Religião-Filosofia-História



Depois de vencer todos os labirintos da Abadia e da História, o cético racionalista Frei Guilherme de Baskerville, com Adso, a testemunha que nada entende, penetra na sala secreta da biblioteca, no misterioso "Finis Africae". Lá, ele encontra sentado a uma mesa, tendo diante de si o intrigante livro causador de tantos crimes, o monge cego Jorge de Burgos.

Que fazia o cego na biblioteca?

Guardava o livro proibido.

- "Boa noite, venerável Jorge. Estavas à nossa espera? (...)

-"És tu, Guilherme de Baskerville? (...) Esperava-te (...) Sabia que chegarias"(R521). "Desde o primeiro dia, compreendi que compreenderias"(...) "Chegarias de qualquer modo."(R 523).

Adso, atônito, percebeu que "naquele momento, aqueles dois homens, a postos para uma luta mortal, admiravam-se reciprocamente, como se cada um tivesse agido apenas para obter o aplauso do outro (...) ao longo de sete dias cada um dos dois interlocutores marcando, por assim dizer, misteriosos encontros com o outro, cada um aspirando secretamente à aprovação do outro que temia e odiava."(R 531).

Édipo reencontrava Tirésias. O homem que via tudo pelos olhos da razão estava, de novo, frente à frente, com o cego senhor de uma visão do universo e de Deus completamente oposta àquela que se descerra aos olhos carnais.

Eles se odiavam e se admiravam. Admiravam-se pelo que tinham de semelhante. Odiavam-se pelo que tinham de oposto. Um era o espelho do outro. Como imagens invertidas em espelhos paralelos. Eram tão semelhantes e opostos como as duas faces de um slide. Uma face era a da Gnose. A outra era a do panteísmo. Uma face era anti-racional. A outra era racionalista. Uma era milenarista. A contrária era utópica. Ambas queriam um Reino naturalista. Eles se amavam e se odiavam. Atraiam-se e repeliam-se, como a Direita e a Esquerda, como Nazismo e Comunismo. Como tese e antítese. Eram duas faces de um mesmo ser: o Homem. Édipo é o complemento de Tirésias. Ambos, juntos, formariam o Homem. Frei Guilherme então é um só com Jorge de Burgos. O cego e o homem que vê são dois aspectos do Homem enquanto conhecedor, ou pela razão, ou pela intuição mística. Por isso, eles se admiravam mutuamente e dialeticamente se combatiam.

A identidade de Jorge com Guilherme, de Édipo com Tirésias - de Eco com Jorge Luís Borges- corresponde à concepção dialética do ser, comum quer ao marxismo racionalista quer à Gnose anti-racional.

Por sua vez, a oposição entre o Panteísmo racionalista e a Gnose anti-racional é também dialética. Ambas estas concepções se unem na adoração do homem. Do Homem Tirésias-Édipo, Frei Guilherme-Jorge de Burgos, Eco-Borges. Ambos -Gnose e Panteísmo- se opõem à concepção católica de Deus, do universo e do homem, que condenam por se pretender objetiva.

Um equívoco em que Eco persiste - e que ele como competente e sagaz medievalista não pode deixar de ter visto- é o de identificar a posição do místico Jorge de Burgos com a da Igreja Católica. Já quando do embate entre nominalismo e realismo vimos que Eco não se referiu de modo algum ao realismo moderado tomista.

De novo, agora, Jorge de Burgos é colocado como a encarnação do mundo católico medieval, tal qual a propaganda o apresenta: místico, irracional, esclerosado, fanaticamente intolerante, não hesitando em ultrapassar os limites do lícito, para fazer triunfar a sua cegueira.

Seu oponente, Frei Guilherme, é bem o figurino-propaganda do mundo moderno: científico, racionalista, relativista, cético, otimista, laico, mais do que compreensivo, tolerante.

Onde fica aí o tomismo, que soube harmonizar Fé e razão, céu e terra, Teologia e Filosofia, autoridade e liberdade, Igreja e Estado? Onde Eco coloca o tomismo que soube refutar quer o racionalismo fanatizante, quer o misticismo gnóstico, inimigo da razão?

