma máscara,, era disso que eu precisava"(P. 20).

Na Abadia - palco do romance- ocorrem vários crimes seguidos, aparentemente causados por razões passionais. Monges dominados por vícios contrários à natureza aparecem assassinados de modo misterioso.

Pouco a pouco, se faz compreender que o homossexualismo não foi o motivo mais profundo dos crimes. Alguém se aproveitou da paixão sodomítica dos monges, para obter um misterioso livro guardado secretamente no local mais recôndito da biblioteca da Abadia, onde somente o abade, o bibliotecário e seu auxiliar direto tinham direito de entrar. A existência desse livro - o II livro da Poética de Aristóteles, que trataria do riso- era desconhecida pela maioria dos monges. Apenas alguns sabiam dele, mas estavam proibidos de lê-lo e não podiam alcançá-lo.

Insinua-se ainda que os crimes seguem uma ordem apocalíptica. Em cada um dos crimes, algumas circunstâncias coincidem com as palavras pelas quais as sete trombetas do Apocalipse anunciam as catástrofes do final dos tempos.

O primeiro monge a ser encontrado morto é o miniaturista Adelmo de Otranto. Seu corpo aparece despedaçado ao pé da muralha, em meio ao granizo e à neve, como se tivesse sido lançado do alto da torre da biblioteca. Ora, a primeira trombeta do Apocalipse proclama: "E o primeiro anjo tocou a trombeta e formou-se uma chuva de granizo e fogo misturado com sangue que foi atirada sobre a terra". (Apoc.VIII,7).

O monge morto era um jovem de aparência um tanto feminina, cujo espírito se comprazia em traçar iluminuras grotescas, nas quais invertia a ordem natural, apresentando um mundo monstruoso e invertido. Nas margens dos saltérios, ele costumava pintar estranhas figuras híbridas, monstros, cuja descrição lembra as pinturas do adamita e alquimista gnóstico Jeronimus Bosch. "Tratava-se de um saltério às margens do qual se delineava um mundo ao avesso em relação àquilo com que se habituavam nossos sentidos. Como se à margem de um discurso, que por definição é o discurso da verdade, se desenrolasse, profundamente ligado a ele, um discurso mentiroso sobre um universo virado de cabeça para baixo"(R.97). O miniaturista Adelmo não poupava nem mesmo o próprio Deus em suas iluminuras blasfemas. Num Livro de Horas, as iniciais das palavras com que os anjos cantam a Santíssima Trindade -Sanctus, Sanctus, Sanctus- formavam três macacos se entrebeijando. Três bocas simiescas num só ósculo impudico e obsceno. O narrador insinua, pois, que Adelmo não só tendia à inversão sexual, como também à inversão metafísica, própria da Gnose. (R.98).

Os diálogos subsequentes logo apontam como suspeito da morte de Adelmo o monge Berengário, ele também de aspecto feminóide: "seus olhos - como os de Adelmo - pareciam os de uma mulher lasciva"(R.104). Berengário era o auxiliar do bibliotecário, e, como tal, tinha livre acesso à misteriosa biblioteca da Abadia e a seus livros proibidos.

Nos dias posteriores, as mortes misteriosas se sucedem. O monge Venâncio de Salvamec é encontrado morto, dramaticamente metido num tonel no qual se guardara o sangue de porcos. Ora, a segunda trombeta do Apocalipse diz que a terça parte do mar se converterá em sangue (Cfr. Apoc. VIII,8).

Depois, é a vez de Berengário de Arundel: ele é descoberto nu, dentro de uma banheira cheia de água, aparentemente afogado, mas com os dedos e a língua enegrecidos por um veneno potente. E a terceira trombeta do Apocalipse fala das fontes das águas transformadas em absinto.(Cfr.Apoc.VIII,10-11).

A quarta trombeta do Apocalipse anuncia que "foi ferida a terça parte do sol, e a terça parte da lua e a terça parte das estrelas"(Apoc. VIII,12).E a quarta vítima - o monge herborista Severino- é encontrado com o crânio esfacelado por ter sido golpeado com uma esfera armilar astronômica, que fica com seus aros de bronze amassados.

No dia seguinte, Malaquias de Hidelsheim, que com bibliotecário tinha as chaves da biblioteca e era o encarregado de fechá-la ao cair da noite, em pleno coro da igreja, durante a salmódia das horas canônicas, cai dramaticamente morto por envenenamento. E a quarta trombeta apocalíptica profetiza: "E vi uma estrela cair do céu sobre a terra, e foi-lhe dada a chave do poço do abismo (...) E abriu o poço (...) e saíram gafanhotos (...) com o poder dos escorpiões"(Apo.c. IX,1-5).

A sexta vítima acaba morrendo no desenlace da intriga, durante o incêndio da biblioteca. É o próprio abade. ora, a sexta trombeta do Apocalipse fala de fogo.

Finalmente, a sétima trombeta. O anjo da última trombeta ordena ao apóstolo: "Toma o livro e devora-o, e ele fará amargar o teu ventre, mas na tua boca ele será doce como o mel. E tomei o livro da mão do anjo e devorei-o; e na minha boca era doce como o mel; mas depois que o devorei o meu ventre ficou amargurado"(Apoc. X, 9-10). Paralelamente a esse texto, a sétima vítima, o monge cego, Jorge de Burgos que envenenara o livro proibido, para que ele não fosse apoderado pelo racionalista Frei Guilherme de Baskerville, come o livro e morre envenenado por ele.

Como se vê, Eco faz "a série de delitos seguir o ritmo das sete trombetas do Apocalipse"(R.528), para que os leitores ingênuos e imaginativos - tanto quanto o racionalista Frei Guilherme- se equivoquem. "Fabriquei um esquema falso para interpretar os movimentos do culpado e ele se adaptou a esse esquema. E foi exatamente esse esquema falso que me colocou na sua pista" (R.473), diz Frei Guilherme. E Eco diz nas Postille que sua obra é "um romance policial onde se descobre muito pouco, e o detetive acaba derrotado."(P.45).

Os crimes ocorridos não explicam o real mistério da Abadia, mas são explicados por ele. Assim também, como já vimos, não são os eventos quotidianos que dão a chave da História. Pelo contrário, é a História que neles se reflete e os explica.

Não é o esquema apocalíptico que permite explicar os fatos criminosos da Abadia, nem seria o Apocalipse (livro profético que revela a História futura da Igreja e do mundo), que permitiria compreender a História, diz Eco. Assim como Frei Guilherme se equivocou ao seguir o esquema apocalíptico, equivocaram-se também, por exemplo, os Fraticelli ao tentarem compreender a História seguindo a interpretação de Joaquim de Fiore e de João Pedro Olivi. E a alusão aos Fraticallei começa a introduzir o leitor no segundo labirinto de O Nome da Rosa, no labirinto religioso.

Abandonando então os caminhos tão equívocos dos eventos, Eco leva os leitores, um pouco menos simples, a seguirem outros falsos indícios. É assim que a figura mística de Ubertino di Casale e a do monstruosos e babélico dolciniano Salvatore abrem, para os leitores, as portas do confuso labirinto das heresias medievais.

 

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    Para citar este texto:
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MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/labirintos4/
Online, 29/03/2024 às 04:54:18h