Religião-Filosofia-História



No final da Idade Média, surgiu um curioso modo de fazer poesia, o chamado "Trobar Clus. Poesias aparentemente inocentes ou sem sentido, na realidade, ocultavam uma doutrina esotérica. Eram obras feitas em código, nas quais se destacaram os trovadores cátaros. Há quem inclua nesse grupo de esotéricos os poetas italianos do "Dolce Stil Nuovo", e, entre eles, o próprio Dante Alighuieri.

O livro L'Idea Deforme, elaborado por um grupo de estudiosos inspirados por um curso de "semiótica esotérica", ministrado por Umberto Eco, em Bolonha, analisa as obras dos autores que consideram Dante um escritor de linguagem cifrada. Na introdução dessa obra - que, aliás, já tivemos ocasião de citar neste trabalho- Eco chama os autores alegoristas, que fazem uma interpretação esotérica de Dante, de paranóicos.

Ele mostra que, por abusar do mecanismo da analogia, esses autores, obcecados por esoterismo, são levados a desconfiar que sempre há mais um segredo por trás dos supostos arcanos que julgam ter descoberto, metendo-se assim num labirinto sem fim e vazio.

"Cada vez que se pensa ter descoberto um segredo, esse será tal que se torna a enviar a outro segredo em um movimento progressivo em direção a um segredo final. Mas não pode haver segredo final. O segredo final da iniciação hermética é que tudo é segredo. O segredo hermético deve ser um segredo vazio, porque quem pretende revelar um segredo não é um iniciado e se deteve em um nível superficial do conhecimento do mistério cósmico" (U. Eco, A Semiótica Hermética e o "paradigma do Véu" - Introdução ao livro de Maria Pia Pizzato e outros, L'Idea Deforme, Bombiani, Milano, 1989, p. 15)

Eco dá dois argumentos contra a existência de segredos herméticos:

1 - Há pessoas maníacas de hermetismo, que julgam ver segredos em tudo, e que estão sempre à busca de um último arcano profundíssimo que jamais encontram, porque isto acabaria com seu jogo maníaco.

Sem dúvida, há pessoas com essa mania. Mas, o haver maníacos de conspiração não prova que não existam conspirações.

2- Eco afirma, de modo gratuito, que o segredo hermético tem que ser vazio, porque, quem pretende revelá-lo "não é um iniciado" e se deteve "em um nível superficial".

Também este argumento nos parece falho.

Primeiro: Eco supõe que há verdadeiros iniciados, e que estes jamais revelam o segredo. Mas, então, o segredo existe?

Segundo porque, se fosse assim, jamais se poderia descobrir algo oculto, examinando-se os fatos de um ponto de vista externo, o que é evidentemente falso. Crimes ocultos, por exemplo, jamais poderiam ser descobertos.

Eco então conclui que o grande segredo, atrás do véu esotérico é que não há segredo. Da mesma forma, não haveria conspiração secreta na História. Segredo e conspiração seriam manifestações de mentalidades paranóicas com mania de perseguição. Causa dessa psicose conspirativa teria sido a especulação gnóstica sobre a origem do mal. O livro de Eco, aliás fracassado, -O Pêndulo de Foucault- foi elaborado por ele para demonstrar o ridículo da teoria do segredo e da conspiração.

Eco e seus discípulos autores de L' Idea Deforme procuram demonstrar suas teses apontando falhas - muitas vezes de um ridículo gritante- da exegese dos chamados "alegoristas". Eco analisa especialmente os "argumentos" delirantes de René Guénon e de Dante Gabriel Rossetti, a fim de comprovar suas teses.

Eco afirma que é falsa a tese de que Dante Alighieri estava ligado a uma seita maçônica, porque o nascimento das primeiras lojas da Maçonaria simbólica deu-se apenas no início do século XVIII (Cfr. L'Idea Deforme, - Introdução de Umberto Eco, ed. cit. p. 30). O que é de uma superficialidade excessiva e incrível num autor tão inteligente.

Para Eco, o erro da semiose hermética é de substituir a afirmação "o mapa é semelhante ao território" por "o mapa é o território". (Cfr. L 'Idea Deforme,p. 167).

