Política e Sociedade

Formas de governo
PERGUNTA
Nome:
Roberto
Enviada em:
02/06/2002
Local:
Brasil



Prezado Sr. Orlando Fedeli,

Antes de tudo congratulações pelo grandioso trabalho em prol do catolicismo realizado aqui por este sítio. Escrevo-lhe em razão de algumas dúvidas diante do ensinamento da Igreja em relação à política.

Por mais que eu me esforce, não consigo aceitar a democracia como um sistema de governo legítimo, onde governo e governados, autoridade e obediência se misturam de tal forma que não se pode definir com clareza o que cada coisa representa em uma sociedade como essa, concepções contrárias à natureza, insustentáveis pelo que foi exposto pelo Papa São Pio X, ao condenar os erros do Sillon na Carta Apostólica Notre Charge Apostolique.  São Pio X disse, com sabedoria, que "o Sillon faz descer de Deus esta autoridade, que coloca em primeiro lugar no povo, mas de tal forma que "sobe de baixo para ir ao alto, enquanto na organização da Igreja, o poder desce do alto para ir até em baixo" (Marc Sangnier, discurso de Rouen, 1907)".  Ora, acompanhando o raciocínio do Santo Padre, seria analogamente correto (e absurdo!), aceitar a democracia em todas as instituições sociais, como a família, onde por exemplo em uma família de 5 pessoas: 2 pais e 3 filhos, os filhos, estando em maioria (3) e tendo uma vontade comum, embora incorreta mas soberana, teriam para si a autoridade sobre os pais que estão em minoria (2).  Portanto, não consigo entender como a democracia pôde ter sido digerida pela Igreja não sendo sustentável pela natureza. Questiono ainda como o nosso Papa João Paulo II pode defender a democracia como um "sumo bem": "Só o respeito da vida pode fundar e garantir bens tão preciosos e necessários à sociedade como a democracia e a paz" (cf. Encíclica Evangellium Vitae).

Gostaria de saber, ainda, qual é o ensinamento da Igreja em relação ao respeito às autoridades constituídas, já que o princípio de obediência à autoridade está claramente definido em Romanos 13, 1-2: "Todos se submetam às autoridades constituídas. Pois não há autoridade que não venha de Deus, e as existentes foram instituídas por Deus.  De sorte que quem resistir à autoridade, resiste à ordem de Deus, e os que se opõem, atraem sobre si a condenação".  Ora, está claro que apesar do contexto da época, todos os regimes políticos eram conhecidos e consistiam em respeito às autoridades pelos governados.  Um evento como a Revolução Francesa, portanto, constitui uma afronta a uma autoridade legitimamente investida, já que o povo sedicioso se contrapunha ao monarca instituído por Deus.  Então concluímos que as revoluções liberais e comunistas que se seguiram consistiram em rebeliões contra Deus, já que não respeitavam as monarquias investidas do poder supremo.  Logo, qual a estrutura política que a Igreja aceita como legítima: a anterior às revoluções ou as posteriores?  A republicana ou a monárquica?  A experimentada ou a não experimentada?  O que a Igreja entende por autoridade?  É um ente abstrato (Estado) ou um número de pessoas investidas de poder (governo)?

Pelo que pude entender, a Igreja ensina que as revoluções são legítimas quando há tirania:

"Revolução

31. Não obstante, sabe-se que a insurreição revolucionária - salvo casos de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país - gera novas injustiças, introduz novos desequilíbrios, provoca novas ruínas. Nunca se pode combater um mal real à custa de uma desgraça maior."

Carta Encíclica Populorum Progressio, Papa Paulo VI

Diante do exposto, parece-me que a Igreja ensina que um governo só é legítimo quando procura o bem comum. Caso contrário é tirânico, seja ele monárquico, democrático ou aristocrático.  Então, por exemplo, temos hoje no Brasil uma tirania, já que as elites governantes nos oprimem com impostos e exclusão social.  Temos um caso de uma justificável revolução?

Por último, me causou surpresa um e-mail dando conta da canonização de Thomas Morus, em 1935, pelo Papa Pio XI, já que as suas idéias expostas em sua maior obra, Utopia, são claramente contrárias ao catolicismo.

Senão vejamos:

"Eis o que invencivelmente me persuade que o único meio de distribuir os bens com igualdade e justiça, e de fazer a felicidade do gênero humano, é a abolição da propriedade.  Enquanto o direito de propriedade for o fundamento do edifício social, a classes mais numerosa e mais estimável não terá por quinhão senão miséria, tormentos e desesperos."

Utopia, p. 71, Coleção Ediouro.

Diante do exposto eu pergunto: o que levou o Papa a canonizá-lo?

Obrigado e fique com Deus.

Sds,

Roberto.

RESPOSTA


Prezado Roberto,
salve Maria!

     Muito lhe agradeço suas palavras generosas em prol de nosso trabalho no site Montfort. Peço-lhe que reze por nós, que muito necessitamos de orações, em nosso combate, porque o demônio nos faz dura guerra.
     Sua pergunta, e o modo de fazê-la, revelam uma pessoa de cultura, e com preocupação de manter uma visão católica, mesmo no campo político. Por isso, é com redobrada atenção que lhe respondo.
     Antes de tudo, queria deixar bem claros dois pontos:

1) O mal da sociedade atual é de caráter moral e religioso. Os problemas políticos imensos e graves da hora presente são conseqüentes dessa crise religiosa e moral. Portanto, a solução verdadeira, e profunda dos males presentes, não é política. Assim como a alguém que sofre de câncer no intestino, não adianta tentar curá-lo com pomada para reumatismo aplicada no joelho, assim também, mudar a forma de governo não traria solução nenhuma para os males atuais, que são muito mais profundos. A adoção de qualquer forma de governo, mesmo a mais excelente e mais de acordo com a doutrina católica, não resolveria a crise moderna, pois os homens continuariam com os mesmos vícios. Pior. Dir-se-ia que a continuação dos males seria causada pela nova forma de governo, mais católica do que a democracia liberal, ora vigente, em grande parte do mundo.

