Religião-Filosofia-História



Nas suas Postille (P. 65), Eco afirma que "cada um tem uma idéia própria, geralmente deturpada, da Idade Média". Uma dessas idéias deturpadas, que o romance de Eco ajuda a deturpar ainda mais, é a respeito da luta ortodoxia-heresia nessa época. Não cremos - muito pelo contrário - que O Nome da Rosa, e muito menos a película de mesmo nome, tenham contribuído para desfazer as imagens populares deformadas que circulam sobre a Inquisição e as heresias medievais. Pelas páginas do romance perpassam fugitivamente Espirituais, Dolcinianos, Patarinos, Cátaros, Pastoureaux, Irmãos do Livre Espírito, Beguinos, Flagelantes, Arnaldistas, etc. Cada um deles com uma teoria própria, uma mais descabelada que a outra, de modo a introduzir o leitor comum num torvelinho de idéias, nomes, movimentos vislumbrados à luz fantasmagórica das labaredas da Inquisição. Francamente não é assim que se há de fazer compreender objetivamente o problema. *

[Ao leitor que deseje conhecer de modo mais objetivo tais movimentos, aconselhamos ler os diversos livros especializados que citamos na pequena bibliografia no final deste trabalho, Particularmente as obras de Dennis de Rougemont, Norman Cohn, Nachman Falbel, Marjorie Grieves, Steve Runciman, M. de Roquebert, e Arno Borst.]

No final da Idade Média, multiplicaram-se as seitas e movimentos religiosos na mesma proporção em que se dava o desenvolvimento urbano e comercial. Norman Cohn, em seu livro The porsuit of the Milenium" mostra que - ao contrário do que em geral se pensa e do que largamente se propaga e que Eco repete - o aparecimento e crescimento das seitas não está ligado à miséria, mas sim a um desenvolvimento econômico rapidamente crescente, que produz uma desestruturação da sociedade tradicional.

Entre todas as heresias medievais, destacou-se uma, que passou a ser tida como que a heresia por excelência: o catarismo. Cátaro e herege passaram a ser sinônimos. O Catarismo teve tal expansão que ameaçou o domínio da Igreja Católica, na Europa. Os Cátaros dominaram todo o Languedoc, a Provença, e tiveram muita influência no nordeste da Espanha, na Lombardia e no centro da Itália, na atual Yugoslávia e nos Bálcãs. Temporariamente vencidos pelos cruzados de Simão de Montfort e de Luís VII, combatidos pela Inquisição, os cátaros procuraram ocultar-se para sobreviver. Difundiram então suas idéias, de modo velado, através de obras poéticas. Muitas poesias trovadorescas e dos poetas do "Dolce Stil Nuovo" eram, de fato, obras cripto e filo cátaras. (Cfr. Michel de Roquebert, L'Épopée cathare, as obras de Réné Nelly e de Arno Borst sobre os Cátaros, bem como o livro de Luigi Valli Il linguaggio segretto di Dante e dei fedeli d'Amore e a obra L'Amour et l'Occident de Dennis de Rougemont).

No século XIV, a derrocada do poder papal, consumada pelo atentado de Anagni, pelo cativeiro de Avignon e, depois, no século XV, pelo Grande Cisma do Ocidente, permitiu a proliferação dos movimentos sectários e heréticos nas sociedades desestruturadas pelo rápido progresso urbano e econômico.

A crise doutrinária foi particularmente aguda no seio da Ordem dos franciscanos, e principiou quando o próprio São Francisco ainda vivia. A questão fundamental em debate dizia respeito ao voto de pobreza e ao direito de propriedade dos monges e da própria Igreja. Alguns pretendiam que a pobreza pregada por São Francisco devia ser absoluta, não podendo o frade ter, por exemplo, duas túnicas, nem que esta única túnica permitida ultrapassasse os joelhos, pois uma túnica mais longa seria já um luxo supérfluo. Aplicando essa idéia radical de pobreza à Igreja, tais franciscanos diziam que assim como Cristo fôra absolutamente pobre - esquecendo-se de que o evangelho faz referência a uma bolsa de Cristo, da qual Judas cuidava - assim também a Igreja não deveria possuir absolutamente nada. Aceitando a chamada doação de Constantino (qual se acreditava ter ela sido), a Igreja teria se corrompido e se transformado na meretriz de Babilônia de que fala o Apocalipse. Os hereges pretendiam ainda construir uma nova sociedade, em que não haveria mais nem ricos nem pobres.