O esotérico e muito além de suspeito Guénon, o carbonário Rossetti e outros "alegoristas" cometeram erros grosseiros de método hermenêutico ao traçar o mapa do labirinto esotérico. Disto conclui Eco que o território esotérico é inexistente, visto que o mapa elaborado é absurdo. E, por território, Eco entende o segredo e a conspiração esotéricos

Ora, também os mapas medievais árabes e cristãos eram muito imaginativos e deformados. Nem por isso todos os territórios representados eram inexistentes. Eco mete no mesmo cambaio dos "alegoristas" todos os que afirmam a existência de segredos herméticos, mesmo os que recusam os "argumentos" de Guénon. Todos os metidos no cambaio alegorista seriam semelhantes a paranóicos que se imaginam Napoleões ou que têm mania de perseguição. E que vivem procurando provas de que são imperadores ou perseguidos por misteriosíssimas tramas ocultas. Nem por que crêem ser, nem por suas "provas" eles passam a ser Napoleões, ou são, de fato, perseguidos.

Mas também, não é porque há paranóicos que se imaginam Napoleão ou que fantasiam profundas e secretas perseguições maquiavélicas que se poderia semioticamente concluir que Napoleão não existiu e que não existem perseguições. Eco julga que, pelo fato de haver mapas loucos de territórios malucos, que não existem mapas certos nem territórios reais. O problema é distinguir a paranóia da realidade.

Eco e os seus semióticos discípulos partem do pressuposto de que não existe verdade objetiva, e que, em conseqüência, não há leitura correta de um texto. Depois, passam 300 páginas a caçar falsidades e interpretações delirantes, para concluir que toda interpretação é falsa ou, pelo menos, sem valor. Nenhuma interpretação ou leitura seria objetivamente certa. Só uma leitura semioticamente relativista seria absolutamente segura e certa.

Para eles, é impossível dizer a verdade, mas é possível caçar falsidades e provar uma falsidade com palavras.

Indo mais fundo, dever-se-ia dizer que Eco e seus discípulos não partem apenas do princípio de que não existe verdade objetiva. Seu ponto de partida é um ceticismo radical que nega a existência da Verdade, isto é, de Deus. Eles não querem que esta Verdade Absoluta exista. Em conseqüência, para eles, não há Bem e também não existem anjos e demônios, nem sobrenatural, nem alma espiritual, nem céu, nem inferno. Para eles, o homem não está na terra passando por uma prova. Não há, na História do homem nem intervenção da graça, nem da tentação. Para Eco, Deus não existe, mas a macumba é um fenômeno interessante...

Para Eco, o segredo hermético tem que ser vazio, porque, se não for vazio, ter-se-á que admitir um combate entre Deus e o demônio na História. Ter-se-á que admitir um combate entre a Igreja e uma Anti-Igreja, qualquer nome que ela tenha ou que a ela se atribua.

Para Eco, não há segredo. Não pode haver segredo. Não há conspiração. Não pode haver conspiração. Quem crê nisso necessariamente é paranóico. E quem não crê em seus argumentos cientificamente semióticos é um maníaco. Quem aceita o que ele diz, tem que ser considerado, mais do que normal, pessoa capaz e modernamente científica. Essas as ameaças -"minaccia"- e as promessas que Eco deixa nas entrelinhas de seus comentários.

Curiosamente, Eco afirma que os "alegoristas" utilizam a "minaccia" [a ameaça], a promessa, a provocação e a sedução como método para convencer os seus leitores.

Poder-se-ia encontrar os mesmo métodos nos textos de Eco. Os jovens estudantes que não se alinharem ao sistema semiótico, a seus métodos e conclusões, estarão sob a "minaccia" de perda irremissível de credibilidade científica. Não terão parte na incerteza absoluta proporcionada pela leitura semiótica. Fica ameaçado com a pecha de paranóia quem considere possível a existência da conspiração na História. Finalmente, e de modo subtil, se procura seduzir o leitor a que, para ser aplaudido e para ter êxito, ele adira, sem condições, ao relativismo moderno, tiranicamente imperante nos dias de hoje. Se não houver essa adesão, o leitor será colocado na casta dos párias, dos anormais e dos paranóicos.

Como seria ilógico e absurdo o mundo, se não houvesse verdade objetiva! Como é absurdo e ilógico o século XX que quer escolas e bibliotecas em cada bairro, mas que nelas se ensine que não existe a verdade. Quer bibliotecas com livros que ensinem que não se pode ter certezas. Como seriam absurdos os livros e as bibliotecas, as escolas e os mestres, a Ciência - e até a Semiótica - se não existisse a verdade. Como seria sem sentido o mundo, se não existisse a Verdade, se não existisse Deus. Como é incompreensível a História, sem homens que planejam, que arquitetam ou que conspiram e sem Deus que dispõe..