2)     Nossa preocupação primeira, no site Montfort, não é política. Por isso, normalmente, não abordamos problemas políticos, mormente os nacionais, visto que, no Brasil, a política corre como erva daninha bem rasteira. Veja a atual campanha eleitoral...

Portanto, escrevendo esta carta, não pretendemos fazer a defesa e nem a propaganda de qualquer forma de governo, nem, muito menos, tomar posição política em concreto. Limitamo-nos a tratar o problema posto do simples ponto de vista doutrinário.

     Como você bem deve conhecer, prezado Roberto, Aristóteles e São Tomás demonstram que há somente três formas de governo legítimas:

1) A Monarquia, ou governo de uma só pessoa;

2) A Aristocracia, ou governo de um grupo de pessoas melhores. Este grupo pode ser desde o menor grupo -- que é de duas pessoas -- até o maior grupo possível num conjunto, que é formado por todos menos um;

3) A Democracia, que sé o governo de todos

      A doutrina católica afirma, com São Tomás e com os Papas que trataram desse tema, por exemplo, Leão XIII, que essas três formas de governo são legítimas, enquanto seus constituintes buscam o bem comum.

"Também não é de si contrário ao dever preferir para o Estado um regime democrático, ficando a salvo, entretanto, a doutrina católica da origem e exercício do poder público. A Igreja não rechaça nenhum dos vários regimes do Estado, contanto que sejam capazes de buscar o bem comum dos cidadãos"(Leão XIII, Libertas Praestantissima, Denzinger, 1934).

     Por bem comum não se entende o bem de todos, mas sim o bem geral da sociedade.
     Desde que os governantes busquem o bem pessoal, ou de um grupo em particular, e não o bem comum, estas formas de governo degeneram, produzindo formas de governo corruptas.
     Assim, a Monarquia corrompida gera a Tirania, que é o governo de um só buscando apenas a sua vantagem, ou a de seus parentes e amigos.
     A corrupção da Aristocracia gera a Oligarquia ou o governo de um grupo corrompido, que não busca o bem comum, mas a sua conveniência.
     A corrupção da Democracia produz a Demagogia, em que todos governam, procurando a utilidade própria. É o rouba-rouba generalizado, típico das repúblicas modernas, das quais, infelizmente nosso país não está excluído.
     Portanto, mais do que em Democracia, vivemos em uma forma de governo corrupta que deve ser qualificada de Demagogia, tantos são os governantes e políticos corruptos, capazes de roubar eleições e o erário público.
     E não se julgue que a famosa Democracia americana seja perfeita. Haja vista os problemas de trapaça eleitoral, na última eleição presidencial, ocorridos na Flórida, onde, durante muito tempo, não se sabia quem tinha vencido, tantas foram as contagens feitas e refeitas. Sempre suspeitas. Jamais perfeitas.
     A imprensa falou com tanta insistência dessas fraudes de contagem de votos, que se disse: "A mídia quer que a eleição de Bush gore".
     Vivemos em Demagogia, em que se roubam urnas e votos, instrução e informação, verbas e verbos, com anões do orçamento, e gigantes da fraude. Demagogia em que nos impingem quatro candidatos à Presidência, em que três incompetentes marxistas concorrem com um comunista incompetente e castrista, mas defendido pelo presidente da Conferência Episcopal, e ao qual Dom Arns garante que Deus e a Igreja sempre estiveram com ele. Como se Dom Arns fosse íntimo de Deus, conhecendo até seu pendor eleitoral. Ou como se o ex Cardeal de São Paulo--- que tanto mal fez à Igreja e ao país com sua defesa da Teologia da Libertação e dos famigerados direitos humanos dos criminosos, tivesse feito uma pesquisa eleitoral celestial, junto com seu angélico auxiliar Dom Sândalo.
     E ainda se diz que o POVO é que escolhe o Presidente, quando, na verdade, o miúdo povinho é obrigado a escolher entre três ou quatro "escolhidos" por não se sabe que deuses ou que forças mais ou menos ocultas... Como dizia um bem exótico ex-presidente desta exótica república.
     Nessa Demagogia -- que se encaixa precisamente no conceito de Demagogia de Aristóteles -- é que nós vivemos, e é a ela que nos apontam como a única forma perfeita e possível de governo de um povo civilizado, e televisisticamente domesticado.
     Que não se julgue errado o que digo. A Democracia é uma forma legítima de governo, tal qual a Aristocracia e a Monarquia. O que estou atacando é a Demagogia que safadamente nos impingem, é a Democracia liberal, que não é a Democracia aristotélica e tomista, que a doutrina da Igreja aceita.
     O que você diz não aceitar é exatamente essa Democracia Liberal que a Igreja sempre condenou.
     A Democracia que a Igreja considera lícita é bem diferente da Democracia Liberal, nascida da Revolução Francesa. Pois outro erro safado que enfiam pelas orelhas do mundinho estudantil é que a Democracia só existiu na Grécia Antiga, e depois ressurgiu na Revolução Francesa com a corda da guilhotina na mão.
     A famosa Democracia grega, durante bem largo tempo de sua história, só admitiu o voto de uma pequena porcentagem de indivíduos, e, apesar de pagã, ela nunca chegou ao horror -- e ao Terror --- da Democracia jacobina de Robespierre.
     A Democracia aceita pela Igreja é aquela que admite a desigualdade de direitos; que não aceita o sufrágio universal igualitário como fonte de poder; aquela que afirma que o poder vem de Deus e não do povo; aquela que considera que o Estado tem que estar unido à Igreja, isto é, aquela em que o Estado reconhece a Igreja como representante da única Religião verdadeira, e que não permite a difusão organizada de doutrinas heréticas; aquela que não aceita a utópica e mentirosa divisão de poderes de Montesquieu, pois o poder é sempre uno; aquela em que não existe liberdade para o erro e para o vício; assim como as outras liberdades que foram condenadas pela Igreja (Cfr Pio IX, Syllabus e Quanta Cura; Leão XIII, Libertas Praestantissima; Gregório XVI, Mirari Vos).
     A Democracia Liberal -- que a Igreja condena por ser liberal e não por ser Democracia -- é aquela que considera todos iguais em direitos políticos; que afirma que o poder vem do povo e não de Deus; que deve haver liberdade para o erro e para o vício, as liberdades de perdição de que fala Santo Agostinho e o Papa Leão XIII; aquela que propugna a divisão utópica de poderes que nunca existiu nem pode existir.
     E, para que não se pense que esta é uma mera opinião nossa, citarei, a seguir, o que ensinaram Pio IX e Gregório XVI a respeito das falsas liberdades modernas ensinadas e preconizadas pelo liberalismo, e instituídas pela Democracia liberal entronizada pela Revolução Francesa:

"E partindo dessa falsa idéia social, seus propagadores não temem em fomentar a opinião, desastrosa para a Igreja Católica e a salvação das almas, denominada por Nosso Predecessor, de feliz memória [Gregório XVI], de "loucura" (Mirari Vos), de que a liberdade de consciência e de cultos é direito próprio e inalienável do indivíduo, que há de proclamar-se nas leis e estabelecer-se em todas as sociedades retamente constituídas de que aos cidadãos assiste o direito de toda a liberdade sem que a lei eclesiástica e civil a possa reprimir, liberdade para manifestar ou declarar publicamente qualquer idéia, já pela palavra, já pela imprensa, ou por outra via qualquer". E não se apercebem de que, enquanto pensam e excogitam todas essas coisas, estão pregando as "liberdades de perdição" (Santo Agostinho, Epístola CV, al. 166) ( Pio IX, Quanta Cura, n0 4).

[Para não alongar este texto, colocarei como documento, em nota, no final desta carta, o trecho da encíclica Mirari Vos, condenando as liberdades do liberalismo]

     Essa Democracia liberal, atéia e igualitária é a mãe do comunismo, que só leva seus princípios às últimas conseqüências.
     É essa Democracia Liberal aquela que o Sillon de Marc Sangnier, pai da Democracia Cristã, defendia. Essa Democracia Liberal é aquela da qual você tem razão -- em quase tudo -- ao afirmar que:

"Por mais que eu me esforce, não consigo aceitar a democracia --- [é aqui que você deveria acrescentar o adjetivo liberal, para que sua frase ficasse de acordo com a doutrina católica, pois a democracia enquanto tal é admitida pela Igreja Católica] --como um sistema de governo legítimo, onde governo e governados, autoridade e obediência se misturam de tal forma que não se pode definir com clareza o que cada coisa representa em uma sociedade como essa, concepções contrárias à natureza, insustentáveis pelo que foi exposto pelo Papa São Pio X, ao condenar os erros do Sillon na Carta Apostólica Notre Charge Apostolique. São Pio X disse, com sabedoria, que "o Sillon faz descer de Deus esta autoridade, que coloca em primeiro lugar no povo, mas de tal forma que "sobe de baixo para ir ao alto, enquanto na organização da Igreja, o poder desce do alto para ir até em baixo" (Marc Sangnier, discurso de Rouen, 1907)". (Até aqui, as suas palavras).

     Pois você não precisa aceitar esse tipo de democracia que se quer impingir como única forma de governo legítima.
     Constate como São Pio X condena o erro do Sillon que afirmava ser a Democracia -- [e, pior, a Democracia liberal] -- a única forma legítima de governo:

"22. O Sillon, que ensina semelhantes doutrinas e as põe em prática em sua vida interna, semeia portanto entre a vossa juventude católica noções erradas e funestas sobre a autoridade, a liberdade e a obediência. Outra coisa não acontece quanto à justiça e à igualdade. Trabalha, como afirma, para realizar uma era de melhor justiça. Assim, para ele, toda desigualdade de condição é uma injustiça ou, pelo menos, uma justiça menor! Princípio soberanamente contrário à natureza das coisas, gerador de inveja e de injustiça, subversivo de toda a ordem social. Assim, só na democracia inaugurará o reino da perfeita justiça! Não é isto uma injúria às outras formas de governo que são rebaixadas, por este modo, à categoria de governos impotentes, apenas toleráveis! De resto o Sillon, ainda sobre este ponto, vai de encontro ao ensinamento de Leão XIII. Poderia Ter lido na Encíclica já citada sobre o Principado Político que, "salvaguardada a justiça, aos povos não é interdito escolher o governo que melhor responda a seu caráter ou às instituições e costumes que receberam dos antepassados", e a Encíclica faz alusão à tríplice forma de governo bem conhecida. Supõe, portanto, que a justiça é comparável com cada uma delas. E a Encíclica sobre a condição dos operários não afirma claramente a possibilidade de restaurar-se a justiça nas organizações atuais da sociedade, pois que indica os meios para isso? Ora, sem dúvida alguma, Leão XIII queria falar não de uma justiça qualquer, mas da justiça perfeita. Ensinando, pois, que a justiça é compatível com as três formas de governo em questão, ensinava que, sob este aspecto, a Democracia não goza de um privilégio especial. Os "sillonistas", que pretendem o contrário, ou recusam ouvir a Igreja ou têm da justiça e da igualdade um conceito que não é católico."(São Pio X, Carta Apostólica Notre Charge Apostolique -- Contra os erros do Sillon).

