Arte

O ouriço invertido da dor e da libertação - O macrocosmo schopenhauriano como microcosmo em O Ateneu
Joaquim Geerlach


"Pues el delito mayor
Del hombre es haber nacido"
(La vida es sueño, Calderón de la Barca)

O objetivo de nosso pequeno trabalho é tentar mostrar a relação entre o pensamento de Schopenhauer e algumas passagens de O Ateneu de Raul Pompéia. Não é nossa meta - até porque seria fora de propósito, ou até mesmo um absurdo - tentar mostrar que o narrador de O Ateneu escreveu o romance para expor a doutrina de Schopenhauer. Pelo contrário, as idéias schopenhauerianas são microcosmos dentro da complexidade do romance. Porém, microcosmos relevantes para melhor compreensão da narrativa, uma vez que Sérgio, narrador-personagem, conta suas memórias no colégio interno, mesclando o Sérgio criança e o Sérgio adulto, predominantemente com rancor e tristeza, mas exaltando-se quando está presente de Ema (símbolo do amor materno e mulher de Aristarco - diretor do colégio) e da música, uma espécie de libertadora do mundo da infelicidade e da dor.

Para tanto, optamos por um método de exposição partindo de Schopenhauer e recheando, quando plausível, trechos de O Ateneu, que sirvam de argumentação para eficácia de nossa hipótese. Assim, embora pareça um texto "up-side-down", ou seja, Schopenhauer como tema e O Ateneu como "acessório", na verdade a idéia é oposta: um microcosmo de O Ateneu como tema, relacionado-o com a complexidade de Schopenhauer. Dessa forma, tenta-se evidenciar como Pompéia sintetizou idéias tão abrangentes, metafísicas, em pequenos "oásis" de seu imenso deserto árido, árduo e penoso, que é O Ateneu. Optamos por esse método devido à dificuldade de compreensão da idéia de "libertação pela música", sem antes ter-se adentrado na arquitetura filosófica de Schopenhauer.

Portanto, para falarmos desse microcosmo de O Ateneu, que ganha dimensões significativas, é preciso antes traçarmos um rápido panorama da filosofia de Schopenhauer.

Esboço esquemático da filosofia de Schopenhauer

O ponto de partida do pensador, a premissa maior que abre sua obra fundamental, O Mundo como Vontade e Representação, é: "O mundo é minha representação". Antes de entrarmos na exposição das idéias de Schopenhauer, é necessário expormos alguns pontos para elucidarmos melhor essa premissa maior.

Schopenhauer sofreu forte influência de Platão, de Kant e da filosofia-religião oriental em geral, como do budismo e sobretudo da leitura dos Upanishads. Assim, para compreendermos melhor, partiremos do kantismo para chegarmos ao autor que aqui nos interessa.

Para Kant, o fenômeno é a realidade, a única acessível ao conhecimento humano.

Associado a ele, há o nûmeno, que é o limite intrínseco desse conhecimento. Para Schopenhauer, o fenômeno é aparência, ilusão, sonho, ou, como se diz na filosofia indiana, "o Véu de Maia". O nûmeno é a realidade que se esconde por detrás do sonho, da ilusão, do fenômeno.

Dito isso, podemos chegar ao primeiro passo da filosofia de Schopenhauer. O mundo é representação. Portanto, não se pode partir do objeto, porque ele é ilusão. Deve-se partir do sujeito. Concentra-se assim o conhecimento a partir do próprio eu conhecedor. Assim, o mundo é minha representação.

No entanto, dizer que o mundo é só representação seria uma visão fantástica, um absurdo metafísico, pois o sujeito do conhecimento tem corpo, por exemplo. Assim, a busca não deve ser no mundo real, no fenômeno, mas no que está por trás dele, no nûmeno, que é a verdadeira realidade.

Se o mundo não é só representação, que é então? Se devemos buscar o nûmeno, como alcançá-lo? Schopenhauer responde que o mundo não é só representação, mas também vontade, e é ela o nûmeno.

Trata-se agora de se explicar o que é essa vontade para Schopenhauer, que diz: "Fenômeno significa representação, e mais nada; e toda a representação, todo o objeto é fenômeno. A coisa em si é unicamente a vontade; nesta qualidade, esta não é de maneira nenhuma representação, difere dela "toto genere"; a representação, o objeto, é o fenômeno, a visibilidade, a objetivação da vontade. A vontade é a substância íntima, o núcleo tanto de toda coisa particular, como do conjunto; é ela que se manifesta na força natural cega; ela encontra-se na conduta racional do homem; se as duas diferem tão profundamente, é em grau, não em essência".