Como seria monótono o mundo, se não houvesse labirintos. Como seria tedioso um mundo no qual todos os homens, estereotipadamente igualados, tivessem todos a mesma facilidade para montar e desmontar labirintos, para entrar e sair deles. Nesse mundo não haveria mistério, nem haveria o que ensinar.

Contudo, o mundo não é assim, apesar dos esforços da televisão. E não é por haver por toda parte bibliotecas e escolas públicas que o saber ficou realmente ao alcance de todos. Helàs! Tais bibliotecas continuam sendo labirintos nos quais o homem estandartizado de nossos tempos busca uma verdade que ele crê...inexistente. Busca vã, por caminhos ínvios. Pesquisa sem rota e sem bússola, usando um mapa falso, para chegar ao que julga vazio.

Que faz o cego homem do século XX na biblioteca ?

Para onde levam este cego os seus mestres e guias que negam a existência da luz da razão? Os que têm trevas em seus olhos pretendem guiar cegos na escuridão. Porque, "a luz brilhou entre as trevas e as trevas não a compreenderam"{Jo, I,5).

O século XX tem por ideal a absoluta democratização do saber. Qualquer proibição ou limitação nesse sentido parece-lhe uma violação da liberdade de pensamento e da igualdade dos homens. Todas as verdades - e todas as opiniões, mesmo erradas- deveriam ser livremente, e sempre, ensinadas a todos. Não pode haver qualquer delimitação ou censura ao pensamento. Essa é a ficção. Na realidade, muitas verdades e conhecimentos são mantidos sob chave, como - para dar um exemplo apenas cuja existência ninguém pode negar- os segredos da pesquisa atômica.

Deve-se ensinar tudo a todos, sem nenhuma condição? É conveniente fazê-lo? É realmente possível ensinar tudo a todos? É possível que todos saibam igualmente tudo?

Não haveria perigo de que alguns usem mal o saber? O ensino deve ser graduado? Elitista? Esotérico? Quem deve decidir o que será ensinado ou não? É possível existir uma sociedade na qual não haja censura? Existiu alguma vez, na História, uma sociedade sem censura? Sem alguma forma de Inquisição ? A censura é legítima ? A censura é necessária?

Questões como essas são essencialmente morais e políticas e se fundamentam em princípios metafísicos e teológicos, ainda que se negue qualquer valor à Metafísica e à Teologia. Consoante a cosmovisão adotada, serão diferentes as respostas a essas perguntas, que, desde sempre, o homem se tem feito.

Na Antigüidade pagã, o saber sempre foi reservado a uma elite de iniciados. Foi assim no Egito antigo. Assim, na Grécia.Assim, no Oriente.

Os antigos cultuavam a força e o poder. Ora, o saber dá poder. Por isso, os que sabiam procuravam ocultar suas descobertas para controlar o poder. Os grandes filósofos gregos ensinavam, mas apenas para um restrito círculo de amigos. Os pitagóricos formavam uma verdadeira sociedade secreta, jurando não revelar seus conhecimentos filosóficos e matemáticos aos não iniciados. E tal era a preocupação de manter o poder através do saber, que o grande Platão afirmava que o Estado tem direito de mentir ao povo (Cfr. Platão, República,).

Ademais, na Antigüidade pagã conviviam duas religiões: uma pública, o panteísmo adorador dos ídolos da natureza; outra secreta e gnóstica, de que são exemplo os mistérios da Grécia, as doutrinas dos sacerdotes de Heliópolis, e as dos Upanishades, na Índia.

A Gnose é sempre esotérica. Assim como ela ensina que sob a matéria há, oculto, um espírito divino, assim também ela afirma que sempre, sob a lâmpada da palavra material, há a luz do verdadeiro saber espiritual, normalmente oposto ao que é ensinado pela letra. Por isso, todas as seitas gnósticas se organizam de modo esotérico e ensinam seus adeptos gradualmente, por meio de iniciações.

Mesmo entre os judeus, acabou surgindo um ensinamento secreto e uma religião iniciática que Deus condenou e, por causa dela, fez destruir Jerusalém. É o que se lê no capítulo VIII de Ezequiel, quando Deus mostra ao Profeta que a verdadeira causa da destruição da cidade por Nabucodonosor foi a existência de um culto secreto, nos subterrâneos do Templo de Jerusalém.

Deste modo, a Antigüidade nunca aceitou que se devesse ensinar tudo a todos. O saber antigo era reservado, secreto, iniciático, esotérico.