     Veja ainda como São Pio X lhe dá razão, ao condenar o democratismo liberal do Sillon:

"Em primeiro lugar, seu catolicismo -- o do Sillon -- só se acomoda com a forma democrática de governo, que julga ser a mais favorável à Igreja, e como que se confundindo com ela; portanto, entenda sua religião a um partido político, Não precisamos demonstrar que o advento da democracia universal não tem importância para a ação da Igreja no mundo; já temos lembrado que a Igreja sempre deixou às nações o cuidado de se dar o governo que consideram mais vantajoso para seus interesses. O que Nós queremos afirmar ainda uma vez após nosso predecessor, é que há erro e perigo em enfeudar, por princípio, o catolicismo a uma forma de governo; erro e perigo que são tanto maiores quando se sintetiza a religião com um gênero de democracia cujas doutrinas são erradas. Ora, é o caso do Sillon, o qual, de fato, e em favor de uma forma política especial, comprometendo a Igreja, divide os católicos, arranca a juventude e mesmo padres e seminaristas à ação simplesmente católica, e esbanja, em pura perda, as forças vivas de uma parte da nação" (São Pio X, Notre Charge Apostolique  -- Contra os erros do Sillon).

     Sua aplicação do princípio democrático liberal à família também é correto, pois a família é naturalmente monárquica. Imaginou você uma família com a divisão de poderes? O pai com poder executivo, a mãe com o poder legislativo, e a sogra com o poder judiciário?
     Só haveria conflitos... Exatamente como na nossa Demagogia Liberal.
     Se o Papa João Paulo II tivesse defendido a Democracia como "Sumo bem", e em sentido próprio, ele estaria dizendo que a Democracia é Deus, pois o "Sumo Bem" é o ser absoluto, Deus.     
     Isso não poderia ser entendido literalmente, de modo algum.
     Vai ver que o Papa comparava a Democracia às tiranias comunistas. E mesmo assim, ela não seria o "Sumo bem", de modo algum.     
     Você mesmo dá uma citação um tanto diversa do que disse o Papa:

"Só o respeito da vida pode fundar e garantir bens tão preciosos e necessários à sociedade como a democracia e a paz" (cf. Encíclica Evangelium Vitae. O negrito é meu).

     Repare que, nesse texto de João Paulo II que você cita, o Papa afirma que a democracia e a paz são bens "preciosos e necessários", mas não os chama de "sumo bem".
     Vejamos, agora, a questão da origem do poder.
     Ensina a Sagrada Escritura que todo o poder vem de Deus: "Non est enim potestas nisi a Deo", "Não há poder que não venha de Deus" (Rom. XIII, 1).
     E Leão XIII ensina que "O poder público só pode vir de Deus (...) de tal modo que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse poder senão de Deus, Chefe supremo de todos" (Leão XIII, Immortale Dei).
     O mesmo Papa Leão XIII combate o erro dos pseudofilósofos do século XVIII, sancionado pela Revolução Francesa, de que o poder vem do povo ao ensinar que:

"Bom número de nossos contemporâneos, seguindo as pegadas daqueles que, no século derradeiro, se outorgaram o título de filósofos, pretendem que todo o poder vem do povo; que, por conseqüência, a autoridade não pertence como própria aos que a exercem, mas sim a título de mandato popular, e sob a reserva de que a vontade do povo pode sempre retirar aos seus mandatários o poder que lhes delegou. É nisto que os católicos se separam desses novos mestres; vão buscar em Deus o direito de mandar, e daí o fazem derivar como de sua fonte natural e de seu princípio necessário. (Leão XIII, Diuturnum illud).

     E ainda:

"Todavia importa aqui notar que, se se trata de designar os que devem governar a coisa pública, em certos casos, esta designação poderá ser deixada à escolha e às preferências do grande número, sem que a doutrina católica oponha a isso o menor obstáculo. Essa escolha, com efeito, determina a pessoa do soberano, mas não confere os direitos da soberania; não é a autoridade que é constituída, decide-se apenas por quem deverá ela ser exercida. Tampouco se discute aqui sobre as formas de governo; não há, com efeito, razão alguma pela qual não deva ser aprovado pela Igreja o governo de um só -- [a Monarquia] -- ou de vários --[a Aristocracia ou a Democracia] --, contanto que esse governo seja justo e se ordene ao bem comum. Por isso, reserva feita à justiça --[o respeito dos direitos adquiridos] -- não se proíbe aos povos que procurem aquele gênero de governo que melhor se adapte ou ao seu natural ou aos costumes de seus antepassados" (Leão XIII. Diuturnum illud, Denzinger, 1855. O sublinhado é meu).

     Sublinhei nesse texto de Leão XIII as palavras que fazem reservas aos direitos adquiridos, pois não se tem o direito de derrubar um governante legítimo, nem o de mudar sem razão gravíssima a forma de governo de um povo, que ele constituiu por tradição, no decorrer de sua História. Nessas palavras sublinhadas, Leão XIII faz a defesa do legitimismo.
     Permita-me, meu caro Roberto, insistir na citação de textos pontifícios tratando do tema da origem do poder. Noutra encíclica, o mesmo Leão XIII ensinou:

"Ora bem, desses ensinamentos dos Pontífices deve entender-se absolutamente que a origem do poder público deve buscar-se no próprio Deus e não na multidão; que a liceidade das sedições repugna à razão" (Leão XIII, Immortale Dei, Denzinger, 1868).

     Leão XIII prova, também pela razão, que o poder vem de Deus. O texto de Leão XIII dando essa prova é longo, mas convém citá-lo, para que seja conhecido, já que, hoje, infelizmente, ninguém mais explica ou ensina essa doutrina, o que faz com que até muitos sacerdotes a desconheçam.
     Ensinou Leão XIII:

"E, com efeito, o que reúne os homens para os fazer viver em sociedade é a lei da natureza; ou, mais exatamente, é a vontade de Deus, autor da natureza; é o que provam com evidência assim o dom da linguagem, instrumento principal das relações que fundamentam a sociedade, como tantos desejos que nascem conosco e tantas necessidades de primeira ordem que ficariam sem objeto no estado de isolamento, mas que acham sua satisfação desde que os homens se aproximam e se associam entre s. Por outra parte, essa sociedade não pode nem subsistir nem sequer conceber-se se nela não se encontrar um moderador para manter o equilíbrio entre as vontades individuais, reduzir à unidade essas tendências diversas e fazê-las concorrer também, pela sai harmonia, para a unidade comum. Donde se segue que certamente Deus quis na sociedade civil uma autoridade que governasse a multidão. 