Portanto, a vontade é a coisa em si; assim, não está presa às formas do fenômeno (tempo, espaço e causalidade). Além disso, é única em todos os seres, diferenciando-se apenas em grau; no animal aparece como instinto e no homem como razão, mas em sua essência é igual. Porém não se trata de panteísmo, pois, como veremos mais abaixo, Schopenhauer tem uma visão pessimista do mundo, ao contrário do panteísmo.

A razão, no entanto, é inferior à vontade, pois está a serviço dela; é sua escrava. Ela faz com que o homem atue em virtude de motivos, e está sujeita ao erro. Estando sujeita ao erro, falha em seu objetivo de atingir a vontade infinita que é o ser por excelência. O homem, portanto, não pode chegar ao conhecimento máximo via razão; ao contrário, deve-se libertar dela. Uma vez que a razão afasta o homem da coisa em si, da Idéia (o filósofo adota o termo platônico), a única maneira de se aproximar do conhecimento é a intuição; através dela, o sujeito atinge a Idéia, "indo dentro" (do latim intoire) da coisa em si .

Schopenhauer, então, formula a idéia de que a maneira de o homem chegar ao nûmeno, à vontade infinita, à Idéia, é através de duas formas: via Arte e via Ascese. Trataremos a seguir dessa libertação. Adiantamos já que a Ascese é via para uma libertação completa, enquanto que a Arte é uma via para uma libertação parcial.

A Libertação pela Arte na Música em Schopenhauer e O Ateneu

Chegamos agora ao ponto fundamental para relacionarmos com O Ateneu, que é a questão da arte como libertação desse mundo do engano, da representação, da infelicidade e da dor. Sabe-se, então, que somente com o conhecimento da Idéia é que se chega ao conhecimento sublime. A Idéia só é alcançada pela arte. Diz Schopenhauer: "A arte reproduz as idéias eternas que concebeu por meio da contemplação pura, isto é, o essencial e o permanente de todos os fenômenos do mundo; aliás, segundo a matéria que emprega para esta reprodução toma o nome de arte plástica, poesia ou música. A sua origem única é o conhecimento das Idéias; o seu fim único, a comunicação desse conhecimento [...] O conhecimento submetido ao princípio de razão constitui o conhecimento racional; só tem valor e utilidade na vida prática e na ciência: a contemplação, que se abstrai do princípio de razão, é própria do gênio; ela só tem valor e utilidade na arte".

Assim, a arte possibilita o conhecimento da Idéia, que é comunicada aos que contemplam as obras artísticas. No entanto, só é atingido, no seu grau mais elevado, pelo gênio. Diz: "...a genialidade consiste numa aptidão para se manter na intuição, pura e aí se perder, para libertar da sujeição da vontade o conhecimento que lhe estava originariamente submetido[...] Para os homens vulgares, a faculdade de conhecer é a lanterna que ilumina o caminho; para o homem de gênio, é o sol que revela o mundo".

Schopenhauer comenta as artes em geral, e faz a hierarquização delas, segundo o meio mais próximo de se chegar à imediata revelação da Vontade Infinita. Imaginando as artes dispostas em pirâmide, em sua base está a arquitetura, depois a escultura, a pintura, a tragédia, e no topo, a música, que é a imediata revelação dessa Vontade Infinita.

Diz Schopenhauer: "...a música, com efeito, é uma objetividade, uma cópia tão imediata de toda a vontade como o mundo o é, como o são as próprias Idéias cujo fenômeno múltiplo constitui o mundo dos objetos individuais. Ela não é, portanto, como as outras artes, uma reprodução das Idéias, mas uma reprodução da vontade como as próprias Idéias. É por isso que a influência da música é mais poderosa e mais penetrante que a das outras artes: estas exprimem apenas a sombra, enquanto que ela fala do ser". E depois sintetiza que: "O prazer estético, a consolação através da arte, o entusiasmo artístico que se apaga as penas da vida, esse privilégio especial do gênio que o indeniza das dores de que ele sofre mais à medida que a sua consciência é mais clara, que o fortifica contra a solidão pesada a que está condenado no seio duma multidão heterogênea, - tudo isso resulta de que,[...] por um lado, a ‘essência’ da vida, a vontade, a própria existência é uma dor constante tanto lamentável como terrível; e de que, por outro lado, tudo isso, encarado na representação pura ou nas obras de arte, está liberto de toda a dor e apresenta um espetáculo imponente. Este lado puramente conhecível do mundo, a sua reprodução através da arte sob uma forma qualquer, é a matéria sobre que trabalha o artista. Ele é cativado pela contemplação da vontade na sua objetivação; ele pára diante desse espetáculo, não deixando de o admirar e de o reproduzir, mas, durante esse tempo, é ele mesmo que paga as despesas da representação; por outras palavras, ele próprio é essa vontade que se objetiva e que permanece só com a sua eterna dor.