Inspirando-se nas doutrinas apocalípticas e quiliásticas do abade Joaquim de Fiore (1135-1202), esses franciscanos seguiram as teses de Frei Gerardo di Borgo de San Donino e de Frei Pedro João Olivi (1248-1298), e esperavam para breve o Reino de Deus na terra. Nesse Reino do Espírito santo, isto é, no Reino do Amor, todos os homens seriam bons, não havendo mais nem propriedade, nem lei, porque tudo seria regido pelo amor (Cfr. Nachman Falbel, op. cit. pp. 123-128-351; cfr. também Marjorie Reeves, op. cit.).

Como se vê, essas teorias milenaristas são muito semelhantes às propugnadas hoje pelos corifeus da chamada Teologia da Libertação, bem como pelos partidos totalitários e por seitas pentecostais.

A crise doutrinária nos ambientes franciscanos deu origem a várias seitas mais ou menos extremadas. A mais moderada delas - moderada apenas com referência a outras seitas ainda mais exageradas - a seita dos Espirituais, teve por líderes principais Ângelo Clareno e Ubertino di Casale. Eles defendiam a tese de que Cristo e os apóstolos não tiveram propriedade alguma, de que a regra dos franciscanos era a própria lei evangélica, e que a Igreja não poderia ter propriedades. A tese da pobreza absoluta de Cristo foi condenada como herética pelo Papa João XXII na Constituição Apostólica Cum inter nonullos, em 1323 (Denzinger U. 425). Ubertino foi um místico ardoroso que defendeu as teses condenadas de Frei Pedro João Olivi e as dos Espirituais no tratado De paupertatis Christi. Ao mesmo tempo, porém, ele atacava os franciscanos mais extremados que ele mesmo - os chamados Fraticelli - especialmente o grupo liderado primeiro por Gerardo Segarelli e posteriormente por Fra Dolcino.

Os Dolcinianos eram antinomistas. Viviam em promiscuidade sexual e em comunidade de bens. Eram rebeldes às autoridades eclesiásticas e civis.

Beguinos e Begardos eram os nomes dados especialmente aos membros da Ordem Terceira de São Francisco que defendiam as teses de Olivi.

As idéias do franciscanismo sectário eram bem vistas por todos os gibelinos e imperiais partidários da supremacia do Império sobre o Papado, do Estado sobre a Igreja.

Os grandes teólogos do franciscanismo sectário - Guilherme de Ockham, Marsílio de Pádua, Jean de Jandum - apoiaram a luta do Imperador Luís da Baviera contra o Papado. Foram tais teólogos que lançaram as bases teóricas do Estado moderno, laico, popular e tendente ao totalitarismo.

A essas correntes sectárias se misturavam ou se opunham outras heresias de caráter gnóstico, como a dos Irmãos do livre Espírito, de tendências eckhartianas, os Pastoureaux, os Flagelantes, etc. Hereges místicos e hereges racionalistas, ainda que não concordantes entre si, aliavam-se contra o inimigo comum, a Igreja Católica e seu Papa. "Era como um lodo que escorria pelas veredas do nosso mundo"(R.222), "assim como o esterco escorria, no meio da neve, pelas escarpas da montanha da Abadia"(R. 37 e 38).

Todas estas lutas teológicas e políticas formam o fundo de quadro do romance de Eco. Nesse fundo, algumas figuras aparecem misteriosamente esfumadas (Fra Dolcino), ou se destacam para encaminhar o leitor por caminhos falsos na tentativa de solucionar o mistério da Abadia.

Frei Guilherme, Adso e o leitor enganado entram nesse labirinto das heresias, ao penetrarem na igreja abacial. Na porta, eles se detêm contemplando o tímpano esculpido, onde se retrata o juízo final e, nele, a História da Abadia. Adso cai então num êxtase do qual é despertado pelo grito distintivo dos dolcinianos ou Pseudo-Apóstolos: "Penitenziagite" (palavra com que os Dolcinianos anunciavam o fim próximo deste mundo e a chegada dos tempos apocalípticos com a instauração do Reino messiânico). Quem grita é a figura monstruosa, babélica e pitoresca de Salvatore. Figura monstruosa no rosto e na alma. Figura babélica por sua linguagem, mistura de muitas línguas de então (língua d'oc, latim macarrônico, italiano, francês, catalão, português, espanhol), assim como o seu pensamento era um aranzel disparatado onde relampagueavam os delírios de todas as seitas.

Entrando na igreja abacial, Frei Guilherme se encontra com o líder dos Espirituais, Ubertino di Casale, que, fugindo da perseguição movida pelo Papa João XXII contra sua seita, encontrara refúgio entre os beneditinos. No romance, Eco faz Ubertino levar consigo para a Abadia dois outros frades que haviam se envolvido nas aventuras delituosas dos Dolcinianos, no Piemonte, os frades Remígio de Voragine, que se tornou o provedor da Abadia, e Salvatore.