Com o advento de Cristo, a situação mudou radicalmente, pois Ele ordenou: "Ide e ensinai a todos"(S.Mt.XXVIII,19); "A verdade vos libertará"(S.Jo.VIII,31-32); "Tudo o que eu vos ensinei aos ouvidos, proclamai-o sobre os telhados"(S. Lc. XII,3).

Cristo condenou o esoterismo, praticado no seu tempo, por alguns judeus, dizendo: "Não há nada de encoberto que não venha a ser revelado, nem oculto que não se venha a saber" (S.Mt.X,26; S.Mc.IV,21; S.Lc.VIII,17; S.Lc.XII,2) Assim como "Não se acende uma luz para colocá-la sob o alqueire"(S.Mt.V,15; S.Lc. VIII, 16), também não se deve ocultar uma verdade conhecida.

Em conseqüência, na Cristandade medieval, fruto da filosofia do Evangelho que dominava as nações (Cfr.LeãoXIII, Immortale Dei), não havia ensino reservado ou secreto. Foi a doutrina cristã que gerou as escolas paroquiais e abaciais. Foi a Idade Média - idade das trevas e da ignorância, no dizer dos repetidores de slogans e de mentiras- que instituiu as universidades. Foi a obediência ao mandamento de Cristo que colocou o monge no "scriptorium" da Abadia, copiando e conservando o saber antigo; que estabeleceu o mestre na cátedra universitária; que enviou o missionário como apóstolo a ensinar a todas as nações até os confins da terra.

Na Idade Média o saber era aberto a todos, mas não era igualitário, nivelador, como o quer o século XX. Era graduado, pois que a própria natureza humana exige o aprendizado paulatino. Não se pode ensinar física nuclear para crianças de curso primário. Mesmo hoje, nas sociedades liberais em que vigora o princípio da democratização do saber, há vestibulares. O ensino era graduado e elitizado, porque nem todos têm igual capacidade intelectiva. Mas, o que aprendia o teólogo, era ensinado, em grau menor, aos rústicos, por meio do catecismo. Não havia verdades ocultas. Tudo era ensinado a todos em diversos graus de profundidade conforme a capacidade da pessoa.

Poder-se-ia argumentar que, apesar de a Universidade medieval fosse aberta a todos, proibia-se que mestres heterodoxos ensinassem, e os livros heréticos - e por vezes seus autores- eram queimados pela Inquisição. E o velho esfarrapado espantalho da Inquisição, agitado pelos relativistas, assusta tanto que muitos se recusam a raciocinar sobre a questão.

Ora, até mesmo nas sociedades relativistas - que não deviam proibir a difusão de nenhuma doutrina- de fato, se registra a proibição de ensinar doutrinas anti-relativistas. Por exemplo, nos países marxistas, se proibia - e em Cuba ainda se proíbe - atacar o socialismo. E quem violasse essa proibição terminava no Gulag ou no Paredón. Em muitas democracias liberais são proibidos os partidos monarquistas. Isto se dá porque quem defende uma posição doutrinária, necessariamente deve combater a oposta. E a tolerância relativista é necessariamente intolerante para com os intolerantes. A Tolerância não tolera a Intolerância. A Tolerância é intolerante. Por isso, a Liberdade da Revolução Francesa instituiu a Lei dos Suspeitos e o Terror, enquanto a Fraternidade revolucionária erigiu a guilhotina.

Se todo ser procura conservar-se, é natural que as sociedades, democráticas ou marxistas, procurem combater aqueles que visam destruí-las. Era natural pois que a Idade Média católica, embora tivesse fundado as Universidades, e embora obedecesse ao mandamento de Cristo de ensinar a todos, proibisse a difusão de obras religiosas ou filosóficas que viessem destruir a ordem cristã.

Além disso, em que pese ao Concílio Vaticano II, só a verdade tem direito de ser propagada. Embora o homem seja livre e possa, abusando de sua liberdade, adotar uma doutrina errada, ele não tem o direito de difundi-la, enganando e prejudicando a outros. Exemplos bastante eloqüentes do desastre que pode constituir o suposto direito de difusão do erro e a liberdade de consciência são fornecidos pelos nefastos efeitos produzidos pelo nazismo e pelo marxismo, em nosso século. Apesar de serem doutrinas absurdas e criminosas, marxismo e nazismo enganaram multidões e iludiram a chamada "Inteligentzia". Verificando os crimes do Gulag e dos Auschwitz nazistas percebe-se que neles teriam sido evitado se existisse ainda a Inquisição.