Mas, eis aqui outra consideração de grande peso: os que administram a coisa pública devem poder exigir obediência em condições tais que a recusa de submissão seja para os súditos um pecado. Ora, não há um só homem que tenha em si ou de si aquilo que é preciso para acorrentar por um vínculo de consciência a livre vontade dos seus semelhantes. Só Deus, enquanto criador e legislador universal, possui tal poder; os que o exercem precisam recebê-lo dele exercê-lo em nome dele. "Um só é o legislador e o juiz que pode condenar e absolver" (Tgo. IV, 12) (Leão XIII, Diuturnum illud, n0 11).

     Como todo poder vem de Deus, toda autoridade - mesmo a das Democracias -- provêm de Deus e deve ser respeitada. Como vimos ensinado por Leão XIII, o povo indica quem vai exercer o poder dado por Deus. O povo não dá o poder. Assim também o poder do Papa vem de Deus, não só Cardeais que lhe dão o poder. Os Cardeais apenas elegem quem vai exercer o poder dado por Cristo a Pedro.
     Por isso toda rebelião contra o poder legítimo é pecaminosa.     
     Não existe o direito de revolução, que é, ele também, um princípio da Democracia liberal, pois como o povo é considerado a fonte do poder, o povo, quando quiser, pode retirar o poder que ele concedeu a alguém.     
     É o que se apreende do ensinamento de Leão XIII citado pouco acima.
     Veja aí nos textos citados do Papa Leão XIII, a condenação do direito de revolução, preconizado pelo Liberalismo, pois se o poder é dado pelo povo, este teria o direito de retirá-lo quando julgasse conveniente e oportuno. Foi esse direito de revolução que causou um verdadeiro anarquismo na Revolução Francesa, como também o anarquismo das repúblicas modernas, em que as revoluções e golpes se sucedem constantemente. Como na Bolívia, no México, etc... E o etc inclui o Brasil.

                                                                                                    ***

     Só para aliviar o texto de uma carta tão pesada, permita-me quebrar a sisudez de meu texto contando-lhe uma piada sobre o golpismo típico das republiquetas latino-americanas, que, por sua lógica, levam os princípios liberais às últimas conseqüências.
     Pois se conta que um dia, no México -- país extremamente perturbado pelo liberalismo -- se apresentou um indivíduo numa secretaria de governo pedindo a sua pensão devida por ter participado de uma revolução.
     O funcionário, então, lhe perguntou:

 “-- La Revolución de que año?
          -- La del 1878.
          -- Pero de que mês?
          -- La de setiembre.
          -- Pero de que dia, hombre?
          -- La del 18.
          -- La revolución de la mañana, o la de la tarde?".

     Este é o resultado do direito de revolução.
     O outro resultado -- o tirânico -- não admite piadas. O outro é Auschwitz.
     Pois da tese errônea e absurda de que o poder vem do povo provém não apenas o anarquismo das republiquetas de banana, mas também todas as tiranias (as ditaduras) modernas. Pois se o governante recebe todo o poder do povo, o que se fizer o povo escolher por maioria, deverá ser lei. Foi esse sofisma que permitiu a Hitler praticar os seus crimes de genocídio contra os judeus, em nome do povo que lhe dera a maioria dos votos.     
     Por isso, por causa do princípio falso de que o poder vem do povo, as democracias liberais oscilam sempre entre o anarquismo libertário e a ditadura tirânica. Toda a História contemporânea, com suas guerras e revoluções, registra esse movimento pendular entre uma liberdade anárquica e uma ditadura tirânica. E o Brasil não escapa desse movimento pendular trazido pelas falsas teses de que o poder vem do povo, e que existe um direito absoluto de rebelar-se.
     A Igreja ensina, com São Tomás, que, quando um governante manda algo contra a lei de Deus, ele se volta contra a própria fonte de seu poder, cortando comunicação com ela. E que o povo não deve obedecer a uma lei que vai contra a lei de Deus e contra a lei natural.     
     A Igreja, com São Tomás, ensina ainda que só se pode fazer uma revolução derrubando um governante que contraria a lei natural, sob algumas condições:

1) Que não haja outro meio para fazer respeitar a lei de Deus.
2) Que a rebelião seja ordenada por alguém que possua realmente autoridade para liderar o povo;
3) Que o mal decorrente da rebelião seja menor do que o mal decorrente da permanência do mau governante;
4) Que haja alguma possibilidade de êxito da rebelião, porque, caso contrário, só se ajudará a manter mais firmemente o mau governante.

     Por isso você lembra bem o que disse São Paulo defendendo o princípio de obediência à autoridade, em Romanos 13, 1-2: "Todos se submetam às autoridades constituídas. Pois não há autoridade que não venha de Deus, e as existentes foram instituídas por Deus. De sorte que quem resistir à autoridade, resiste à ordem de Deus, e os que se opõem, atraem sobre si a condenação".
     É essa mesma doutrina que Paulo VI expôs no texto que você cita:

"Pelo que pude entender, a Igreja ensina que as revoluções são legítimas quando há tirania: "Revolução 31. Não obstante, sabe-se que a insurreição revolucionária - salvo casos de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país - gera novas injustiças, introduz novos desequilíbrios, provoca novas ruínas. Nunca se pode combater um mal real à custa de uma desgraça maior." Carta Encíclica Populorum Progressio, Papa Paulo VI

     E você tem razão ao afirmar que "Um evento como a Revolução Francesa, portanto, constitui uma afronta a uma autoridade legitimamente investida, já que o povo sedicioso se contrapunha ao monarca instituído por Deus. Então concluímos que as revoluções liberais e comunistas que se seguiram consistiram em rebeliões contra Deus, já que não respeitavam as monarquias investidas do poder supremo".     
     Você me pergunta a seguir:

"O que a Igreja entende por autoridade? É um ente abstrato (Estado) ou um número de pessoas investidas de poder (governo)?"