Apesar de propositadamente apresentar a Igreja medieval na figura fanática de Jorge de Burgos, Eco - talvez por interesse de propaganda, para se aproveitar do prestígio que cerca o nome do grande Aquinate - insinua que a posição de São Tomás coincide com a do racionalismo. Por isso Eco faz o cego da biblioteca odiar Aristóteles e São Tomás. Quando Frei Guilherme indaga a Jorge de Burgos porque ele temia tanto o II Livro da Poética de Aristóteles, quando tantos outros autores haviam escrito sobre o tema do riso, o cego respondeu:

"Porque era do filósofo. [Aristóteles]. Cada livro daquele homem destruiu uma parte da Sabedoria que a Cristandade acumulara no correr dos séculos (...).

"Sabíamos tudo sobre os nomes divinos [alusão à obra Os Nomes Divinos, do escritor neo-platônico conhecido como o Pseudo Dionísio] e o dominicano [São Tomás de Aquino] sepultado por Abbone -seduzido pelo Filósofo- os nomeou de novo segundo as sendas orgulhosas da razão natural. Desse modo, o cosmos, que para o Areopagita [o Pseudo Dionísio] se manifestava, a quem soubesse olhar para cima [isto é, os místicos, cegos quanto à razão] a cascata luminosa da causa primeira exemplar, tornou-se uma reserva de indícios terrestres dos quais se remonta para demonstrar uma abstrata eficiência. Primeiro olhávamos para o céu, dignando de um olhar agastado a lama da matéria; agora, olhamos para a terra, e acreditamos no céu pelo testemunho da terra. Cada uma das palavras do Filósofo [ Aristóteles] sobre as quais já agora juram também os santos e os Pontífices, viraram [Sic] a imagem do mundo de cabeça para baixo. Mas ele não chegou a virar de cabeça para baixo a imagem de Deus. Se este livro se tornasse... tivesse se tornado matéria de livre interpretação, teríamos ultrapassado o último limite."(R 531-532).

Nesse texto fica bem clara a idéia de Eco: o tomismo é acusado de racionalismo pelo gnóstico Jorge de Burgos, quando, na verdade, ele não é racionalista. São Tomás defendia a liceidade de utilizar a razão, mas sempre iluminada pela Revelação.

O cego Jorge de Burgos, adversário do racionalista Frei Guilherme, o inimigo de São Tomás, recusa a demonstração feita pelo Aquinate da existência de Deus através da seqüência de causas e efeitos. Ora, o nominalista Frei Guilherme, como seu mestre Ockham, não aceitava exatamente essa prova da causalidade para provar que Deus existe. Nesse ponto, o cego e o nominalista estavam de acordo.

O que opõe o cego à visão de Frei Guilherme, é que ele vê a terra com pessimismo gnóstico - a terra é a lama- enquanto os racionalistas têm dela uma concepção otimista.

Tanto, ou mais que ao nominalismo relativista e cético, o cego se opunha ao tomismo. Para ele, todo o edifício racional elaborado pela escolástica aristotélica-tomista era uma profanação que invertia a ordem posta por Deus, tanto quanto as iluminuras monstruosas de Adelmo de Otranto.

Qual o segredo escondido no "Finis Africae"? Era o livro de Aristóteles sobre o riso, que o místico Jorge de Burgos não queria que fosse lido, porque, por meio dele, o racionalismo destruiria, segundo Jorge, toda a Fé. Só ri aquele que compreende. O riso é próprio do ser racional. O entendimento obtido de modo inesperado e muito claro dá uma tal satisfação ao intelecto que o homem ri.

Se o racionalismo passasse a usar de modo filosófico a arma do riso - de que trataria o suposto livro do Estagirita - o último limite estaria transposto e chegaria o fim dos tempos. A Fé seria destruída. Por isso, o cego Jorge ocultara o livro. (Não teria sido mais fácil, e sobretudo mais seguro, destruí-lo?)

Para chegar até ele, tinha-se que deslindar o labirinto do mundo-biblioteca, escapar das visões apavorantes e dos gases tóxicos adormecedores; dominar o medo das imagens deformantes, e até usar os termos, não como supositio personalis ou supositio simplex, mas apenas como supositio materialis, para entender o Primus e Septimus de Quatuor. E, última e mais terrível defesa, seria preciso manusear o livro proibido com luvas, porque o monge cego envenenara suas páginas, e, folheá-las, causava a morte.

