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O Campanário de Chanzeaux
Orlando Fedeli
Amanhecia.
A primavera e a vida despertavam naquela manhã de Abril de 1795.
No meio dos campos, aqui e acolá cultivados, aqui e acolá talados pela guerra, sobressaindo aristocraticamente sobre o casario da aldeia de Chanzeaux, o campanário da Igreja se erguia como um vulto escuro, no lento clarear da aurora.
Os soldados revolucionários, que silenciosos esperavam a ordem de atacar, olhavam a aldeia semi-queimada que se apertava em torno da Igreja com seu campanário mudo que dominava a paisagem.
Outrora, nas alvoradas suaves, ao meio dia, nos crepúsculos gloriosos, quando os campônios suspendiam a faina e se reuniam em torno da mesa rústica, o sino do campanário cantava o Ângelus com aquelas notas doces como a benção de Deus anunciando a realização da Esperança.
- “O anjo do Senhor anunciou a Maria
- E ela concebeu do Espírito Santo”.
Então as badaladas ecoavam pelos campos, lembrando que houve uma Virgem, que aceitou Mãe do Redentor, aceitou ser Mãe, e ser crucificada, como a palavra de Deus encarnada.
- “Eis aqui a Escrava do Senhor
- Faça-se em mim segundo a vossa palavra”.
E o sino Chanzeaux despertava ecos longínquos e profundos nos corações, ensinando ao “miúdo povo de Deus” que despertava para o trabalho ou dele voltava cansado, que após as fainas dessa vida seria possível ter uma vida celestial porque um dia
- “O Verbo de Deus se fez carne
- E habitou entre nós”.
E, enfim, o sino repicava festivo e, alegres, a ele respondiam os mil campanários erguidos pelos campos da França e da Europa: a Cristandade cantava naquelas vozes de bronze.
Agora os sinos de Chanzeaux estavam mudos. A Revolução da Liberdade os proibira porque não suportava aquelas vozes que desciam dos céus. Agora só a voz do Homem, a voz da Razão é que falava.
E que dizia o Homem gaguejando sua filosofia? Ele proclamava a liberdade de consciência, a liberdade de religião, a liberdade de imprensa... e proibia o toque dos sinos - “vozes do fanatismo” - erguidos em torres “aristocráticas” que dominavam as aldeias. Proibia aquela voz que importunava a terra falando do Céu, incomodava o homem que só queria viver como os animais na terra, de terra, para a terra.
E duas Igrejas se haviam formado. A Igreja antiga, sempre a mesma, fiel ao Papa e a Deus, caminhou serena e santa para os bosques, para as catacumbas, para os cárceres, para a guilhotina. A nova Igreja - as páginas da História estão cheias dos escombros das novas igrejas - a Nova Igreja de então, a Igreja Constitucional Revolucionária, fingindo a princípio manter a Fé para esconder a revolta contra o Papa, caiu depois da revolta na traição, da traição na vergonha, da vergonha na apostasia.
A Nova Igreja era a dos padres que, a principio, haviam trocado, na Missa , o “O senhor esteja convosco” pelo slogan revolucionário “Viva o Rei e a Nação” e, depois, mataram o Rei e ensangüentaram a Nação. A Nova Igreja era a dos padres que se tinham apressado em casar -- “para dar exemplo de virtudes cívicas”-- e dos Bispos que haviam abandonado, primeiro, a cruz pastoral de ouro e substituindo-a por outra de madeira, por “amor a Pátria e aos pobres”, e que, depois, abandonaram a cruz de madeira, por amor a si mesmos. A nova Igreja era aquela que renegara a Deus para adorar a Razão, e que renegou depois a Razão para adorar o Ser Supremo, a Igreja que, adorando, tudo, e só adorava a si mesma.
Os soldados “azuis"-- os revolucionários -- contemplando Chanzeaux, recordavam a revolta da Vandéia, os camponeses armados de paus e foices, o terço pendurado ao pescoço, cantando os hinos de Nossa Senhora no meio das batalhas. Eles reviam as vitórias da Revolução sobre os “fanáticos”, os “brigands” da Vandéia que ousavam no século XVIII - o “Século das Luzes” - desfraldar uma bandeira com a imagem do Sagrado Coração de Jesus! Eles reviam os assassinatos e os incêndios que as “colunas infernais” tinham feito naquelas terra de cruzados. Viam de novo as crianças massacradas, as mulheres violentadas ou cozidas nos fornos, o afogamento dos padres no Loire, e a guilhotina, o sangue e o fogo, e o sangue ainda, o sangue sempre, o sangue de Abel que clamava a Deus por vingança.
