Religião-Filosofia-História



VII - O 4o item fundamental da Gnose, segundo Olavo de Carvalho

"Expansão da divindade numa série de potências ou Aeons, um processo que, num ponto qualquer do seu desenvolvimento, teria dado errado, ocasionando a criação deste universo mau".

 

VII - 1. Observações iniciais

Antes de tudo, é preciso notar um erro de posicionamento deste item: é claro que ele deveria ter sido posto como segundo item. Sua colocação em quarto lugar, fere a lógica da exposição, pois já se tratou da evolução da Divindade, e da ação do Demiurgo.

Essa falta de ordem nos quatro itens de Olavo, levará a uma certa repetição dos temas já tratados.

Culpa de Olavo.

Outro ponto importante a reter é que no item IV, tal como foi formulado por Olavo, se fala em "expansão" e em "processo" da Divindade e não em "emanações" da Divindade, como em geral se diz, na Gnose.

Ora, admitir um processo ou evolução interna na Divindade é doutrina típica da Gnose. O que Guénon tem de original, quanto a esse ponto, é a afirmação de que não houve emanação ad extra da Divindade: para ele, o processo se daria apenas ad intra, na Divindade. Por isso, ele recusa usar o termo criação, substituindo-o pelo termo "manifestação".

Que René Guénon aceitava a doutrina de um processo evolutivo na Divindade, a qual teria se desdobrado em uma multidão de princípios intermediários entre ela e o mundo "manifestado", é patente para quem quer que tenha lido seus livros mais importantes.

Para comprovar isso basta ler alguns dos livros dele, tais como: Introdução Geral às Doutrinas Hindus, ou A Metafísica Oriental, ou ainda L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, Os Estados Múltiplos do Ser, o Études sur L‘ Hinduisme, o Formes Traditionnlles et Cycles Cosmiques, etc.

Guénon quase que só fala disto. Se fossemos citar todos os textos em que ele expõe essa doutrina dos processos ad intra Divindade, que teriam culminado com a queda provocada pelo Demiurgo, reeditaríamos as suas obras. Portanto, limitar-nos-emos apenas a alguns textos mais significativos.

 

VII - 2. Guénon e o problema da criação ex nihilo

Antes de citar e examinar os textos de Guénon e de Olavo de Carvalho sobre essa questão, é conveniente colocar alguns pressupostos.

Há fundamentalmente três posições possíveis nesse problema relativo a Deus e à criação:

1) A posição doutrinária do Catolicismo. Conforme a doutrina da Igreja Católica Deus é ato puro, absolutamente perfeito e sem possibilidade de mudança. Por isso Deus assim se definiu: "Eu sou aquele que é "(Ex, III, 14), isto é, o Ser absoluto, imóvel, o Ato puro. Por isso também Deus disse: "Eu sou Deus e não mudo "(Mal. III, 6). Por isso, ainda, Deus, salientando que Ele é absolutamente transcendente ao mundo criado, afirmou: "Deus não é como o homem capaz de mentir, nem como o filho do homem sujeito a mudanças"(Num. XXIII, 19). Essas verdades são completamente negadas por Guénon.

Além disso, a doutrina Católica ensina que Deus criou o mundo por um ato livre de sua vontade, e que o criou do nada (ex nihilo").

2) O Panteísmo, a seu turno, ensina que o mundo é feito da própria substância divina, e que, por essa razão, tudo é divino, inclusive a matéria.

3) A Gnose afirma que a Divindade é essencialmente evolutiva, e que, nesse processo de evolução, teria havido um engano, o surgimento do Demiurgo criador ou causador da matéria e do mundo, oposto à Divindade.

Guénon recusa terminantemente a criação ex nihilo, ensinada pelo Catolicismo, assim como recusa o Panteísmo. A sua posição é a da Gnose, com uma diferença: muitas seitas gnósticas afirmam que o universo foi emanado da Divindade ad extra. Guénon, com a Gnose hinduísta, pretende que o mundo - que ele chama de manifestação e não de criação - não foi "manifestado" ad extra, mas sim ad intra, na Divindade.

Por essa razão, Guénon, em certos livros, recusa explicitamente a idéia de emanação ad extra Divindade, o que pode levar alguns a julgar erroneamente que ele recusa a existência de um processo evolutivo na própria Divindade. Essa distinção, porém, não o coloca fora do sistema gnóstico.

 

Rejeição da criação ex nihilo

Para comprovar isso, comecemos pelo primeiro artigo de René Guénon, Le Démiurge, escrito para a revista La Gnose, que ele assinou como Bispo da Igreja Gnóstica, sob o nome de "T. Palingenius".

Já citamos em parte esse texto, mas a ilogicidade dos quatro itenzinhos de Olavo nos obriga a repeti-lo para manter a lógica de nossa exposição.

Lá se pode ler que Guénon rejeitava expressamente a criação ex nihilo, mas, inicialmente. parecia repelir também a idéia de que o universo teria emanado da Divindade.

Na realidade, ele pretende que, embora tenham existido transformações na Divindade, o universo teria surgido de uma "queda" Metafísica, e que o universo - conjunto das coisas manifestadas - estaria, de fato, na própria Divindade.