[Ó tolerante e democrático leitor, sente-se, por favor. Não clame pelo estabelecimento de uma fogueira inquisitorial para o autor destas linhas. Contraditoriamente, não queira estabelecer uma Inquisição para combater a Inquisição. Sua raiva só prova que sempre há inquisições. Aliás, o tribunal de Nuremberg foi um tribunal inquisitorial laico e democrático. Pena que ele não tenha podido fazer justiça ao próprio Hitler e a Mussolini. Não proteste contra meu pedido de Inquisição contra Hitler, Stalin e Mussolini. Antes, examine friamente as contradições liberais e estude, imparcial e cientificamente, o que foi realmente a Inquisição.

Apagou seu fósforo ? Sentou-se ? Continuemos, pois.]

Como é apresentada a posição da Igreja face ao saber, na Idade Média, no romance de Eco ?

Simbolicamente, ele a representa pela Abadia controladora da biblioteca, reservatório do saber, que analisamos no capítulo 1 deste trabalho.

No enredo de O Nome da Rosa, Eco retrata duas posições face ao saber: a do racionalista Frei Guilherme e a do místico monge cego Jorge de Burgos. O racionalista franciscano é o símbolo da filosofia e do espírito modernos, favorável, aparentemente, à completa liberdade em matéria doutrinária. O monge cego, contrário à liberdade de pesquisa e de estudo, simboliza, para o público, a posição da Igreja, quando, na verdade, ele representa a atitude anti-racional da Gnose e não a da Igreja. O primeiro é o filósofo nominalista que, como Édipo, vê tudo pelos olhos da razão natural. O segundo é o místico "plutot" platônico e de tendências gnósticas, que, mais do que temer, tem ódio da razão e da ciência. Como se percebe, nesse esquema montado por Eco, falta o filósofo aristotélico-tomista, como S. Tomás, símbolo da posição real da Igreja, oposta aos dois extremos: de um lado, o gnosticismo platonizante, de outro, o racionalismo panteísta.

O cego Jorge de Burgos - apresentado propositadamente de modo equívoco como o defensor da posição católica- era "a própria memória da biblioteca e a alma do scriptorium", obcecado pela proximidade do fim dos tempos (R 157). Para ele, "a biblioteca é testemunha da verdade e do erro"(R 157) e a sua finalidade deveria ser "a custódia do saber (...) não a busca, porque é próprio do saber, coisa divina, ser completo e definido desde o início, na perfeição do Verbo que exprime a si mesmo. A custódia (...) não a busca, porque é próprio do saber, coisa humana, ter sido definido e completado no arco dos séculos que vai desde a pregação dos profetas à interpretação dos Padres da Igreja"(R 452).

Jorge de Burgos, com essas palavras, limitava todo estudo e pesquisa que se tornavam desnecessários e temerários pois que, no fundo, como os gnósticos, ele fazia o conhecimento humano ser idêntico à Sabedoria de Deus. Portanto, fazia, do homem, Deus.

Para essa visão cega da sabedoria humana "não há progresso, não há revolução de períodos na História do saber, mas, no máximo, contínua e sublime recapitulação"(R 452). Não há dúvida que, com essas palavras, Eco bem representou a imagem caricata que os slogans da propaganda anti-católica forjaram e difundiram sobre a Idade Média como Idade das Trevas, da ignorância esclerosada e do terror.

Para esse medieval cego, praticamente não haveria lugar para a filosofia e para a ciência estudiosas das causas segundas. Tudo devia se centrar numa única ciência: a Teologia, e, mesmo essa, ocupada apenas com a Causa primeira. Assim como os nominalistas empiristas e panteístas separavam a filosofia da Fé, o místico Jorge de Burgos separava a Teologia da ciência. Era natural pois que ele criticasse S. Tomás de Aquino como racionalista (Cfr.R 532).

"Eu sou aquele que é, disse o Deus dos hebreus. Eu sou o caminho, a verdade e a vida, disse Nosso Senhor. Bem, o saber não é outra coisa senão o atônito comentário dessas duas verdades. Tudo quanto foi dito a mais, foi proferido pelos profetas, pelos evangelistas, pelos padres e pelos Doutores para tornar mais claras essas duas sentenças. E muitas vezes um comentário oportuno provém mesmo dos pagãos, que os ignoravam e suas palavras foram assumidas pela Tradição cristã. Mas, fora disso, não há mais nada a dizer. Há que se tornar a meditar, explicar, conservar. Este era e deveria ser o ofício de nossa Abadia [a Igreja]. com sua esplêndida biblioteca [doutrina] - não outra."(R452).