Quando Adelmo de Otranto conseguiu obter o livro proibido graças a um comércio homossexual com o auxiliar de bibliotecário, Berengário de Arundel, desencadearam-se os eventos criminosos da Abadia. A esses eventos de natureza sexual estavam ligados o bibliotecário Malaquias e os hereges dolcinianos refugiados na Abadia. Atrás do labirinto das heresias, Eco situa o problema econômico, o labirinto das lutas entre o Império e a Igreja, a disputa pelo domínio do Papado, que, por sua vez, estava condicionado ao controle da doutrina, isto é, ao controle do labirinto da biblioteca. Desse modo, era a disputa pela posse do segredo escondido no "Finis Africae" que explicava todos os labirintos da Abadia do mundo e de sua História.

Os gnósticos, negando qualquer valor à razão criada pelo demiurgo, falsa bússola para enganar o homem no seu perambular pelo labirinto do mundo, detestam o riso.

Como os marxistas, Eco acha que a Igreja Católica - como toda religião- dominou a humanidade através do medo. Medo da morte. Medo do além. Medo do inferno. Por isso é que entre a igreja da Abadia e a biblioteca, instrumento do poder eclesiástico, estendia-se o cemitério. Vimos que para ir da Igreja abacial à biblioteca havia dois caminhos: um, claro e público, mas superficial, passava a céu aberto por entre os túmulos. Outro, secreto, esotérico e reservado aos iniciados nos segredos da Abadia, passava, subterrâneo, entre os mortos. Ambos os caminhos passavam pela morte e pelo medo.

Mas o riso vence o medo e a razão acaba por encontrar o caminho que conduz ao local mais recôndito da biblioteca do saber, mesmo que ela tenha que passar por entre a putrefação dos cadáveres.

Era para manter o domínio sobre a Igreja e desta sobre o mundo que o místico cego não admitia que os homens viessem a conhecer a filosofia do riso, que os libertaria dos últimos temores. É o que explica o cego da biblioteca, o filósofo do irracional, o monge Jorge de Burgos ao filósofo investigador, o racionalista Frei Guilherme de Baskerville.

Diz-lhe o monge cego que a Igreja tolerava o riso bruto dos simples e dos pequenos para descarregar seus humores e ambições, mas nunca o riso elevado ao nível filosófico, como o fizera Aristóteles.

"Aqui, [no livro de Aristóteles] a função do riso é invertida, elevada à arte, abrem-se-lhe as portas do mundo dos doutos. Faz-se dele objeto de filosofia e de pérfida teologia"(R532). "Este livro teria justificado a idéia de que a língua dos simples é portadora de alguma sabedoria.

"O riso bruto não é capaz de destruir, mas o riso elevado ao nível de sabedoria destruiria toda a fé."

"O riso liberta o aldeão do medo do diabo, porque na festa dos loucos, o diabo aparece pobre e estulto, portanto, controlável. Mas, este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é sabedoria. (...) este livro poderia ensinar aos doutos os artifícios argutos, e desde esse momento ilustre, com que se legitimasse a inversão [a revolução]. Então se transformaria em operação do intelecto o que, no gesto irrefletido do vilão é, ainda e afortunadamente, operação do ventre."(R 533).

"O riso livra, por alguns instantes, o aldeão do medo. Mas a lei é imposta pelo medo, cujo nome é temor de Deus. E desse livro [do riso] poderia partir a fagulha luciferina que atearia no mundo inteiro um novo incêndio: e o riso seria designado como arte nova, desconhecida até de Prometeu, para anular o medo. (...) Deste livro poderia nascer a nova e destrutiva aspiração de destruir a morte através da libertação do medo."(R 533). "Deste livro, quantas mentes corrompidas, como a tua [de Frei Guilherme ] tirariam o silogismo extremo pelo qual o riso é a finalidade do homem. "(R 533).

Libertado do medo da morte por meio do riso, o homem deixaria então de viver para o além. Ele passaria a ter um fim puramente terreno. Viveria para o riso, isto é, para o prazer material. Não buscaria mais a glória de Deus, mas sim a glória e o bem estar humanos. Não viveria mais para o céu, mas para a terra. Quereria construir o céu na terra. Teria por fim criar na terra o reino da felicidade. Viveria para a utopia. Rindo e gozando.

A ciência e a técnica - a magia santa de Bacon- seriam suas armas para construir uma torre de felicidade que trouxesse o céu para a terra. Nessa nova ordem dos séculos já não se tolerariam, na terra, imagens de um mundo superior divino. Não poderia existir nenhuma desigualdade, porque toda superioridade é uma imagem do poder de Deus. O reino da utopia atéia tem que ser absolutamente igualitário. O riso faria triunfar a Revolução.

