Política e Sociedade

Discussão do Indiscutível
Paulo Miranda


O Congresso Nacional está agitado. Fervilham os meios de comunicação. Institutos de pesquisa mentem ou distorcem a verdade. Personalidades pronunciam-se. O clero, salvo honrosas exceções, se omite.

Nada de novo. O Brasil discute, mais uma vez, o aborto.

Tramita em nosso legislativo federal projeto de lei que obriga os hospitais públicos a fazerem abortos gratuitamente, nos casos permitidos pelo Código Penal.

Em torno desse projeto, alvoroçam-se as figuras de sempre, novos Herodes, velhos conhecidos, incansáveis defensores da morte de inocentes.

Descobriram agora, num repente, que o Código Penal de 1940 permite o assassinato a sangue e coração frios daqueles que, sem culpa, passaram do nada à existência como fruto de um estupro. Ou ainda daqueles cuja vida, igualmente sem culpa, pode trazer risco à vida das mulheres que, com ou sem culpa, lhes deram a vida.

Encontraram uma lei que lhes dá pretexto para relançar a discussão do tema, e talvez obter um primeiro passo na direção da total liberação do aborto, como meio de diminuir o número de nascimentos.

A rede pública hospitalar, alertam eles escandalizados, não atende as pobres genitoras-extirpadoras para, higienicamente, sem gastos e sem dores físicas - quiçá mesmo sem dores morais -, darem cabo dos indesejáveis seres que portam em seus ventres!

E os médicos deixam de exterminar essas crianças, como fariam a um abcesso ou a um verme!

E - desgraça das desgraças - esses bebês indesejáveis e indesejados acabam muitas vezes nascendo! Bem vivos e saudáveis, sem perspectiva de morte próxima! E, na maioria das vezes, pobres!

E a taxa de natalidade continua crescendo, para tormento dos abortistas, bem nascidos e mal criados.

Sem o concurso da rede pública, perdem eles um meio eficaz de combater a pobreza, extirpando-a em seu nascedouro. Matando as crianças pobres.

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O Brasil discute, uma vez mais, o assassinato das crianças inocentes.

O Papa visitou nosso País, e pronunciou-se contra esse genocídio. Não deveria, dizem, ter-se intrometido no assunto: conforme o alertara a primeira dama, a influência de Sua Santidade no Congresso "é zero". D. Ruth se esqueceu da influência que o Papa ainda pode exercer sobre o povo que elege o Congresso.

Afinal, temos uma lei no País, o Código Penal. É preciso, bradam os herodianos, criar condições para que ele seja aplicado.

Se essa lei permite o assassinato, que se assassine pois! Que o Executivo execute, pelas mãos dos médicos a quem paga para curar, aqueles a quem a lei permite exterminar.

Afinal, é dever primordial do Estado cumprir a lei.

E contra a lei soberana não há moral que se possa opor. A lei positiva, aprovada e promulgada por nossos iluminados legisladores, é a única moral.

A não ser, é claro, quando ela fere interesses de quem pode defendê-los. O que não é o caso das silenciosas crianças premiadas com morte prematura. Delas jamais se ouvirão choros nem protestos.

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O Brasil discute o assassinato dos indesejáveis.

Hoje, as crianças ainda não nascidas.

Mais tarde, talvez, outros indesejáveis. Quem sabe, talvez, as crianças que, por descuido das mães, já tenham nascido, mas nem por isso hajam-se tornado aceitáveis aos que as geraram. Depois, por exemplo, os velhos doentes que só dão trabalho e despesas, lotando hospitais e asilos. Mais tarde, todos os velhos inúteis. Todos os doentes desesperançados. Os loucos que povoam os hospícios. Os mendigos que invadem nossas ruas e viadutos. Os desempregados. Os pobres... Enfim, toda essa imensa classe daqueles que, por uma razão ou outra, com ou sem culpa, se tornaram indesejáveis à outra classe. Afinal, por que não?

Delírio? Não, coerência. Deslizar macabro do princípio às conseqüências, de um horror a outros horrores. Dedução lógica da premissa que admite o extermínio dos indesejados pelos indesejosos.

Há precedentes históricos. Hitler e Stalin não fizeram outra coisa. Tiraram conseqüências.

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O Brasil discute a legitimidade do infanticídio.

A mãe teria o direito de matar o próprio filho, no interior do ventre que deveria protegê-lo, com a ajuda do médico que jurou salvar vidas.

Não é possível, a quem ainda não perdeu totalmente a luz moral, deixar de ver que esse é um dos mais nefandos crimes que possa cometer um ser humano. Ou melhor, um ser... que fora humano.

A hediondez do fato é nítida aos olhos que ainda enxergam; sua repugnância domina a vontade ainda sã.

É preciso chegar ao fundo do abismo da descristianização para deixar de ver isso: o aborto é, evidentemente, indiscutivelmente, clamorosamente criminoso.

Ora, quando a evidência é negada, quando o indiscutível é discutido, a moral se perdeu, a verdade feneceu, Deus foi expulso.

A verdadeira civilização perece, dando lugar à barbárie, ainda que travestida de civilidade; à selvageria, embora alcunhada, talvez, de... cidadania.

O Brasil discute, mais uma vez, o aborto.


    Para citar este texto:
"Discussão do Indiscutível"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/politica/discussao/
Online, 20/04/2024 às 06:30:58h