Para uma mentalidade como essa, rançosamente conservadora e mumificada, inimiga de toda a pesquisa e negadora de qualquer progresso - tal qual a propaganda anti-cristã pinta a Igreja Católica- o único grande pecado seria "o de entender o próprio trabalho não como custódia, mas como busca de alguma notícia que não tenha sido dada aos humanos "(R 453).

Qualquer nova descoberta distorceria "o sentido daquela verdade já rica de todos os escólios, e necessitando apenas de intrépida defesa e não de insensato incremento"(R 453)

[Se estivéssemos assistindo a esse fanático sermão de Jorge de Burgos, gostaríamos de perguntar-lhe, porque então diz o Evangelho que o próprio Jesus "crescia em sabedoria, em idade e em graça, diante de Deus e diante dos homens"(S. Lc, II, 52)]

Na biblioteca da abadia admitiam-se, ainda, livros que continham "palavras inimigas da verdade"(R453). a fim de serem prudentemente utilizados na defesa da religião. Tais livros eram guardados num lugar recôndito da biblioteca o -"Finis Africae"- de onde só podiam ser retirados com licença especial. Um livro, porém, -II Livro da Poética de Aristóteles- ninguém, nunca, poderia ler.

Evidentemente, tudo isto repugnava ao racionalismo e ao pragmatismo de Frei Guilherme de Baskerville.

"A ciência usada para ocultar ao invés de iluminar (...) Uma mente perversa preside a santa defesa da biblioteca"(R 206).

Esse controle do saber estava entregue a um místico cego - a um homem que negava valor à razão e à ciência. "Mas que faz um cego na biblioteca?"

Para o abade - já o vimos - "nem todas as verdades são para todos os ouvidos, nem todas as mentiras podem ser reconhecidas como tais por uma alma piedosa"(R54). Por isso, dizia ele que era "preciso ser 'agudo' para descobrir e prudente para encobrir" (R 45).

Através dessas figuras simbólicas, Eco apresenta a sua visão da Igreja Católica tradicional: uma Igreja esclerosadamente conservadora, avessa a toda pesquisa, temerosa de qualquer progresso, inimiga da razão, ciosa de um poder que deseja manter a qualquer custo, até mesmo do crime.

Oposta teria sido a posição de Roger Bacon, o filósofo franciscano de Oxford: "Não era luxúria a sede de conhecimento de Roger Bacon, que queria usar a ciência para fazer mais feliz o povo de Deus, e, por isso, não buscava o saber pelo saber"(R 448). "Estudar os segredos da natureza, usar do saber para melhorar o gênero humano é o único modo de nos prepararmos para a vinda do Anticristo "(R 448).

Essa postura altruísta era também oposta ao desejo de "saber pelo saber" do monge Bêncio de Upsala cuja sede de conhecimento era "apenas curiosidade insaciável, orgulho do intelecto"(R 448), e uma forma de luxúria, e, por isso, estéril.

Não podemos, porém, concluir que Frei Guilherme adotasse diante do saber, a posição exatamente oposta a de Jorge de Burgos. Também Frei Guilherme - máscara de Eco, não o esqueçamos- não admitia um saber completamente aberto.

O místico cego desejava o saber controlado e oculto, para que a Igreja perpetuasse seu domínio sobre a sociedade, e para que triunfasse a sua verdade. O racionalista e moderno Frei Guilherme-Eco queria que o saber fosse controlado e oculto, para que só os bons pudessem utilizá-lo, para fazer bem a todos. O que, aliás, o aproxima das razões da Inquisição.

Frei Guilherme distinguia duas espécies de magia, dois tipos de conhecimento :

"Há uma magia que é obra do diabo e que visa a ruína do homem através de artifícios de que não é lícito falar. Mas há uma magia que é obra divina, lá onde a ciência de Deus se manifesta através da ciência do homem, que serve para transformar a natureza, e um de cujos fins é prolongar a vida humana. E esta é magia santa"(R 109). Esta é a ciência moderna. [De passagem, note-se que o cético Frei reconhecia, com certeza, uma verdade e um bem: a vida humana deveria ser mantida e prolongada].

Todavia esta ciência não deveria ser comunicada a todos, explica Frei Guilherme-Eco, "porque nem todo o povo de Deus está pronto para escutar tantos segredos (...)" e porque, "advertia o grande Roger Bacon, nem sempre os segredos da ciência devem andar nas mãos de todos, que alguns poderiam usá-los com maus propósitos. Freqüentemente o sábio deve fazer parecerem mágicos, livros que mágicos não são, mas propriamente de boa ciência, para protegê-los dos olhos indiscretos"(R110). "Mas ai, se elas [as descobertas da ciência] caíssem nas mãos de homens que as usassem para estender o seu poder terreno e saciar a sua ânsia de posse"(R111). [Mas que pouco democrático está se revelando nosso moderníssimo Frei Eco-Guilherme !...].