"Este livro induziria os falsos sábios tentarem redimir (com diabólica inversão) o elevado através da aceitação do baixo. Deste livro derivaria o pensamento de que o homem pode querer na terra (como sugeria o teu Bacon a propósito de magia natural) a abundância própria do país da Cocagna. Mas é isso que não devemos e não podemos ter."(R 534).

Para o cego da biblioteca seria um crime afastar do mundo o sofrimento, e mesmo, o temor dele, a morte e o medo.

"Que seríamos, nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais próvido e afetuoso dos dons divinos?"(R 533).

O cego "Tirésias" profetiza então que a vitória do racionalismo naturalista sobre a religião, que a anulação do medo pelo riso, traria tal devastação que o mundo construído pelo racionalismo, qual nova Babel, seria aniquilado pelos escombros da religião arruinada.

"Mas, se um dia alguém, agitando as palavras do Filósofo [Aristóteles] e portanto, falando como filósofo, levasse a arte do riso à condição de arma sutil, se à retórica do convencimento se substituísse a retórica da irrisão, se à tópica da paciente e salvadora construção das imagens da redenção se substituísse a tópica da impaciente desconstrução e do reviramento de todas as imagens mais santas e veneráveis - oh naquele dia, também tu e toda a tua sabedoria, Guilherme, estaríeis destruído."(R 534).

Já "Tirésias" proclamara com voz profética sua visão desses futuros tempos:

"É o momento em que tudo cairá no arbítrio, os filhos levantarão as mãos contra os pais, a mulher tramará contra o marido, o marido chamará a mulher a juízo, os patrões serão desumanos para com os seus servos, e os servos desconhecerão aos patrões, os adolescentes pedirão o comando, o trabalho parecerá a todos uma fadiga inútil, por toda a parte se elevarão cânticos de glória à licença, ao vício, à dissoluta liberdade de costumes. E depois disso, estupros, adultérios, perjúrios, pecados contra a natureza se seguirão em grandes ondas, e males, e advinhações, e encantamentos, e aparecerão no céu corpos voadores, surgirão em meio dos bons cristãos falsos profetas, falsos apóstolos, corruptores, impostores, feiticeiros, estupradores, avarentos, perjuros e falsificadores, os pastores se transformarão em lobos, os sacerdotes mentirão, os monges desejarão as coisas do mundo, os pobres não acorrerão em ajuda aos chefes, os poderosos serão sem misericórdia, os justos se farão testemunhas da injustiça. Todas as cidades serão sacudidas por terremotos, haverá pestes em todas as regiões, tempestades de vento levantarão a terra, os campos serão contaminados, os mares distilarão humores negros, novos desconhecidos prodígios terão lugar na lua, as estrelas abandonarão seu curso normal, outras - desconhecidas- sulcarão o céu, nevará no verão e fará calor tórrido no inverno. E terão vindo os tempos do fim e o fim dos tempos..."(R 457).

Diante do novo Édipo, o velho "Tirésias" não hesita em proclamar que ele, cego, vê mais que seu adversário com os olhos e com a razão.

'Eu sei como se o visse escrito com letras de diamante, com meus olhos [cegos] que vêem coisas que tu não vês."(R 538), [porque tu és como aqueles que] não têm olhos para ver, disse o cego."(R 104).

Para este desastre terá contribuído, como diz o Apocalipse, aquele a quem "foi dada a chave do poço do abismo. E abriu o poço do abismo."(Apoc.IX,1-2). Aquele que recebeu as chaves, Pedro, abriu o poço, em vez de fechá-lo. Fez isto aquele que "tinha dois chifres semelhantes aos de um cordeiro, mas que falava como o dragão"(Apoc. XIII,11).

Para impedir que fosse aberto o poço do abismo, o cego Jorge de Burgos estava disposto a tudo. Até mesmo a matar o Abade que tinha as chaves da biblioteca.. E foi o que ele fez.

Quando Abbone foi convencido por Frei Guilherme de que a chave para explicar os crimes da Abadia estava na biblioteca, e que, na Abadia, "tudo se desenvolvia em torno do furto e da posse de um livro, que estava escondido no "Finis Africae"(R 503), e que ele, por saber mais que os outros, podia ser a próxima vítima, o Abade dirigiu-se à biblioteca, para lá falar com Jorge.

Para chegar ao "Finis Africae", o Abade utilizou uma passagem secreta. Quando entrou por ela, o cego Jorge de Burgos cortou as cordas que abriam e fechavam a passagem, e o Abade lá ficou aprisionado, sem possibilidade de sair. Desse modo, o Abade estava condenado a morrer.