     A autoridade residente no Estado, na família, na Igreja, é exercida por uma pessoa (monarca, presidente, pai, Bispo, professor, patrão, etc) que são imagens de Deus em nome do qual exercem a sua autoridade e poder.
     Você também acerta plenamente ao me escrever:

"Diante do exposto, parece-me que a Igreja ensina que um governo só é legítimo quando procura o bem comum. Caso contrário é tirânico, seja ele monárquico, democrático ou aristocrático".

     A Tirania, conforme explica Aristóteles, é uma corrupção da Monarquia.     
     A Tirania é o governo de um só, que toma o poder normalmente à força -- embora o tirano, por vezes, possa ser eleito. Ademais, o tirano procura ficar no poder o maior tempo possível, concentrando todos os poderes em suas mãos, e pretende cuidar de todas as funções públicas.
     
Os chamados ditadores modernos, na realidade são Tiranos.
     Eles se fizeram chamar de Ditadores, para esconder seu verdadeiro caráter de tiranos.     
     Na república de Roma antiga, se havia criado a instituição da Ditadura.
     Em caso de perigo grave urgente que exigisse medidas sem perda de tempo -- por exemplo, uma invasão -- os romanos elegiam um Ditador, por seis meses, com todos os poderes, para resolver apenas a crise.     
     Findo o perigo, ou solucionada a crise, o Ditador -- que só podia cuidar dela -- devia entregar o cargo.
     Esse instituto político da República Romana teve bom resultado: os Ditadores romanos salvaram Roma, várias vezes, e sempre entregaram o cargo, não tendo jamais procurado tornar-se tiranos.
     Por isso, tendo em vista a semelhança entre o Ditador antigo e o tirano, os que assumem o poder à força se fazem chamar de Ditadores, quando de fato, eles são tiranos. Tiranos foram Hitler e Lenin, Mussolini e Stalin, Mao e Franco, Fidel e Perón, Getúlio, Geisel e Obregón, etc Todos tiranos socialistas e socializadores de seus países.
     Você me pergunta então:

"Então, por exemplo, temos hoje no Brasil uma tirania, já que as elites governantes nos oprimem com impostos e exclusão social. Temos um caso de uma justificável revolução?".

     Não há dúvida que os impostos são pesados e injustos, mas não é possível dizer que "vivemos sob um a tirania".

Não, nós não vivemos numa tirania, mas num sistema demagógico e socialista, que permitem ainda a defesa dos justos direitos, e que permite ainda uma certa liberdade quase anárquica.

Ademais, as autoridades atuais, em que pesem seus erros, são legítimas e não é lícito rebelar-se contra elas. Pode-se fazer-lhes oposição, mas não derrubá-las.

     Prova de que temos liberdade é que estou discutindo esses pontos de doutrina livremente, e lhe escrevo com toda a liberdade, e que nem por isso, a polícia vai me prender pelo que estou afirmando.
     Por isso fazer uma revolução seria crime e pecado, pois não se realizam as quatro condições que permitem uma resistência mais séria, ou uma rebelião.
     O direito de rebelião sem essas condições expostas por São Tomás foi várias vezes condenado pela Igreja.
     Escreveu Leão XIII:

"... não é lícito desprezar o poder legítimo, seja qual for a pessoa em que ele reside, mais do que resistir à vontade de Deus; ora os que lhe resistem correm por si mesmos para a sua perda. "Quem resiste ao poder, resiste à ordem estabelecida por Deus, e os que lhe resistem atraem a si mesmos a condenação"( Rom. V, 2). Assim pois, sacudir a obediência e revolucionar a sociedade por meio da sedição é um crime de lesa majestade, não só humana , mas divina" (Leão XIII, Immortale Dei, n 0 10).

     Leão XIII ensina que, como o poder vem de Deus...

"(...) os súditos deverão obedecer aos príncipes como ao próprio Deus, menos pelo temor do castigo do que pelo respeito da majestade, não num sentimento de servilismo, mas sob inspiração da consciência. E autoridade, fixada no seu verdadeiro lugar, achar-se-á com isso grandemente robustecida, porquanto, sentindo-se premidos pelo dever, deverão os cidadãos necessariamente interdizer-se a indocilidade e a revolta, persuadidos, consoante os verdadeiros princípios, de que resistir ao poder do Estado é opor-se à vontade divina, de que recusar a honra aos soberanos é recusá-la a Deus" ( Leão XIII, Diuturnun illud, n0 14).