Por isso, diz Eco pela boca de seu Frei Guilherme, "às vezes é bom que certos segredos permaneçam ainda encobertos por discursos ocultos. Os segredos da natureza não circulam em peles de cabras ou de ovelhas. [Segredos escritos em pergaminhos] Aristóteles diz no livro dos segredos que, ao comunicar muitos arcanos da natureza e da arte infringe-se um sigilo celeste a que muitos males poderiam seguir-se"(R 111).

Estas palavras de Frei Guilherme concordam exatamente com o que diz o monge Alinardo: "Deus nos está punindo, O mundo inteiro em torno da Abadia está infestado de heresia, contaram-me que no trono de Roma está um Papa perverso (...) e um de nós violou a proibição, rompeu os selos do labirinto [da biblioteca] (...) o pecado entrou na Abadia."(R 188).

Porém, quando o ferreiro Nicola argumenta então que "por isso é bom que em lugares como este, nem todos os livros estejam ao alcance de todos" - que seria a conclusão das palavras de Frei Guilherme expostas pouco acima- o monge nominalista discorda: "Isso é uma outra história"(R111). E se enrosca numa explicação muito pouco convincente, na qual fica difícil distinguir sua posição daquela que fora defendida por Jorge de Burgos:

"Eu não queria dizer que é necessário esconder as fontes da ciência. Isto me parece antes um grande mal. Queria dizer que, tratando-se de arcanos dos quais pode nascer tanto o bem como o mal, o sábio tem o direito e o dever de usar uma linguagem obscura, compreensível somente a seus pares."(R 111).

Eis aí o racionalista moderno, defensor do saber aberto, inimigo dos segredos, defendendo os arcanos. O decifrador de códigos herméticos a defender a linguagem cifrada, e o herói da obra "aberta", fazendo a apologia do "trobar clus". Eis aí, o cético que de nada tem certeza, falando em bem e mal. Eis aí, Guilherme-Eco a afirmar que devem existir arcanos, ele que tanto defendeu a tese de que os segredos herméticos são vazios. Para Guilherme-Eco, pelo menos, a ciência deveria ser esotérica e seus tratados deveriam ser labirintos cifrados, ocultando em seu "Finis Africae" os segredos e as verdades mais importantes ou mais perigosas.

Entretanto, tais segredos do 'Finis Africae" racionalista e moderno não deveriam permanecer para sempre sepultados. O que disse Frei Guilherme "não significa que os segredos não devam ser revelados, mas que compete aos sábios decidir quando e como "(R 111).

Está aí. Eis proposta por Eco a instalação de uma comissão de censura e de seleção para estabelecer quem pode conhecer as verdades, e que verdades, e quem deve permanecer na ignorância. Idéia bem moderna a de Eco e bem democrática... O curioso é que nenhum livro, nenhum artigo, nenhum comentador denunciou essa opinião tão despótica de Eco. Pelo contrário, Eco só recebeu elogios...

E quem seriam os tais sábios incumbidos de revelar ou não os arcanos da ciência e para quem? Seria membro dessa "Comissão Central de Sábios" o cego Jorge de Burgos? Hitler ou Stalin? O bibliotecärio homossexual Malaquias de Hidelsheim? D. Arns ou Lula? O Abade Abbone? Frei Boff ou Frei Betto-Juca Pato 85? Torquemada ou Goebbles? Que tal Djerjinsky e Fidel?

Quem faria parte desse Conselho de Controle da Verdade? Como seriam escolhidos os membros dessa Comissão de Censura das Verdades que deveriam ser conhecidas ou ocultadas? Haveria também uma Comissão para cifrar verdades? Quem sabe seria útil também estabelecer uma Comissão para fazer passar mentiras por verdades, afim de melhor esconder informações que poderiam vir a ser perigosas? Roberto Marinho faria parte dessa Comissão? Onde seria colocado o Cardeal Ratzinger? Que relações haveria entre essa Comissão de Censura e a Comissão Justiça e Paz?

Eco não elucida com mais detalhes sua sugestão, nem se tomaria por modelo a Academia de Ciências da Suécia ou o finado Soviet Supremo de Moscou... De qualquer modo, esses Conselhos seriam versões laicas do Santo Ofício. Uma Inquisição - bem pouco santa- da Ciência e da Cultura, que teria que organizar suas eficientes Tchekas, para liquidar os inimigos do Povo e da Ciência.