Frei Guilherme, ao saber do fim do Abade, indagou a Jorge:

"Por que o mataste?" Por que mataste o Abade, isto é, o Papa ?

"Hoje, quando ele [Abbone] me mandou chamar, disse que graças a ti descobrira tudo. Não sabia o que eu tentava proteger, nunca chegou a entender exatamente quais eram os tesouros e os fins da biblioteca. Pediu-me para explicar-lhe o que não sabia. Queria que o "Finis Africae" fosse aberto [isto é, que se acabasse com o Índice dos livros proibidos]. O grupo dos italianos pedira-lhe para por um fim naquele que eles chamavam o mistério alimentado por mim e por meus predecessores. Estão agitados pela cupidez das coisas novas (...).(R522)Rerum novarum(...) cupidine.

De novo! De novo, Eco utiliza as palavras iniciais da famosa encíclica de Leão XIII. De novo, para fazer entender o que não está escrito, ele atrai a mente do leitor para o mundo atual.

O que causará toda a tragédia e até o incêndio da Abadia [ A Igreja? O mundo?] será a adesão do Abade [do Papa] ao racionalismo do mundo moderno. Abbone, no século XIV deixou-se convencer pelo filósofo nominalista. Hoje, no século XX, um outro Abbone teria se deixado convencer pelo racionalismo marxista. O grupo dos [Cardeais] italianos que dominara a Igreja antes que ela tivesse caído em poder dos não italianos, convenceu o Papa a exigir do cego bibliotecário do Santo Ofício, a que acabasse com todo o mistério da Igreja. Exigiram que o Papa abrisse as portas da Igreja aos ventos da renovação que, expulsando da biblioteca todo o ar viciado, todo o ranço medieval, pusesse fim ao mistério do sobrenatural. Só assim a Igreja se renovaria.

Ela deveria deixar de ser a serva de um misterioso Deus transcendental, para se tornar a escrava da humanidade. Deveria deixar de viver para a eternidade, para viver para a História. Deveria permitir que o homem, libertado de todo o temor da morte, passasse a viver para o "hinc et nunc". Foi para evitar tudo isso que o cego Jorge de Burgos - tão perverso quanto Borges?- matou o Papa.

Que quer dizer isto tudo? Que mistério de "Finis Africae" está escondido nas entrelinhas dos labirintos de Eco? Ou não está escrito nada nas entrelinhas? Qual a mensagem que ele quiz enviar a "dois Cardeais" através de O nome da Rosa? Ou não há mensagem alguma? Quiz ele apenas que mentes paranóicas imaginassem qual fantasma ?

Teria ele querido dizer ou fazer imaginar que gnósticos anti-racionalistas enquistados na Igreja Católica -ou no que ele errônea e propositadamente identifica com a própria Igreja- estariam dispostos a matar o Papa, caso este aderisse ao racionalismo marxista, ou, caso o "grupo dos italianos" da Cúria exigisse uma Perestroika ou uma Glasnost eclesiástica que desvelasse o mistério da Igreja, demonstrando que ela nada tem de sobrenatural, porque o sobrenatural não existe ?

É tudo isto uma pura coincidência, ou ainda apenas uma leitura possível a mais - e muito imaginativa - que Eco sugere em uma obra aberta que pretende ser uma inesgotável fábrica de novas leituras? Será a obra aberta uma parente moderna do "Trobar Clus"? Aberta e hermética, na dialética de Eco, coincidem ?

Entre Frei Guilherme e Jorge de Burgos estava aberto, sobre a mesa do "Finis Africae", o famoso livro de Aristóteles a respeito do riso. O místico cego fingiu - se vencido e ofereceu o livro ao franciscano, para que o lesse. Frei Guilherme começou a folhear as páginas envenenadas, que nada podiam fazer-lhe porque calçara luvas. Quando Jorge se deu conta que seu inimigo vencera também este último ardil, ele realizou, literalmente, o que profetizara a sétima e última trombeta do Apocalípse:

"Vai e toma o livro aberto da mão do anjo (...) Toma o livro e devora-o e ele fará amargar o teu ventre, mas, na tua boca, ele será doce como o mel. E tomei o livro da mão do anjo e devorei-o; e na minha boca era doce como mel; mas depois que o devorei, meu ventre ficou amargurado"(Apoc. X, 8-10).

