Mundo

Teólogo da libertação confessa fracasso do marxismo sandinista
Javier Lafuente

Não deve ser fácil escolher o momento mais feliz da vida quando se tem 84 anos. Ernesto Cardenal, poeta, sacerdote, revolucionário e agora também vingado por alguns dos que um dia foram seus amigos, tem muito claro que o sonho do qual nunca quis despertar ocorreu no dia 19 de julho de 1979, com o triunfo da revolução sandinista. Três décadas depois, não resta nenhum resquício daqueles momentos, e a situação política da Nicarágua é mais parecida com um pesadelo do qual Cardenal não consegue se desfazer.
 
A reportagem é de Javier Lafuente, publicada no jornal El País, 01-03-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
 
Sua liberdade foi sendo restringida por Daniel Ortega desde que, em 1994, se desligou da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) pela decadência autoritária que o atual presidente nicaraguense começava a tomar. Criticado e vilipendiado junto a quem, como ele, não quis seguir o caminho marcado pelo sandinismo oficialista – os escritores Sergio Ramírez, Gioconda Belli e um longo etc. –, com Cardenal foram mais adiante. “Tenho liberdade para tudo, menos para dizer o que penso em público”, lamenta-se o poeta octogenário, de caráter rude, um tanto esquivo. Sente-se sua violência ao falar de Ortega. Tenta cortar em seco qualquer pergunta sobre ele, como se estivesse a ponto de explodir frente à possibilidade de se expressar abertamente.
 
Motivos lhe sobram, ele que é autor de "La revolución perdida". Uma das últimas vezes que criticou publicamente a situação política do seu país foi no verão passado. Acusou Ortega de “ladrão”, durante sua visita ao Paraguai, por motivo da posse do presidente Fernando Lugo. O líder nicaraguense não participou por supostos problemas em seu avião, mesmo que os movimentos feministas declararam-lhe guerra pela acusação de estupro à sua enteada Zoilamérica Narváez.
 
Logo após, em agosto de 2008, Cardenal foi condenado a pagar uma multa de 20 mil córdobas (cerca de 700 euros) por insultar o empresário alemão Inmanuel Zerger, um crime do qual havia sido absolvido em 2005, por uma disputa de terras no arquipélago de Solentiname, onde o poeta fundou uma comunidade quase monástica em 1965 – fez isso com os cinco mil dólares que ganhou do Prêmio Nacional Rubén Darío – na qual ensinou dezenas de agricultores a ler e escrever. O juiz Daniel Rojas, próximo de Daniel Ortega, foi quem abriu o caso. O advogado de Zerger é o mesmo que, em 1998, defendeu Ortega quando este foi acusado por Zoilamérica. Cardenal não aceitou a condenação por “injustiça” e “ilegal”. Seus bens – escassos, pois doou quase tudo o que recebia durante anos à luta sandinista – foram embargados.
 
O sacerdote conhece perfeitamente o presidente nicaraguense, mas se nega a dar sua versão de como chegou a se converter no caudilho que é hoje. Hoje não. Não pode. Não quer. “Era muito diferente. Não entendemos a mudança que ele teve”, é o único que se atreve a dizer, no plural, porque sabe que não é o único que pensa assim. Imediatamente, como se se arrependesse do que disse antes, indica: “Mas eu não tenho liberdade para falar do governo da Nicarágua pelas represálias que sempre me fizeram quando eu falei. Temos uma ditadura, e eu não posso dizer mais. Tenho que me calar”.
 
Consciente ou não disso, o silêncio de Cardenal transmite muito mais do que toda a verborréia que possa lançar contra o seu outrora companheiro de luta. Tem medo? “Quando Franco estava vivo, não se podia viver na Espanha, sair ao exterior, dizer verdades e voltar. Eu estou nessa situação”, responde com uma sinceridade e completude à qual há pouco a se acrescentar.
 
Apesar de tudo, o escritor, que recebeu nesta semana em Madri a homenagem da Casa de América, sempre se manteve firme. Em nenhum caso se arrepende do que disse no Paraguai. “Tinha a obrigação de fazer isso. Calar teria sido um pecado”.
 