Esse conhecimento puro, profundo e verdadeiro da natureza do mundo torna-se ele mesmo a finalidade do artista de gênio: este não vai mais longe. Além disso, não se torna, como acontece ao santo, chegado à resignação, [...] um ‘calmante’ da vontade; não o libertará definitivamente da vida, irá aliviá-lo apenas por alguns instantes curtos: não é ainda a via que conduz para fora da vida. Ele é apenas uma consolação provisória durante a vida, até que finalmente, sentindo sua força aumentada e, por outro lado cansado deste jogo ele se volte para as coisas sérias" .

Assim, a arte é o caminho da libertação, embora ela seja parcial, "por alguns instantes curtos". Algumas passagens em O Ateneu evidenciam o elogio à arte, e depois mais especificamente à música, como proporcionadora de uma espécie de êxtase. Na primeira palestra do Doutor Cláudio, criticando a sociedade brasileira e seu desprezo pela verdadeira arte, ele diz: "A arte significa a alegria do movimento, ou um grito de suprema dor nas sociedades que sofrem. Entre nós, a alegria é um cadáver". Na segunda palestra, diz: "Cruel, obscena, egoísta, imoral, indômita, eternamente selvagem, a arte é a superioridade humana - acima dos preceitos que se combatem, acima das religiões que passam, acima da ciência que se corrige; embriaga como a orgia e como o êxtase".

A arte está elevada ao mais alto nível. É mais que a ciência e que a religião. Ela é que produz o êxtase. Além disso, é quando Sérgio está doente, - recebendo os cuidados de Ema, "a amável senhora" (anagrama de mãe, e a personagem que mais tem o carinho de Sérgio), e escutando a melodia que vem do piano - que ele tem momentos de exaltação; e, neste momento, o tom do romance, sempre pessimista e negativista em relação à vida e aos seres humanos, é esquecido, e Sérgio aproxima-se do êxtase. Diz: "...eu aspirava a música como a embriaguez dulcíssima de um perfume funesto; a música envolvia-me num contágio de vibração, como se houvesse nervos no ar. As notas distantes cresciam-me n’alma em ressonância enorme de cisterna; eu sofria, como das palpitações fortes do coração quando o sentimento exacerba-se - a sensualidade dissolvente dos sons. Lasso, sobre os lençóis, em conforto ideal de túmulo, que a vontade morrera, eu deixava martirizar-me o encanto. A imaginação de asas crescidas fugia solta". A música permite Sérgio sair do mundo concreto para abstrair e contemplar, pois, o envolvia "num contágio de vibração". Ele "sofria" mas "a imaginação de asas crescidas fugia solta". A música, assim, propicia a Sérgio a superação da dor, ainda que por alguns momentos.

Continua depois: "Por um acaso da distribuição acústica dos compartimentos da casa, ouvia-se bem, agradavelmente amaciado, o som do piano do salão. A amável senhora (Ema), para mandar-me da sua ausência alguma coisa ainda, que acariciasse, que me fosse agradável, traduzia no teclado com a mesma brandura sentida as músicas que sabia cantar. Nenhuma violência de execução. Sentimento, apenas, sentimento, sucessão melódica de sons profundos, destacados como o dobre, em novembro, dos bronzes; depois, uma enfiada brilhante de lágrimas, colhidas num lago de repouso, final, sereno, consolado...efeitos comoventes da música de Schopenhauer; forma sem matéria, turba de espíritos aéreos" .

Vê-se não só a referência direta do narrador a Schopenhauer, como a própria idéia da música como consoladora das misérias humanas. Ela traz o "repouso, final, sereno, consolado". Tem-se, também, que a música é uma "forma sem matéria", portanto, está além do mundo dos fenômenos, é a própria imediata objetivação da vontade, no sentido schopenhaueriano; é enfim uma "turba de espíritos aéreos", que remete a idéia do transcendente, do libertado, no sentido daquilo que não está fixo na terra, mas que vaga liberto pelo ar; uma espécie de espiritualização da matéria, que, por isso mesmo, está libertada.