Jorge de Burgos arrancou então das mãos de Frei Guilherme o livro da sabedoria proibida, e, para destruí-lo, começou a rasgar e a comer suas páginas envenenadas. Desse modo, ele queria selar para sempre, em seu ventre, qual túmulo, o livro do riso. Ele comia satisfeito e de sua boca escorria uma baba amarela e venenosa.

Nas Postille al Nome della Rosa, Eco declara que "por razões histórico-cosmológicas", no final de seu romance, o edifício da biblioteca deveria incendiar-se e queimar toda a Abadia. O mundo dos livros, portadores de idéias, ia destruir a Igreja e seu mundo, porque "dum venerit Christus judicare soeculum per ignem" [quando Cristo vier julgar o mundo pelo fogo], não encontrará fé sobre a terra.

O embate entre Gnose e Panteísmo, Utopia contra Milênio; a luta de Borges Burgos contra Guilherme-Eco deveria terminar, por causa da perversidade de Borges e por razões histórico-cosmológicas, pelo fogo.

Quando Frei Guilherme tentou arrebatar o livro envenenado das mãos de Jorge de Burgos, antes que ele o devorasse completamente, na luta, o monge cego agarra a lamparina de Adso e a lança no meio dos livros da biblioteca. Pereça Borges com seus livros, antes que triunfe a razão e seu riso.

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A biblioteca toda se consumiu no fogo e comunicou o incêndio à própria Igreja. Pensava-se que era impossível que a Igreja, sendo de pedra - a Igreja de Pedro- fosse queimada, "porque a casa de Deus aparece bela e bem definida como a Jerusalém celeste por causa da pedra que lhe dá pompa, mas as pedras e as abóbodas são erigidas sobre uma frágil, mesmo que admirável, arquitetura de madeira (...) Ela pegou fogo num tempo curtíssimo (...) O fogo se comunicara pelo alto onde era difícil içar-se para combater as chamas ou abafá-las com terra e trapos"(R 549-550).

O incêndio se comunicara ao cume da Igreja de pedra através das fagulhas que saltavam da biblioteca. É pelo alto que a Igreja de Pedro pode ser queimada, quando suas autoridades se deixam contagiar por idéias incendiárias. A igreja medieval foi incendiada rapidamente, mas levou séculos para se consumir.

"Olhamos a igreja que agora ardia lentamente, porque é próprio dessas grandes construções incendiar-se logo nas partes lígneas e depois agonizar por horas, às vezes por dias "(R 551).

Toda a Abadia ardeu: biblioteca, igreja, oficinas. daquele mundo medieval, nada restou...

A testemunha que relata a história - o noviço Adso de Melk- ao concluir a sua narração, ele que seguira com atenção admirada as explicações de seu mestre nominalista e racionalista, diz frases que mostram ter ele aderido, posteriormente, às doutrinas místicas e gnósticas de Mestre Eckhart, uma versão histórica do monge cego Jorge de Burgos. "Escolheu uma fuga para o Nada divino, que não era a que lhe ensinara seu mestre" (R 32). Seu Deus não era mais o Deus da Igreja Católica, Pai Omnipotente, criador do céu e da terra, mas a Divindade-Nada de que falavam Eckhart e a Cabala.

"Em breve terei chegado ao meu princípio, e não creio mais que seja o Deus da glória de que falavam os abades de minha ordem, ou de alegria, como acreditavam os minoritas de então, talvez nem mesmo de piedade. Gott ist ein lautes Nichts, ihn rührt kein Nun noch Hier... Penetrarei logo nesse deserto imenso, perfeitamente plano e incomensurável, em que o coração verdadeiramente pio sucumbe bem-aventurado. Afundarei na treva divina, num silêncio mudo e numa união inefável e nesse afundar-me será perdida toda igualdade e toda a desigualdade, e naquele abismo meu espírito perderá a si mesmo e não conhecerá nem o igual nem o desigual, nem o nada; e serão esquecidas todas as diferenças, estarei no fundamento simples, no deserto silencioso onde nunca se viu diferenças, no íntimo onde ninguém se encontra no próprio lugar. Cairei na divindade silenciosa e desabitada onde não há obra nem imagem. "(R 562).

É indubitável que essa Divindade-Nada, se parece até a identificação com o Nirvana búdico ou com o Ein-Sof da Cabala, mas que é diametralmente oposta ao Deus uno e trino, Pater luminum, adorado pela Igreja Católica Apostólica Romana.