     Evidentemente, estes princípios valem para uma situação em que os governantes respeitam a lei de Deus e lei Natural. Mas quando um governo desrespeita a lei natural e a lei de Deus, rompendo assim sua ligação com Deus, de onde lhe vem o poder -- foi, em minha opinião, o caso de Hitler e dos muitos ditadores comunistas -- então é lícita a rebelião contra um governo criminoso que rompe com a própria fonte do poder que é Deus, desde que haja aquelas condições expostas por São Tomás e que citei acima. Isto, repito, é uma aplicação concreta, para a qual dou apenas uma opinião pessoal, e ressalto, sem autoridade alguma.
     Finalmente, trato de sua derradeira questão: por que a Igreja canonizou São Thomas Morus, se ele tinha idéias comunistas e condenáveis, tais quais aquelas que ele manifestou em seu livro "Utopia"?
     Esta pergunta é de mais fácil e simples resposta.     
     São Thomas Morus foi canonizado como mártir, e não como um homem que tenha levado vida perfeita e modelar em seus atos e em suas idéias. Pelas idéias que publicou, ele jamais poderia ser canonizado. Ele foi canonizado porque recusou aceitar o divórcio do rei Henrique VIII, e porque recusou aceitar o rei como chefe da Igreja, no lugar do Papa. São Thomas Morus morreu para defender a indissolubilidade do vínculo matrimonial e a soberania suprema do Papa sobre toda a Igreja.
     A igreja considera que o bom ladrão, São Dimas, é santo, não por sua vida -- que foi má -- mas por sua morte, que foi exemplar. Assim também se dá com São Thomas Morus, que deve ser nosso padroeiro nas questões de obediência e de resistência a um soberano mau, questões que discutimos nesta por demais longa carta.

Esperando tê-lo ajudado em suas dúvidas, e colocando-me à sua disposição para novos esclarecimentos me subscrevo

in Corde Jesu, semper,
Orlando Fedeli.

 

 


 

 

Apêndice: Trechos da Encíclica Mirari Vos de Gregório XVI.

Condenação do indiferentismo

9. Outra causa que tem acarretado muitos dos males que afligem a Igreja é o indiferentismo, ou seja, aquela perversa teoria espalhada por toda parte, graças aos enganos dos ímpios, e que ensina poder-se conseguir a vida eterna em qualquer religião, contanto que se amolde à norma do reto e honesto. Podeis, com facilidade, patentear à vossa grei esse erro tão execrável, dizendo o Apóstolo que há um só Deus, uma só fé e um só batismo (Ef 4, 5): entendam, portanto, os que pensam poder-se ir de todas as partes ao porto da Salvação que, segundo a sentença do Salvador, eles estão contra Cristo, já que não estão com Cristo (Lc 11,23), e os que não colhem com Cristo dispersam miseramente, pelo que perecerão infalivelmente os que não tiverem a fé católica e não a guardarem íntegra e sem mancha (Simbol. Sancti Athanasii); ouçam S. Jerônimo, do qual se diz que quanto alguém tentara atraí-lo para a sua causa, dizia sempre com firmeza: O que está unido à Cátedra de Pedro é o meu (S. Hier., ep. 57). E nem alimentem ilusões porque estão batizados; a isto calha a resposta de Santo Agostinho que diz não perder o sarmento sua forma quando está amputado da vide; porém, de que lhe serve, se não tira sua vida da raiz? (In Ps. contra part. Donat.).

Delírio da liberdade de consciência

10. Dessa fonte lodosa do indiferentismo promana aquela sentença absurda e errônea, digo melhor disparate, que afirma e defende a liberdade de consciência. Este erro corrupto abre alas, escudado na imoderada liberdade de opiniões que, para confusão das coisas sagradas e civis, se estendo por toda parte, chegando a imprudência de alguém se asseverar que dela resulta grande proveito para a causa da religião. Que morte pior há para a alma, do que a liberdade do erro! dizia Santo Agostinho (Ep. 166). Certamente, roto o freio que mantém os homens nos caminhos da verdade, e inclinando-se precipitadamente ao mal pela natureza corrompida, consideramos já escancarado aquele abismo (Apoc 9,3) do qual, segundo foi dado ver a São João, subia fumaça que entenebrecia o sol e arrojava gafanhotos que devastavam a terra. Daqui provém a efervescência de ânimo, a corrupção da juventude, o desprezo das coisas sagradas e profanas no meio do povo; em uma palavra, a maior e mais poderosa peste da república, porque, segundo a experiência que remonta aos tempos primitivos, as cidade que mais floresceram por sua opulência, extensão e poderio sucumbiram, somente pelo mal da desbragada liberdade de opiniões, liberdade de ensino e ânsia de inovações.

Monstruosidade da liberdade de imprensa

11. Devemos tratar também neste lugar da liberdade de imprensa, nunca condenada suficientemente, se por ela se entende o direito de trazer-se à baila toda espécie de escritos, liberdade que é por muitos desejada e promovida. Horroriza-Nos, Veneráveis Irmãos, o considerar que doutrinas monstruosas, digo melhor, que um sem-número de erros nos assediam, disseminando-se por todas as partes, em inumeráveis livros, folhetos e artigos que, se insignificantes pela sua extensão, não o são certamente pela malícia que encerram, e de todos eles provém a maldição que com profundo pesar vemos espalhar-se por toda a terra. Há, entretanto, oh que dor! quem leve a ousadia a tal requinte, a ponto de afirmar intrepidamente que essa aluvião de erros que se está espalhando por toda parte é compensada por um ou outro livro que, entre tantos erros, se publica para defender a causa da religião. É por toda forma ilícito e condenado por todo direito fazer um mal certo e maior, com pleno conhecimento, só porque há esperança de um pequeno bem que daí resulte. Porventura dirá alguém que se podem e devem espalhar livremente venenos ativos, vendê-los publicamente e dá-los a tomar, porque pode acontecer que, quem os use, não seja arrebatado pela morte?