No embate entre racionalistas e místicos evocado pelo romance, Ubertino é apresentado com certa simpatia, embora também como inimigo claro do racionalismo de Frei Guilherme. Eco lembra que este célebre líder dos Espirituais se imaginara, um tempo, transformado na penitente Maria Magdalena (R.71), e o faz ter atitudes ambíguas, como, por exemplo, quando acaricia o jovem Adso. Entre seu exaltado amor místico pela Virgem Maria e o amor carnal desenfreado dos Dolcinianos quase não se vê diferença. Eco faz Adso insinuar a tese absurda de que a sensualidade e o misticismo têm a mesma raiz, o que torna muito semelhantes santos e hereges, virgens e meretrizes.

Ubertino se manifesta no romance como adverso à razão. Apesar de Ockham ter sido aliado político dos Espirituais em sua luta contra o Papado, Eco monta este diálogo, no qual se vê claramente para que lado pendem as simpatias do autor do romance.

Falando de Ockham, diz Ubertino a Frei Guilherme :

- "Não me agrada. Um homem sem fervor, todo cabeça, nada coração."

- "Mas é uma boa cabeça", contesta Frei Guilherme.

- "Pode ser, mas o levará ao inferno".

- "Então eu o encontrarei lá embaixo, e discutiremos Lógica". (R.74).

Contra o nominalismo racionalista de Frei Guilherme, Ubertino argumenta: "Certas coisas se sentem com o coração. Deixa falar o teu coração, interroga os rostos, não escuta as línguas..."(R.79-80). Ele lamenta que "os mestres de Oxford tenham ensinado Frei Guilherme a idolatrar a razão, "minguando as capacidades proféticas do teu coração"(R.83). E o aconselha: "Joga fora os teus livros". Ao que ironicamente responde Frei Guilherme: "Guardarei apenas o teu"(R.83).

Entretanto, embora de tendências tão opostas, Ubertino tem pelo racionalista Frei Guilherme um afeto terno. Por seu lado, também o frio nominalista inglês manifesta, nas atitudes, uma grande ternura pelo ardoroso místico.

Essa atração mútua entre elementos de tendências antagônicas repetir-se-á na relação entre o místico cego e assassino Jorge de Burgos e o frio racionalista Guilherme de Baskerville, que, durante todo o romance, agem como "dois homens, a postos para uma luta mortal, (que) se admiram reciprocamente, como se cada um tivesse agido apenas para obter o aplauso do outro" (...) "cada um dos dois interlocutores marcando, por assim dizer, misteriosos encontros com o outro, cada um aspirando secretamente a aprovação do outro que temia e odiava"(R.531). Estranha atração dos contrários que lembra as idéias alquímicas e gnósticas da igualdade e atração dos opostos, tal qual as repete a dialética marxista.

As misteriosas andanças e palavras do Dolciniano Salvatore, as intrigantes coincidências das circunstâncias dos crimes com as palavras anunciadas pelas sete trombetas do Apocalipse - livro tào caro e fundamental ao pensamento dos Espirituais e Fraticelli - levam o leitor a lançar suas suspeitas sobre os hereges da Abadia, como chave e solução para os crimes que lá se dão. Simbolicamente, isto significa que os crimes da História seriam explicados pela revolta herética contra a ortodoxia.

O próprio abade Abbone impele explicitamente Frei Guilherme e o leitor a entrarem nesse labirinto religioso pois, ao tratar do problema cátaro e dos hereges franciscanos, diz ele a Frei Guilherme: "Falei sobre essas coisas porque penso que aí há uma relação, entendeis? Uma relação possível, ou seja, que os outros podem estabelecer uma relação entre os crimes que aqui ocorreram e as teses de vossos confrades"(R.182). Note-se que Abbone não afirma haver de fato essa relação, mas sua possibilidade, isto é, ser possível a alguém levantá-la.

O jovem Adso de Melk, atraído pelo mistério que envolvia o nome de Fra Dolcino, interroga Salvatore que lhe fala dos estranhos grupos sectários que freqüentou. Informa-se com Ubertino a respeito da 'mala pianta'dolciniana e procura saber como distinguí-la da erva boa. Lê na biblioteca uma história de Fra Dolcino. Recorda então a execução de um herege na fogueira, em Florença, que se comportara como um mártir. Adso, confuso, já não tem mais noção do certo e do errado, do avesso e do direito. Os fatos da vida religiosa lhe parecem tão equívocos quanto o saltério iluminado com as iluminuras de Adelmo, nas quais aparecia um mundo "up side down". Onde a verdade? Onde o erro? Adso vai então indagar de seu mestre, Frei Guilherme, ex-inquisidor, acerca de como distinguir a ortodoxia da heresia, a verdade do erro, o bem do mal, a santidade do vício.