E Adso conclui seu livro escrevendo :

"Está fazendo frio no scriptorium, dói-me o polegar; deixo esta escritura não sei para quem, não sei mais sobre o quê: stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemur" (R 562).

"Permanece a rosa antiga pelo nome; temos apenas o vazio dos nomes..." É a tese nominalista que triunfa. Mas, de modo ambíguo. temos só os nomes das coisas no sentido ockhamista de que não existem os universais, ou no sentido gnóstico, negador da existência real do mundo material ?

Adso provavelmente não saberia responder essa questão. Pois não é ele a testemunha que nada entendeu ?

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Adso nada entendeu do que viu, mas, por meio dele Eco faz compreender que a luta a que se assiste hoje no mundo, e em toda a História, é travada entre duas correntes que se opõem à Igreja católica: uma corrente hermética gnóstica, negadora da razão, e uma corrente racionalista. A corrente hermética seduz seus adeptos prometendo-lhes um segredo vazio. A corrente racionalista pretende oferecer a seus seguidores a posse de uma certeza fugidia, evolutiva e inaferrável. Ambas enganam e mentem. Ambas, odiando a doutrina católica, digladiam uma com a outra, odiando-se e admirando-se... Uma é nazistóide. Outra é marxistóide

Nessa luta, hoje, o racionalismo marxista, em que pesem os seus fracassos econômicos e políticos, domina ainda muitas mentes, porque seus ideais e objetivos -materialismo, evolucionismo, igualitarismo idolatria do Homem- se tornaram dogmas laicos para quase toda a humanidade. Esses dogmas são ensinados, hoje, em todas as escolas -especialmente nas que se dizem católicas- e em todos as tribunas e em todos os desaparecidos púlpitos. O marxismo caiu na Rússia e no Leste europeu. O materialismo, igualitário e evolucionista, vive em todo o Ocidente capitalista, que leva seu ateísmo prático até quando vai à Missa ouvir Rock e "partilhar o pão", e não mais adorar a Cristo na renovação do sacrifício do Calvário. Como vimos, o próprio Paulo VI declarou, no encerramento do Concílio Vaticano II, que, nesse Concílio, a Igreja se fez como que serva da humanidade, repudiando seu dever de servir a Deus e não ao mundo. Na Biblioteca da Igreja - na atual Congregação da Doutrina da Fé- está hoje um bibliotecário alemão, o Cardeal Ratzinger, que defende a tese de que a Constituição Apostólica Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II "desempenha o papel de um Anti-Sílabus" e "expressa o intento de reconciliação oficial da Igreja com a nova época estabelecida a partir do ano 1789"(Joseph, Cardeal Ratzinger,Teoria de los Princípios Teológicos, Herder, Barcelona, 1985, pp 457 e 458).

E João Paulo II chegou a declarar - é verdade que antes da queda do muro de Berlim - que a Teologia da Libertação, confessadamente marxista, é "útil, necessária e oportuna"(João Paulo II, Carta aos Bispos do Brasil,, 1986).

Parecia, pois, que a corrente hermética perdera totalmente a luta. No desespero de uma derrota que parecia inevitável, antes da queda do Muro de Berlim, imaginava-se que os gnósticos poderiam fazer uma loucura, desencadeando o incêndio nuclear. Conforme a alegoria de Eco, os líderes da corrente mística, encastelados na Igreja de Pedro e em sua biblioteca, estariam dispostos a matar o Papa [Abbone?] que, dominado pela "Rerum Novarum (...) cupidine", aderisse ao racionalismo marxista, e ao espírito da civilização moderna, com o qual a Igreja não pode se conciliar, no dizer do Syllabus. (Pio IX, Syllabus, erro 80). Prefeririam o apocalipse atômico ao triunfo de seus adversários.

Seria esta a mensagem fictícia que Eco faz aos "alegoristas" encontrarem no âmago de seus labirintos? Para rir-se depois deles e de sua imaginação, dizendo que tudo é ficção sua. Para que identifiquem o mapa com o território. A ficção com a realidade. Mas, não é porque há mapas de ilhas imaginárias com tesouros de lenda, e não é porque há maníacos que buscam arcas de ouro fictícias que não existem e nunca podem existir ilhas com arcas escondidas. Não é porque os romances policiais imaginam crimes rocambolescos que, na realidade da vida, não possam existir tramas criminosas genialmente urdidas. E não é porque semióticos compõem obras-abertas com labirintos que escondem segredos vazios, que fica comprovado que a História é, ela também, um labirinto sem tramas, sem conspirações e sem segredos.