Os que conhecem Cardenal dizem que é uma pessoa que se engrandece mais e engrandeceram mais ao atacá-lo. Ao escutar esse comentário, é uma das poucas vezes em toda a conversa que ele faz uma careta, o mais parecida a um sorriso. É momentânea. “É possível que seja assim, mas eu não gosto desse tipo de engrandecimento. Não gosto que me ataquem”, diz sinceramente.
 
A ponto de se completar os 30 anos da derrocada do ditador Anastasio Somoza, Cardenal rememora como se uniu ao sandinismo. “Foi um conselho de meu mentor [o monge trapista] Thomas Merton que a vida contemplativa não devia ser indiferente aos problemas sociais e políticos.
Muito menos na América Latina, onde existiam ditaduras militares. O contemplativo, me dizia, tem que se interessar pelos problemas do seu povo. Isso fez com que eu me interessasse por tudo aquilo, mesmo que sempre tivesse uma vocação de rebeldia política”. Alguns dos jovens de sua comunidade participaram na luta armada e morreram. “Sua ausência é terrível, terrível, terrível. Alguns eram presos, e não sabíamos que haviam sido assassinados até que a revolução não triunfou. Tinha a esperança de que estivessem vivos em alguma prisão. Mas não era assim”.
 
Não se arrepende, “em absoluto”, de ter sido partícipe daquela revolução. “Para mim, foi muito bonita. Apoiei-a de todo o coração”. E agora, segue crendo que a luta armada é legítima? “O Papa Paulo VI disse que a revolução armada era legítima contra uma ditadura evidente e prolongada. Isso ocorre agora mesmo na América Latina. Há meios de comunicação, partidos políticos, denúncia civil. Não há por que ir para a luta armada”.
 
Consolidada a revolução, sendo Cardenal ministro da Cultura, em 1983, aconteceu um dos episódios mais sonhados em sua vida política: o momento em que João Paulo II, em sua chegada a Manágua, repreendeu-o publicamente. “Ele me disse: ‘Você sabe que deve regular a sua situação’, mas de uma forma muito imponente, rude. Como eu não quis responder, repetiu novamente”. Não lhe importou muito. Ele prefere recordar a visita do Pontífice pela atormentada missa que celebrou em Manágua. “Ele chegou para derrocar a revolução. Nicarágua era um país católico, com um governo de esquerda, de orientação marxista, mas apoiado pelos cristãos e pelos sacerdotes. Chegou a falar contra a revolução diante de 700 mil pessoas, um terço do país, para que o aplaudissem, o apoiassem e que a revolução caísse. Mas o povo se rebelou e lhe faltou com respeito. As pessoas gritavam: ‘Poder popular! Poder popular!’, e o Papa, ‘Silêncio!””, enfatiza.
 
Muitos foram as conquistas da revolução para um dos maiores expoentes da Teologia da Libertação. “A derrocada da ditadura, depois a transformação do país, onde se fez um trabalho verdadeiramente voluntário, como a vacinação de todas as crianças ou a alfabetização. Essas coisas só são possíveis em uma revolução”.
 
Seu país, que em sua opinião precisa de outra revolução, assim como o resto do mundo, deixou de ser uma referência há anos. A que se deve esse desencanto pela Nicarágua? Ernesto Cardenal, agora assim, não tem dúvida, diz de um golpe só, sem pensar duas vezes. “À derrota da revolução e à traição que os que agora governam a Nicarágua fizeram dela. Aí não há nada de esquerda, nada de revolução, nada de sandinismo. O que há é nada mais do que corrupção e ditadura. Uma ditadura fascista, familiar, de Daniel Ortega, sua mulher e seus filhos”.
 
[Tradução: IHUnisinos. Texto original em espanhol em ElPais]

    Para citar este texto:
"Teólogo da libertação confessa fracasso do marxismo sandinista"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/imprensa/mundo/fracasso-marxismo/
Online, 19/04/2024 às 11:43:03h