Cotidiano

Bento e Pell
Dan Hitchens
 Publicamos a seguir uma interessante comparação entre o grande Bento XVI, papa que favoreceu uma volta à normalidade da Igreja para a Missa de sempre, e o Cardeal Pell, um defensor efetivo da ortodoxia em meio ao caos da Igreja atual e que, em suas próprias palavras, terminou sua vida se devotando inteiramente à Missa tradicional. Duas grandes figuras da Igreja, desaparecidas no intervalo de quinze dias.

 

BENTO E PELL

 

Dan Hitchens

First Things

13.01.2023

 

Tradução Montfort

 

Um deles era uma figura mirrada, tímida e introvertida, que, na velhice, quase que parecia poder ser levantado por um vento mais forte nos Jardins do Vaticano. O outro, mesmo na casa dos oitenta anos, lembrava o zagueirão do futebol à australiana, algo que quase chegou a ser: um verdadeiro montanha, que imperava sobre qualquer ambiente em que estivesse.

 

Um era um intelectual de primeira ordem, capaz de passar sem muito esforço dos mitos babilônicos da criação à epistemologia kantiana; os muitos livros, que fornecem luz constante e inédita sobre assuntos familiares, serão de valor permanente para os cristãos e para qualquer pessoa em busca da verdadeira sabedoria. O outro era menos um pensador original do que um divulgador perspicaz, alguém que poderia citar Agostinho para a congregação de uma catedral lotada e se fazer entender.

 

Um deles era um ícone cultural improvável, um herói para artistas como Patti Smith e Werner Herzog. Politicamente imprevisível, podia lamentar a revolução sexual em uma hora e o aquecimento global em outra; poderia criticar o marxismo enquanto observava que “o socialismo democrático estava e está próximo da doutrina social católica”. O outro era menos um ícone cultural do que um guerreiro da cultura, um homem de direita, que ficava lado a lado com os aliados políticos e aceitava, como parte do jogo, a cólera de seus inimigos.

 

Bento XVI e o cardeal George Pell, que morreram recentemente no intervalo de quinze dias, tornaram-se clérigos poderosos através de caminhos discrepantes. Todos que conheceram o Pell ainda jovem esperavam que se levantasse de novo e de novo. Fazia com que as coisas acontecessem. Quando dava de cara com a porta, empurrava com o ombro para arrancar fora as dobradiças - principalmente em seu último cargo importante, de responsável supremo pelas finanças do Vaticano. Bento, por outro lado, foi alijado do trabalho acadêmico que tanto amava e enviado para o palácio do bispo em Munique - o dia em que sua felicidade cessou, disse ele.

 

Ambos viveram, na última década de suas vidas, o caos de nossos tempos, mas de maneiras muito diferentes. Bento XVI, tendo jurado lealdade e obediência silenciosa a seu sucessor, teve que assistir enquanto muito de seu próprio legado era desmantelado: tornou-se, dependendo de como você o visse, uma figura submissa quase ao nível da tragédia, ou um exemplo de confiança na Divina Providência, mesmo quando “o barco estava tão cheio d’água que parecia prestes a virar”. Cardeal Pell, por sua vez, passou mais de um ano na prisão, vítima de um espantoso erro judiciário, que chegou quase a não ser corrigido. Um príncipe da Igreja trancafiado na solitária, que havia tido recusada até a própria permissão para rezar a missa – o que pareceu algo tirado diretamente da Inglaterra do século XVI ou do Bloco Oriental, mas tendo por trilha sonora uma multidão de escarnecedores online do século XXI. Pell teve seus momentos de cólera pessoal, mas chegou, de forma notória, rapidamente à paz e ao perdão.

 

O ex-primeiro-ministro australiano Tony Abbott descreveu Pell como “um santo para estes nossos tempos”, e muitos católicos pediram pela canonização de Bento. Nem todos iriam tão longe. O próprio Pell disse que poderia ter feito mais, em seus primeiros anos, para controlar o abuso infantil: era um homem consciencioso, que se cobrava de forma excepcionalmente alta, ou estava admitindo uma falha grave, que obscureceu o próprio legado? Bento XVI parece que havia, a partir de revelações recentes, entendido que entregou o poder a seus inimigos: Sua disposição infatigável ao longo da vida de ajudar seus oponentes era pura e simplesmente caridade cristã ou uma ingenuidade dolosa?  

 

Podemos debater essas coisas, enquanto ainda expressamos uma gratidão absoluta a esses dois homens pela mensagem que, do começo ao fim, pregaram. Como eles mesmos viram, se a crença no Deus do amor estava desaparecendo do mundo, não era em razão de qualquer desafio frontal, mas em razão de uma praga sutil, que ameaçava murchar as raízes da fé. Era tão fácil, em meio ao clamor da mídia moderna e ao relativismo contemporâneo, começar a pensar que talvez a revelação de Deus pudesse ser ignorada até com segurança. A partir daí, o passo era curtíssimo para se esquecer completamente a Deus. E assim nos lembraram, repetidas vezes, de perseverar na fé que havíamos recebido.

 

Como o cardeal Pell, com sua franqueza tão característica, afirmou no site da revista First Things :

 

É doutrina católica que o papa, os bispos e todos os fiéis são servidores e defensores da tradição apostólica, sem poder para rejeitar ou distorcer elementos substanciais, especialmente quando a tradição está sendo desenvolvida e explicada. O que está em jogo quando rejeitamos um ensinamento moral basilar sobre a sexualidade (por exemplo) não é um parágrafo do Catecismo Católico, ou um cânon da lei da Igreja, ou mesmo um decreto conciliar. É o próprio Verbo de Deus, confiado aos apóstolos, que está sendo rejeitado. Não sabemos nada melhor do que Deus.

 

E como escreveu Bento, em um testemunho espiritual que foi publicado após sua morte: “O que eu disse antes aos meus compatriotas, agora digo a todos aqueles na Igreja que foram confiados ao meu ofício: Permaneçam firmes na fé! Não se deixem confundir!... Jesus Cristo é verdadeiramente o caminho, a verdade e a vida – e a Igreja, com todas as suas deficiências, é verdadeiramente o seu Corpo”.

 

Esse foi o grande ensinamento que eles deixaram, viveram e até, pode-se dizer, incorporaram. Se alguém já se assemelhou a um bastião, este foi o cardeal Pell; e havia algo no comportamento devoto e meditabundo de Bento que sugeria de fato uma pureza de coração - que, como disse Kierkegaard, significa “querer uma só coisa”.

 

Dan Hitchens é editor sênior da First Things.

    Para citar este texto:
"Bento e Pell"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/imprensa/cotidiano/bento-e-pell/
Online, 28/03/2024 às 19:24:50h