Mas não é arriscado fazer analogias desse porte?

"Não há dúvida que é perigoso estabelecer simples analogias; mas é outro tanto perigoso recusar-se individualizar relações por uma injustificada fobia das analogias, própria de espíritos simples e de inteligências conservadoras. queremos recordar uma frase de Roman Jacobson: "Àqueles que se espantam facilmente com as analogias arriscadas, responderei que também eu detesto fazer analogias perigosas; mas amo as analogias fecundas" (Essais de Linguistique Générale, Paris, Ed. de Minuit, 1963, p. 38) Uma analogia deixou de ser indevida quando é colocada como ponto de partida para uma verificação ulterior"(U.Eco, Opera Aperta, Bompiani, Milano, 1988, p. 56, nota 18).

Cremos que Eco externou a opinião das correntes hermética e racionalista sobre a situação do mundo e seu futuro presumível, tal qual se apresentava nos tempos da guerra fria, quando foi escrito O Nome da Rosa. Pessoalmente, ele faz questão de fazer entender, que ele crê, que o labirinto hermético guarda o segredo de que não há segredo. Guarda um segredo vazio; deixa entrever ainda que, para ele, o racionalismo também incide em falsidade na medida em que defende a possibilidade de o conhecimento da realidade ser objetivo. Para Eco, ambas as correntes - a hermética e a racionalista - são ilusórias. Da posição católica, ele nem cogita, tanto a considera absurda e odiosa.

É claro que não tendo dito ele o que pensa senão veladamente, não se deve esperar que ele venha a público esclarecer seu pensamento secreto. Tanto mais que a evolução dos acontecimentos no bloco comunista afastou para longe a possibilidade de um incêndio atômico do mundo, sonhado e desejado pelo delírio dos herméticos.

Aos que negarem cidadania à nossa leitura do livro de Eco, poderemos pelo menos lembrar-lhes que pretendem tornar o romance de Eco "fechado" apenas para nossa interpretação.

Talvez digam que é próprio de mentes imaginativas querer entender um livro não pelo que ele diz... É para tais mentes hiperimaginativas que Eco escreveu "O Pêndulo de Foucault ", em cujo final se lê :

"Quereria ter escrito tudo o que pensei desde essa tarde até agora. Mas, se "Esses" o lessem, deduziriam dele uma outra obscura teoria e passariam a eternidade procurando decifrar a mensagem secreta que se esconde atrás de minha história. É impossível, diriam, que este aqui nos tenha contado que estava apenas rindo-se de nós. Não, é possível que ele não o soubesse, mas o Ser nos lançava uma mensagem através de seu esquecimento."

"Que eu tenha escrito ou não, não faz diferença. Procurariam sempre um outro sentido, até no meu silêncio. São feitos assim. São cegos à revelação. Malkult é Malkult, e chega".

"Mas vão dizer-lhes isso. Não têm fé."(U.Eco, O Pêndulo de Foucault, Bompiani, Milão, 1988, pp. 508 -509).

Portanto, qualquer interpretação do labirinto é falsa. O Nome da Rosa é um livro que deveria ser entendido pelo que Eco diz no O Pêndulo de Foucault, um livro que deveria ser entendido pelo diz e não pelo ele quis dizer. É o que afirma Édipo no O Pêndulo de Foucault.

Ou dever-se- ia crer em Tirésias quando ele afirma:

"Isto não significa que a obra não tenha um sentido: se [Eco] nela introduz chaves é exatamente porque deseja que a obra seja lida de um certo sentido. Mas este "sentido" tem a riqueza do cosmos, e o autor quer, ambiciosamente que ele implique a totalidade dos espaços e dos tempos possíveis."(U. Eco, Opera Aperta, Bompiani, Milão, 1962, p.4- A tradução é nossa).

Em quem crer? No que crer? No segredo vazio? No racionalismo- ilusão? Na incerteza relativista semiótica?

Em quem crer? Em Édipo ou em Tirésias? Em Frei Guilherme ou em Jorge de Burgos? Em Eco ou em Borges?

"Maldito o homem que confia no homem"(Jer. XXII,5)

CREDO IN UNUM DEUM.

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São Paulo, 25 de janeiro de 1994
Orlando Fedeli

 
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Online, 19/04/2024 às 22:02:38h