Para ilustrar seu pensamento, Frei Guilherme se socorre de uma imagem. "Pensa num rio, denso e majestoso, que corre por milhas e milhas entre robustas margens, tu sabes onde está o rio, onde a margem, onde a terra firme. A um certo ponto o rio, por causa do cansaço, porque correu por muito tempo e muito espaço, porque se aproxima do mar, que anula em si todos os rios, não sabe mais o que seja. torna-se o próprio delta. Permanece talvez um braço maior, mas muitos se espalham em todas as direções, e alguns confluem novamente uns nos outros, e não sabem mais o que é a origem de que, e às vezes não sabemos que é o rio ainda, e o que já é o mar...(...).

"O corpo da Igreja, que foi por séculos o corpo da sociedade inteira, o povo de Deus (Sic!), tornou-se muito rico e denso, e arrastou consigo as escórias de todos os países que atravessou, e perdeu a própria pureza. Os braços do delta são, se quiseres, outras tantas tentativas do rio de correr o mais rápido possível para o mar, ou para o momento da purificação. Mas a minha alegoria era imperfeita, servia só para dizer-te como os braços da heresia e dos movimentos de renovação, quando o rio não mais os detém, são muitos e se confundem. Podes também acrescentar à minha péssima alegoria a imagem de alguém tentando reconstruir à viva força as margens do rio, mas sem conseguir. E alguns braços do delta são aterrados, outros reconduzidos por canais artificiais ao rio, outros ainda são deixados a correr, porque não se pode conter tudo e é bom que o rio perca parte da própria água se quer manter-se íntegro em seu curso, se quer ter um curso reconhecível.

"Entendo cada vez menos", exclama Adso desolado"(R.231-232).

Entendemos cada vez mais.

Pouco antes, Frei Guilherme se confessara cético até mesmo com relação à sua própria filosofia (R.230), posição que coincide com a de Eco e de sua querida semiótica. Agora, por essa alegoria, ele diz que a distinção entre a Igreja Católica e as seitas heréticas que dela se separaram é apenas material. O rio -a Igreja- e os canais dela derivados -as seitas- têm a mesma água e correm todas, ainda que por caminhos diversos, para o mesmo e único fim: o mar - Deus- no qual todas as distinções são anuladas.

Para ele, a causa da corrupção da Igreja teria sido o seu enriquecimento, isto é, como diziam os gibelinos e os hereges do fim da Idade Média ou do século XX, a chamada doação de Constantino. A Igreja constantiniana se tornara rica, material, corrupta, perdendo a sua pureza e seu caráter espiritual. Por isso, muitos que tomavam consciência disso, se separavam do canal principal para chegarem mais depressa, e mais puros, ao mar. É o que diziam fazer as seitas heréticas. Estes canais - as seitas - se entrecruzam e se confundem repetindo as idéias uns dos outros, palmilhando os mesmos desfiladeiros e os mesmos pântanos. Outros - os inquisidores - tentam detê-los, reconduzi-los ou aterrá-los, utilizando a força, o braço secular, a tortura e a morte. Seu labor seria, porém, vão, e seu êxito apenas parcial.

Como se vê, Frei Guilherme defende em sua alegoria:

1-Um ecumenismo largo, pois, no fundo, todas as religiões seriam iguais;

2- A tese da corrupção da Igreja em certo momento de sua história;

3- A idéia de que a Igreja deve ser pobre, espiritual, e não dogmática;

4- A idéia de que o labor da Inquisição na defesa da ortodoxia foi mau e inútil.

O erro da mentalidade inquisitorial seria o de crer numa verdade objetiva, da qual a Igreja teria o monopólio. Por isso, quando Adso diz que "o Corão, a bíblia dos infiéis, [é] um livro perverso", Frei Guilherme semioticamente o corrige dizendo que o Corão é "um livro que contém uma sabedoria diferente da nossa"(R.360).

Segundo erro dessa mentalidade inquisitorial seria o de crer que só a Igreja é santa, que os hereges só podem agir mal e que os crimes são os efeitos naturais da heresia. Daí a guerra feroz e injusta que a Inquisição movia contra os hereges, na vã tentativa de impedir que o rio se dividisse, ao aproximar-se da foz.