Agora eles estavam lá, diante da aldeia de Chanzeaux, duas vezes queimada, duas vezes massacrada. E viam o campanário semi-queimado e que, ele também, ostentava as marcas e as cicatrizes do martírio e do incêndio. Eles estavam lá, os filhos de Voltaire, e sabiam que do outro lado, esperando também, estavam os filhos dos cruzados, os filhos de São Luís.
A notícia de que os azuis estavam chegando era para eles a sentença de que iam morrer ou na luta, ou na guilhotina. Para as mulheres, a sorte seria ainda pior: não só lhe quereriam tirar a vida, mas também a honra e a alma. Na aldeia, os sobreviventes de tantos combates eram poucos, e a resistência inútil. Mas para salvar as mulheres e as crianças, dando-lhes tempo de fugir e de se ocultar, era preciso que alguns se sacrificassem lutando até o fim.
Dezessete homens resolveram morrer para que os outros se salvassem. Quem os comandava, resoluto e bravo, era o antigo sacristão de Chanzeaux, Maurice Ragueneau. Dez mulheres e moças preferiram ficar com eles e morrer com seus maridos ou irmãos, a arriscar-se pelos bosques e talvez caírem, no dia seguinte, nas mãos lúbricas e assassinas dos revolucionários. O Pe. Blanvillain, cura de Chanzeaux, resolveu ficar com os que iam morrer. Era o pastor que dava a vida com seu rebanho.
O Pe. Blanvillain, outrora, não apenas sorrira a Revolução, mas chegara a prestar juramento aceitando a cismática Constituição Civil do Clero. Depois, ele se arrependera, e ei-lo agora de pé, ele também entre os mártires. Deus pode fazer das pedras filhos de Abraão.
Ragueneau organizou seu reduto no alto do campanário e fez levar para lá munições e víveres. O sacerdote levou também o cibório com hóstias e os camponeses sua oração e sua bravura.
E eis no campanário de Chanzeaux semi-queimado, reunidos os restos daquela cristandade, com suas virtudes e misérias.
Lá estavam a fé e a fidelidade, o martírio e a dedicação, a bravura e a penitência, a pureza e a honra. E Jesus estava com eles. De armas na mão, eles se reuniam em torno do Deus crucificado, por quem iam morrer.
Eles olhavam as casas e as ruelas ao redor da Igreja, os campos além, à espera dos soldados da igualdade e da liberdade. Olhavam para a Revolução ímpia e orgulhosa que vinha matá-los, com olhos de condenação. Olhavam a Revolução, que queria extinguir a Fé, com o desprezo com que na arena nossos antepassados olhavam para Nero e para as arquibancadas ululantes. Nosso Senhor, do alto do campanário, olhava de novo os soldados que vinham crucificá-lo. E sofria porque não eram já os soldados romanos pagãos, e não eram judeus, mas homens que tinham a marca do batismo na alma e a cruz marcada na testa que vinham matá-lo.
Lá estavam a fé e a fidelidade, o martírio e a dedicação, a bravura e a penitência, a pureza e a honra. E Jesus estava com eles.
Os soldados revolucionários se apoderaram da aldeia deserta. Raivosamente penetraram nas casas onde encontravam o vazio. Saíam de novo as ruas e encontravam o silêncio. Afinal chegaram ao campanário e compreenderam: estavam lá os que ousavam desafiar a morte e desprezar a liberdade.
O General Caffin cercou a igreja, e intimou os camponeses que se rendessem, prometendo-lhes a vida.
Um grito unânime explodiu no alto da torre: “Viva a Religião! Viva o Rei!”
O tiroteio começou. Ragueneau tirava todo proveito possível de sua situação vantajosa. Em cada janela ou porta ele pôs um de seus homens. As mulheres carregavam os fuzis. Os homens disparavam. Os revolucionários caíam.
No fragor do combate, ouvia-se a voz do ex-sacristão, desafiando os revolucionários e animando seus homens.
Os soldados azuis conseguiram enfim entrar na igreja, mas foram dizimados ao tentar subir ao campanário. Do alto, aproveitando os vãos das escadas e dos caibros, os guerreiros do Sagrado Coração de Jesus visavam-nos com facilidade. Os revolucionários tiveram que fugir. O combate se prolongava, e os azuis sequer sabiam quantos eram seus inimigos.
Sendo impossível o assalto, os homens da Revolução resolveram queimar o campanário e assim matar os heróis. Imediatamente trouxeram palha e lenha que procuraram amontoar junto à torre.
Ragueneau, porém, fez uma descarga geral que pôs os soldados de novo em fuga. O solo ficou juncado de mortos e de lenha abandonados.
O número dos revolucionários, entretanto, permitia-lhes não desistir e, sob o abrigo dos cadáveres e dos destroços, alguns conseguiram chegar junto à torre, e aí acumular a lenha e a palha.