Assim se vê que o relativismo é um dogmatismo; que a tolerância absoluta é a larga avenida que conduz diretamente a Auschwitz e ao Gulag; que o ódio à Inquisição cria as Tchekas e a Censura Invisível que é a Censura mais eficaz e mais hipócrita; que o liberalismo gesta em seu ventre a alma de Robespierre, o espírito de Lênin, de Hitler e de Stalin.

Na França de 1793 e 94, o homem bom de Rousseau redigiu a Lei dos Suspeitos e montou a guilhotina para decapitar até quem se atrevia usar roupas melhores aos domingos, ou quem fosse à Missa. Na Espanha da Passionária, era-se preso por usar gravata... com a qual depois se enforcava o teimoso, que não se ajustara aos novos figurinos e à nova ordem da tolerante democracia popular "roja". E depois se ataca a Inquisição medieval e se fala de Idade das Trevas.

As ideologias modernas são, no fundo, religiões laicas que só atacam a Igreja para destruí-la e tomar o seu lugar. Por isso diz Eco pela boca de seu inefável e contraditório Frei Guilherme:

"Eu e meus amigos achamos hoje que a conduta das coisas humanas não cabe à Igreja, mas à assembléia do povo legislar, do mesmo modo no futuro caberá à comunidade dos doutos [Lá vem o Soviet Supremo, o Santo-Ofício estatal!] propor essa novíssima e humana teologia que é a filosofia natural e magia positiva."(R 240).

E repare-se: "eu e meus amigos..." Ora, esse grupo de Frei Guilherme, imaginado por Eco, e que fazia planos para reformar a Idade Média, não constituíam, caso tivesse existido, um grupo de conspiradores? Conspirariam eles ao ar livre ou secretamente? Teriam também eles segredos vazios?

De tanto dar voltas e reviravoltas em seus labirintos, Eco acabou por chegar ao ponto de onde partira e que condenara: a ciência graduada e guardada na Idade Média - mas nunca esotérica - deveria hoje ser cifrada, guardada e graduada secretamente pelo "Conselho dos Doutos".

Esse Santo Ofício do Relativismo do futuro Reino do Amor e dos Sábios, deveria cuidar de substituir o medieval Reino de Deus, reino que não é deste mundo, pelo Reino do Homem, no qual "a ciência de Deus se manifesta através da ciência do homem. "(R 109), para servir o Homem. "Esta é a magia santa ".

"Glória ao Homem!", exclamou jubiloso Paulo VI, quando os astronautas chegaram à Lua. Ele que deveria conduzir os homens ao céu, contentou-se com a chegada deles à Lua...

Como esse grito do Papa do Vaticano II se coaduna com as idéias de Frei Guilherme! Como ele contraria o canto dos anjos em Belém; "Glória a Deus nas alturas !"

Glória ao Homem na Lua! Glória à Humanidade da qual, no Vaticano II, "a Igreja quase se declarou escrava", conforme proclamou Paulo VI (Paulo VI, Discurso de encerramento do Concílio Vaticano II, em 7-XI-1965, Lumen Gentium, Vozes, Petrópolis, 1966, coleção documentos Pontifícios, n. 155, 2a.. ed., p. 119).

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Misticismo gnóstico e Panteísmo racionalista podem adotar o mesmo grito de "Glória ao Homem", pois ambos são naturalistas. Ambos, no fundo, têm o mesmo fim, embora divirjam quanto aos meios para alcançar a deificação do Homem. Ambos concordam que, na questão do saber, não pode haver comunicação de todos os conhecimentos para todos. Deveria haver um saber esotérico. Tanto o cego Jorge de Burgos quanto Frei Guilherme de Baskerville convinham que houvesse arcanos no saber, e, portanto, controle de investigação. Quando Frei Guilherme dizia que era preciso impedir que homens de má vontade usassem mal as descobertas da Ciência, o monge Jorge de Burgos poderia até concordar. Só que, para o cego anti-racionalista, o que deveria ser mantido em segredo no "Finis Africae", eram as obras que destruíssem sua cosmovisão mística, que, por sua vez, era execrada por Frei Guilherme.

Portanto, a luta pelo controle do saber se resume, segundo o livro de Eco, numa disputa entre dois sistemas opostos da captação da realidade: o da mística irracional gnóstica e o do racionalismo.

Tirésias volta a encontrar-se com Édipo.

 

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Online, 28/03/2024 às 16:02:53h