A arte em O Ateneu, em síntese, é o meio pelo qual o homem se liberta do mundo da seleção natural, em que o predador sempre vence o mais fraco. Diz Alfredo Bosi: "[...] pulsa no espírito do narrador um complexo ideo-afetivo de tendências anárquicas e jacobinas que, aceitando embora os princípios deterministas (senha, àquela altura, de progressismo), revolta-se contra as redes de opressão individual que essa mesma doutrina sanciona. Se o universo é um todo lógico e fechado, se cada anel da cadeia dos seres se constitui pela ação da força, sem exceções, então, em que instância podem irromper a rebeldia, a negatividade? Nesse mundo sem dialética, em vez de surgir como contradição ativa e superadora, a arte aparece como diferença irredutível. Se fosse confinada em limites intra-subjetivos, o seu outro nome seria o de loucura, mas, no discurso de Pompéia-Dr.Cláudio, a arte é contemplada como um universal do homo sapiens, que a torna inteligível, embora ‘indômita, eternamente selvagem’".

A Dor de Viver em Schopenhauer e em O Ateneu

Contudo, a música, ainda que seja imediata revelação da Vontade Infinita, não liberta o homem totalmente da vontade, pois ela desprende o homem do mundo da representação apenas por momentos de êxtase, não totalmente. Ela mantém o homem preso à vontade de estar no mundo, à vontade de viver. Para atingir a coisa em si, a Vontade Infinita, é preciso eliminar o desejo, o querer viver, pois o mundo é representação e engano, e permanecer neste mundo do fenômeno é manter-se preso ao cárcere. A vida é necessariamente infelicidade e dor. Priva o homem, escravizando-o pela vontade, pelo desejo, não o permitindo atingir a Vontade Infinita. Diz Schopenhauer: "Todo querer procede duma necessidade, isto é, duma privação, isto é, dum sofrimento. A satisfação põe-lhe um fim; mas, para um desejo que é satisfeito, dez, pelo menos, são contrariados; além disso, o desejo é demorado, e as suas exigências tendem para o infinito; a satisfação é curta, e é parcimoniosamente medida. Mas este contentamento supremo é apenas, aparente: o desejo satisfeito dá lugar em breve a um novo desejo; o primeiro é decepção reconhecida, o segundo é uma decepção ainda não reconhecida. A satisfação de nenhum desejo pode conseguir contentamento durável e inalterável. É como a esmola que se lança a um mendigo; ela salva-lhe hoje a vida para prolongar a sua miséria até amanhã".

O pessimismo com relação ao mundo, à vida, às pessoas, é fundamental na filosofia de Schopenhauer. O historiador da filosofia, Copleston, ao comentar o pensador alemão, diz: "For the Will to live, manifesting itself in egoism, self-assertion, hatred and conflit, is for Schopenhauer the source of evil", e continua, citando a obra "Parerga und Paralipomena" do filósofo: "There really resides in the heart of each of us a wild beast which only waits the opportunity to rage and rave in order to injure others , and wich, if they do not prevent it, would like to destroy them", e conclui Copleston: " This wild beast, this radical evil, is the direct expression of the Will to live".

A vida sendo essencialmente dor e infelicidade, a única maneira de um relacionamento afetivo entre as pessoas é através do amor, ou melhor dizendo, da compaixão de partilhar com os outros o sofrimento e a dor. Uma espécie de uma comunhão da dor. Nesse ponto, podemos relacionar com O Ateneu, já que o narrador tem uma visão amarga da vida que passou no colégio interno. É como se o narrador quisesse compartilhar com o leitor os anos de suas angústias, do tédio e do sofrimento, para que o leitor, comovido, entrasse em compaixão com ele. O célebre início do romance já deflagra a vida, o mundo como uma luta, onde só os mais aptos sobrevivem, como defende a teoria evolucionista de Darwin: "Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta".

O mundo de O Ateneu, que é um microcosmo da sociedade, é o lugar da dor e do sofrimento. Diz o narrador: "O meio, filosofemos, é um ouriço invertido: em vez da explosão divergente dos dardos - uma convergência de pontas ao redor". O ouriço invertido é o símbolo do mal estar que é o da existência. Todos os espinhos convergem para prender o homem ao mundo cruel. A idéia do ouriço, já esteve expressada no romance anteriormente, na primeira noite de Sérgio no colégio. Durante um sonho, lê-se: "...O pó crescia em nuvens do solo; a massa confusa ouriçava (grifo nosso) de gestos, gestos de galho sem folhas em tormenta agoniada de inverno".