O fogo foi ateado. As chamas cresceram envolvendo o campanário numa mortalha de fogo e de fumo. O tiroteio cessou. As labaredas crepitavam subindo pela armação de madeira da torre. Os revolucionários derrotados esperavam ser vingados pelo fogo.
No alto, os novos cruzados olhavam em silêncio a morte que subia no turbilhão de fogo. O Padre Blanvillain, ferido com um tiro na coxa, propôs que capitulassem, implorando aos revolucionários que lhes poupassem a vida.
O sacristão Ragueneau respondeu-lhe cheio de fé: “Ah, senhor cura! E sois vós que quereis mendigar vossa vida? Vós achais uma ocasião de resgatar pelo martírio o juramento sacrílego que fizestes e não a aproveitais?”
Palavras severas mas misericordiosas, pois conseguiram fazer com que o padre recobrasse ânimo e aceitasse a morte como penitência de sua passada apostasia.
Os aldeões subiram nas últimas traves do campanário. O calor era enorme. O sacerdote, vendo um ferido prestes a morrer, procurou arrastar-se, por causa de sua perna ferida, por uma trave para chegar junto ao moribundo, e administrar-lhe os últimos sacramentos. Mas a trave carcomida pelas chamas não resistiu, e o padre caiu num vórtice de fogo. Deus aceitara seu sacrifício, a apostasia fora resgatada.
Ragueneau retomou o combate pois queria morrer lutando. Os revolucionários responderam a seus tiros desesperados. Uma bala o atingiu, e ele também caiu no meio das chamas. Sua irmã de 20 anos lançou-se para salvá-lo, e morreu com ele.
Restavam ainda vivos, no campanário em chamas, treze homens e cinco mulheres. A munição acabara. Era impossível resistir mais. O incêndio já chegava ao alto da torre. Os camponeses rezavam e escondiam a cabeça entre os braços. O ar lhes faltava.
Por entre o crepitar do fogo, ouviam as vozes dos azuis que sugeriam a capitulação e lhes prometiam a vida. De dentro de seu ser, essa mesma vida lhes gritava mil outras promessas.
No alto do campanário, colocados entre o céu e a terra, entre a Igreja e a Revolução, entre a vida e a morte, os camponeses hesitavam.
Um deles, decidiu-se logo. Era um antigo vandeano que se levantou, como a Vandéia, gritando que não cedia. Um tiro o atingiu na cabeça e ele morreu proclamando: “Morro pelo Deus que morreu por mim”.
Dois outros escolheram a vida na terra e, confiando nas promessas dos revolucionários, desceram pelas escadas que tinham sido encostadas ao campanário. Logo, os que permaneceram no alto da torre ouviram seus gritos de protesto e os tiros de seu fuzilamento. Mais uma vez os revolucionários mostraram o quanto era honrada sua palavra.
Entre a morte no alto da Igreja, pelo fogo, e a morte no chão pelo fuzilamento, que preferir? Eles hesitavam. O próprio general Caffin então prometeu-lhes poupar a vida.
Então eles desceram do campanário da glória.... e foram poupados.
-"E que se queria que eles fizessem?"
Mortos, pelo menos não teriam permitido a Revolução assassina cobrir-se com o manto da falsa misericórdia.
É verdade que desceram para morrer, e não tiveram culpa por terem sido poupados pelos carrascos de seus irmãos.
Mas que amargor ao vê-los descer! Que amargor ao saber que viveram e que viram, anos depois, o Cardeal Consalvi descer da torre santa da Igreja, incendiada e ensangüentada, e, aceitando as promessas da Revolução, assinar com Napoleão o acordo de coexistência com o liberalismo. Que amargor ver o clero e a multidão católica descerem da torre da Fé, do campanário incendiado da Glória e do martírio para conviver com os carrascos! Que amargor nessa coexistência que cobria o sangue vermelho de Abel derramado sobre a terra, com as cinzas do campanário de Chanzeaux!
Que amargor, quando eles se afastaram de Chanzeaux para ir as prisões de Chemillé e , voltando-se pela última vez, viam o campanário em fogo na noite da Revolução !
Os sinos estavam mudos. Mas no meio das chamas ouvia-se ainda, e se ouvirá por todos os séculos, o grito do camponês que morreu por seu Deus crucificado. Ouvir-se-á sempre a voz de comando, a voz intrépida do sacristão de Chanzeaux.
Sempre, sempre se ouvirá a voz dos sinos de Chanzeaux. Até no século XX, surdo a todo heroísmo, cego a toda grandeza
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM VERITAS, 25, ANO III, 1989, JULHO-AGOSTO
Para citar este texto:
"O Campanário de Chanzeaux"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/historia/campanario/
Online, 05/12/2024 às 21:42:39h