Como figura símbolo da mentalidade inquisitorial, Eco apresenta Bernard Guy que, no fundo, seria tão criminoso - ou mais - do que o dolciniano Remígio, por ele julgado iniquamente. O famoso autor do "Manual do Inquisidor e o herege dolciniano que ele julga, por mentalidade, são gêmeos. Inimigos e iguais. Eco utiliza então o próprio interrogatório-modelo inquisitorial, escrito por Bernard Guy para ilustrar a malícia com que os hereges iludiam as questões colocadas pelos inquisidores, para comprovar a malícia do grande inquisidor. (R.423-424 e Bernard Guy, Manuel de l'Inquisiteur, Les belles lettres, edição bilingüe latim-francês, Paris, 1964,pp.73-75).

Assim como o místico e o racionalista são descritos como idênticos aos mártires na morte, assim como os santos são apresentados como praticantes das mesmas ações dos mais impudicos antinomistas, assim também o inquisidor seria idêntico ao herege. Por isso se diz que Fra Dolcino "fez coisas insensatas porque pôs em prática o que muitos santos tinham pregado"(R.44). E mais: "Um ar de família emanava nos dois campos adversos dos santos que pregavam a penitência e dos pecadores que a punham em prática"(R.145). "A raiz dos seus pecados [dos hereges] é a mesma raiz da santidade"(R.535). "Há pouca diferença entre o amor dos serafins e o ardor de Lúcifer, porque sempre nascem de um acender extremo da vontade" (R.76).

Aplicando o princípio da dialética de que os contrários são iguais, prova-se qualquer coisa. Até que o fogo é frio.

O dialético Frei Guilherme diz: "Quando falo com Ubertino, tenho a impressão que o inferno seja o paraíso visto do outro lado"(R.85).

Todas estas citações demonstram que Frei Guilherme-Eco tem um pensamento dialético. É natural então que no romance se faça a heresia equivaler à ortodoxia, e o inquisidor ao herege. Declara Frei Guilherme: "Há pouca diferença entre a fé mística [e ortodoxa] e a fé distorcida dos hereges" (R.149).

Ortodoxia e heresia seriam valores relativos e dialeticamente antitéticos. "Cada um é herege, cada um é ortodoxo, não é a fé que um movimento oferece que conta, conta a esperança que propõe"(R.237). E assim como, posta a tese, ela gera automaticamente a antítese, assim heresia e ortodoxia não poderiam existir uma sem a outra, porque uma gera a outra. "São os inquisidores a criar os hereges"(R.68). É o Inquisidor que inventa o Herege, síntese e encarnação de todo o mal, e com isso o Inquisidor dá uma solução completamente falsa, segundo Eco, ao mistério da História. Como se vê, é a dialética marxista aplicada ao problema religioso.

Por tais razões, Eco faz o Inquisidor Bernard Guy defender a tese de que todos os crimes ocorridos na Abadia teriam sido praticados por um herege, isto é, de que todos os crimes da História do mundo seriam fruto das heresias. E como os crimes da Abadia foram cometidos por um pretenso defensor da ortodoxia...

De modo simplista, Bernard Guy, apresentado por Eco como um homem de 'hipócrita indulgência", de "gélida ironia" e de "impiedosa severidade", declara, ao interrogar e julgar iniquamente o herege dolciniano Remígio de Voragine :

"Corrompido no íntimo de tua alma pelas práticas que aprendeste na seita imunda, és culpado por desordens contra Deus e os homens perpetradas nesta Abadia, por razões que ainda me escapam, mas que não precisarão sequer ser esclarecidas de todo, uma vez que se tenha demonstrado luminosamente (como estamos fazendo) que a heresia daqueles que pregam a pobreza contra os ensinamentos do senhor Papa e de suas bulas, não leva senão a obras criminosas"(R.433-434. O sublinhado é nosso).

Aquele que pretende explicar os crimes do mundo como efeito das seitas heréticas têm que fazê-lo sem dar as razões, e mesmo, sem querer buscá-las. A luta heresia contra ortodoxia nada prova, segundo Eco. O Inquisidor pode até queimar o herege, mas ele nem explica, nem detém os crimes e a História do mundo. A cosmovisão inquisitorial é, segundo o autor de O Nome da Rosa, um sonho delirante ateador de fogueiras criminosas.

A verdadeira solução não estaria então no labirinto religioso. Frei Guilherme abre os olhos do noviço Adso, mostrando-lhe que se há algo em comum a todas as heresias, se um sectário é tão parecido com outro sectário, se se passa de uma seita para outra com tanta facilidade, é porque, subjacente à heresia, há outro problema mais fundo: o econômico. E é o que afirmam Marx e a Teologia da Libertação.

 

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Online, 16/04/2024 às 15:57:28h