O relacionamento de Sérgio com os colegas é predominantemente traçado como mau, sempre realçando os aspectos mais desprezíveis dos seres humanos. No primeiro dia de aula, Sérgio conhece Rebelo, que lhe conta como são seus novos colegas: "Uma corja! Não imagina, meu caro Sérgio. Conte como uma desgraça ter de viver com esta gente". E esbeiçou um lábio sarcástico para os rapazes que passavam. "Aí vão as carinhas sonsas, generosa mocidade...Uns perversos! Têm mais pecados na consciência que um confessor no ouvido; uma mentira em cada dente, um vício em cada polegada de pele. Fiem-se neles. São servis, traidores, brutais, adulões".

O Puro Nada Schopenhaueriano

A questão da Ascese na perspectiva de Schopenhauer não aparece em O Ateneu. Assim, ela não serve de base para relacionar o pensamento do filósofo alemão e o romance brasileiro. Contudo, tendo-se atingido até aqui o desenvolvimento da filosofia de Schopenhauer, bastante sintetizada é verdade, julgamos sensato relatarmos rapidamente o fechamento do esquema schopenhaueriano para concluirmos nossa exposição.

Uma vez que a música traz uma libertação parcial, deve-se buscar outra forma de atingir a Vontade Infinita, a Idéia, o nûmeno. Essa via é a ascese. Para atingi-la, é preciso que o sujeito não queira e não deseje algo, pois o desejar e o querer fazem com que o sujeito fique preso à vontade, tornando-se, assim, escravo da própria vontade e apegado ao mundo dos fenômenos. O querer, o desejar, é sempre de algo objetivado, portanto, ilusório, representação; e isso impede a libertação. Para Schopenhauer, o passo fundamental é a castidade perfeita e, depois, atingir a negação da vontade de viver.

Castidade perfeita, pois ela liberta a afirmação da vontade de vida, o impulso reprodutor. Quanto mais vida houver mais aprisionado está o sujeito no mundo. Depois de atingida a castidade perfeita aproxima-se da negação da vontade de viver. Assim que o sujeito se liberta dessa vontade de viver ele alcança o nûmeno, o Ser por excelência.

Poder-se-ia pensar que Schopenhauer prega o suicídio. Porém, o suicídio não serve para conquistar a libertação, porque não é negação da vontade, mas uma enérgica afirmação da mesma, pois implica em um desejo, um querer.

A libertação é conseguida quando atinge-se o estado de "puro nada". O "puro nada" é a eliminação total de tudo aquilo que é, enquanto vida e vontade de vida. Esse "puro nada" é como o estado de nirvana do budismo. Curioso notar o que diz Sérgio, no capítulo 3, após o banho na piscina: "Depois que sacudi fora a tranca dos ideais ingênuos, sentia-me vazio de ânimo; nunca percebi tanto a espiritualidade imponderável da alma: o vácuo habitava-me dentro" (grifo nosso). Contudo, tentar fazer qualquer relação com "o puro nada" de Schopenhauer, parece-nos insustentável, já que o contexto indica outro sentido, o tédio, a falta de algo em que acreditar.

Conclusão

Depois desta breve exposição, conclui-se que embora seja um microcosmo de O Ateneu, a filosofia de Schopenhauer está presente no romance e exerce uma função importante na narrativa. Dado que, através da concepção de libertação pela arte, o homem atinge o êxtase e supera o mundo da dor, da luta pela sobrevivência. Como se o mundo não humano de O Ateneu, microcosmo da sociedade, só pudesse ser superado por Sérgio através da arte, da música, de Ema tocando piano. Enfim, a música tira o Véu de Maia.

 

Bibliografia

BOSI, Alfredo. Céu e Inferno, Ática, São Paulo, s/d, s/e..

COPLESTON, S.J., Frederick. A History of Philosophy, volume VII (Modern Philosophy: from the Post-Kantian Idealists to Marx, Kierkegaard and Nietzsche), Image Books, New York, 1994, First edition.

POMPÉIA, Raul. O Ateneu, Ática, São Paulo, 1997, 17.a edição.

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação, Rés-Editora, Porto, s/d, s/ed.


    Para citar este texto:
"O ouriço invertido da dor e da libertação - O macrocosmo schopenhauriano como microcosmo em O Ateneu"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/arte/ourico/
Online, 23/04/2024 às 17:23:53h