12. Foi sempre inteiramente distinta a disciplina da Igreja em perseguir a publicação de livros maus, desde o tempo dos Apóstolos, dos quais sabemos terem queimado publicamente muitos deles. Basta ler as leis que a respeito deu o V. Concílio de Latrão e a constituição que ao depois foi dada a público por Leão X, de feliz recordação, para que o que foi inventado para o progresso da fé e a propagação das belas artes não sirva de entrave e obstáculo aos Fiéis em Cristo (Act. Concílio Lateran. V, ses. 10; e Constituição Alexand. VI "Inter multiplices").O mesmo procuraram os Padres de Trento que, para trazer remédio a tanto mal, publicaram um salubérrimo decreto para compor um índice de todos aqueles livros que, por sua má doutrina, deviam ser proibidos (Conc. Trid. sess. 18 e 25). Há que se lutar valentemente, disse Nosso predecessor Clemente XIII, de piedosa memória; há que se lutar com todas as nossas forças, segundo o exige a gravidade do assunto, para exterminar a mortífera praga de tais livros, pois o erro sempre procurará onde se fomentar, enquanto não perecerem no fogo esses instrumentos de maldade (Encíclica "Christianae", 25 nov. 1776, sobre livros proibidos). Da constante solicitude que esta Sé Apostólica sempre revelou em condenar os livros suspeitos e daninhos, arrancando-os às suas mãos, deduzam, portanto, quão falsa, temerária e injuriosa à Santa Sé e fecunda em males gravíssimos para o povo cristão é aquela doutrina que, não contente com rechaçar tal censura de livros como demasiado grave e onerosa, chega até ao cúmulo de afirmar que se opõe aos princípios da reta justiça e que não está na alçada da Igreja decretá-la.

Condenação da rebeldia contra as legítimas autoridades

13. Mas, tendo sido divulgadas, em escritos que correm por todas as partes, certas doutrinas que lançam por terra a fidelidade e submissão que se devem aos príncipes, com o que se alenta o fogo da rebelião, deve-se vigiar atentamente para que os povos, enganados, não se afastem do caminho do bem. Saibam todos que, como disse o apóstolo, toda autoridade vem de Deus e todas as que existem foram ordenadas por Deus. Aquele, pois, que resiste à autoridade, resiste à ordem de Deus e se condena a si mesmo (Rom 13, 2). Portanto, os que com torpes maquinações de rebelião se subtraem à fidelidade que devem aos príncipes, querendo tirar-lhes a autoridade que possuem, ouçam como contra eles clamam todos os direitos divinos e humanos.

14. Não era este, certamente, o proceder dos primeiros cristãos, os quais, para obviar a tão grave falta, mesmo que em meio das terríveis perseguições suscitadas contra eles, se distinguiram por seu zelo em obedecer aos imperadores e em lutar pela integridade do império, como provaram, quer no pronto cumprimento de quanto lhes era ordenado (sempre que não se opusesse à sua fé de cristãos), quer vertendo seu sangue nas batalhas, pelejando contra os inimigos do império. Os soldados cristãos, diz Santo Agostinho, serviram fielmente aos imperadores infiéis, mas quando se tratava da causa de Cristo, outro imperador não reconheceram que o dos céus. Distinguiam o Senhor eterno do senhor temporal; e não obstante, pelo primeiro obedeciam ao segundo (In Ps. 124. n. 7.). Assim o entendia certamente o glorioso mártir S. Maurício, invicto chefe da legião Tebana, quando, segundo refere Euquério, disse ao seu imperador: Somos, ó imperador, teus soldados, mas também servos que com liberdade confessamos a Deus; vamos morrer, e não nos rebelamos; nas mãos temos nossas armas, e não resistimos porque antes de nos rebelarmos preferimos morrer (S. Eucher. apud Ruinart, Act. ss. mm. de Ss Maurit. et Soc., n. 4). E esta conduta dos primeiros cristão brilha com esplêndidos fulgores; pois é de se notar que, além da razão, não faltava aos cristãos, nem a força do número nem o esforço da valentia, se quisessem lutar contra seus inimigos. Somos de ontem, diz Tertuliano, e já ocupamos todas as vossas casas, cidades, ilhas, municípios, os mesmos acampamentos com suas tribos e decúrias, os palácios, o senado, o fórum... De que luta não seremos capazes, mesmo com forças inferiores, os que morremos tão alegremente, só porque em nossa disciplina é mais lícito morrer do que matar? Se, negando-vos a cooperação de nossas forças, nos retirássemos a um lugar distante da terra, a perda de tantos e tais cidadãos teria enfraquecido vosso domínio, digo melhor, quiçá o houvésseis perdido; não há duvidar que vos espantareis com vossa própria solidão... não encontrareis a quem comandar, teríeis mais inimigos que cidadãos; mas agora, ao contrário, deveis ao grande número dos cristãos o terdes menos inimigos (In apologet., cap. 37).

15. Estes exemplos preclaros de inquebrantável sujeição aos príncipes, baseados nos santíssimos preceitos da religião cristã, condenam a insolência e a gravidade dos que, instigados por torpe desejo de liberdade sem freios, outra coisa não se propõem do que calcar os direitos dos príncipes e reduzir os povos a mísera escravidão, enganando-os com aparências de liberdade. Este foi o objetivo dos valdenses, dos begardos, dos wiclefitas e de outros filhos de Belial que foram a desonra do gênero humano, tantas vezes anatematizados pela Sé Apostólica. Sem outro motivo senão o de se congratularem com Lutero por haver rompido todo vínculo de dependência, esses inovadores se esforçam audazmente por perpetrar as maiores maldades.

Males da separação da Igreja e do Estado

16. Mais grato não é também à religião e ao principado civil o que se pode esperar do desejo dos que procuram separar a Igreja e o Estado, e romper a mútua concórdia do sacerdócio e do império. Sabe-se, com efeito, que os amadores da falsa liberdade temeram ante a concórdia, que sempre produziu resultados magníficos, nas coisas sagradas e civis.

Liberdade do mal que certas associações apregoam

17. A muitas outras coisas de não pouca importância, que Nos trazem preocupado e enchem de dor, devem-se acrescer certas associações ou assembléias, as quais, confederando-se com sectários de qualquer religião, simulando sentimentos de piedade e afeto para com a religião, mas na verdade possuídas inteiramente do desejo de novidades e de promover sedições em toda parte, pregam liberdades de tal jaez, suscitam perturbações nas coisas sagradas e civis, desprezando qualquer autoridade, por mais santa que seja"

Finis..