"É evidente que o perfeito não pode produzir a imperfeição, já que, se isto fosse possível, o perfeito deveria conter em si mesmo o imperfeito em estado principial, com o que deixaria de ser o perfeito. O imperfeito não pode então proceder do imperfeito por via de emanação; assim não poderia resultar senão da criação "ex nihilo", mas como admitir que algo possa proceder do nada, ou, em outros termos, que possa existir alguma coisa carente de princípio? Por outro lado admitir a criação ex nihilo" seria admitir o aniquilamento final, e não há nada mais ilógico que falar da imortalidade em tal hipótese. Mas a criação assim entendida é um absurdo, posto que é contrária ao princípio de causalidade, que é inegável para todos homem sincero e medianamente razoável, com o que podemos dizer como Lucrécio: "Ex nihilo nihil, ad nihilum nihil posse reverti"(René Guénon, como Bispo Palingenius, Le Démiurge, p. 1).

A mesma negação da criação ex nihilo pode ser lida no livro Esoterismo Islâmico e Taoísmo, versão castelhana.(Ediciones Obelisco, Barcelona, 1992, p.70).

Por outro lado, Guénon, como já vimos, repele o panteísmo, porque, com o Hinduísmo, considera a matéria pura ilusão. Ele previne que não se caia no erro de pensar que, por não aceitar a criação ex nihilo, ele aceite o panteísmo.

"É pois bastante claro que o que acabamos de dizer se liga estreitamente no pensamento de uns e outros à imputação de "panteísmo" dirigida comumente às mesmas doutrinas orientais e da qual temos demonstrado a miúdo sua completa falsidade, inclusive até ao absurdo (já que o panteísmo é na realidade uma teoria essencialmente anti metafísica) para que seja inútil voltar a isso de novo" (R. Guénon, Esoterismo Islâmico e Taoísmo, ed. cit., p. 67).

 

VII - 3. Guénon e o emanacionismo

Nesse mesmo livro, Guénon faz críticas ao emanacionismo:

"Posto que fomos levados a falar do panteísmo, aproveitaremos para fazer em seguida uma observação que tem aqui certa importância a propósito de uma palavra que se tem precisamente o costume de associar com as concepções panteístas: esta palavra é "emanação", que para alguns, sempre pelas mesmas razões e como conseqüência das mesmas confusões, querem empregar para designar a manifestação, quando não se apresenta com o aspecto de criação. Ora pois, por isso, a menos que não se trate de doutrinas tradicionais e ortodoxas, esta palavra deve ser absolutamente posta de lado, não só por causa desta associação lamentável (que esta esteja, pelo demais, mais ou menos justificada no fundo atualmente, não nos interessa), senão sobretudo porque, em si mesma e por seu significado etimológico, não expressa mais do que uma impossibilidade pura e simples. Com efeito, a idéia de "emanação" é propriamente a de uma "saída", porém a manifestação [Para Guénon, o conjunto da criação] não deve considerar-se assim de modo algum, pois nada pode realmente sair do princípio; se algo saísse dele, o Princípio, desde então, já não poderia ser infinito, e se encontraria limitado pelo próprio fato da manifestação; a verdade é que fora do Princípio, não há e não pode haver mais do que o puro nada. Se inclusive se quisesse considerar a "emanação", não em relação ao Princípio Supremo e infinito, mas apenas com relação ao Ser, princípio imediato da manifestação, este termo daria ainda motivos para uma objeção que, por ser distinta da precedente, não seria menos decisiva: se os seres saíssem do Ser para manifestar-se, não poderia dizer-se que eles eram realmente seres, e estariam desprovidos de toda a existência, pois a existência, seja de todo modo que seja, não pode ser mais que uma participação no Ser; esta conseqüência, ademais de que é patentemente absurda em si mesma, num como em outro caso, é contraditória com a própria idéia de manifestação" (René Guénon, Esoterismo Islâmico e Taoísmo. ed. cit., pp. 67-68).

"... há que abster-se também com muitíssimo cuidado de outro erro contrário aquele que consiste em querer ver uma contradição ou uma oposição qualquer entre a idéia de criação e esta outra idéia a que acabamos de aludir e para a qual o termo mais acertado que temos a nossa disposição é o de "manifestação;"(René Guénon, Esoterismo Islâmico e Taoísmo, pp. 65-66).

E Guénon então informa que a idéia de "manifestação" não se opõe, de fato, à idéia de criação. Essa última seria própria do exoterismo religioso, enquanto que a idéia de "manifestação" é mais do esoterismo, significando que tudo permanece ad intra, na Divindade (Cfr. op. cit., p. 68).

Como exemplo dessa idéia de "criação" no exoterismo, e de "manifestação" no esoterismo, Guénon dá a noção de criação no Islamismo e de "manifestação" no esoterismo islâmico:

"Já que acabamos de recorrer a um termo da linguagem da tradição islâmica, acrescentaremos isto: ninguém se atreveria, desde logo, a discutir que o Islamismo, quanto a seu aspecto religioso ou exotérico, seja ao menos tão "criacionista" quanto como pode sê-lo o próprio Cristianismo; entretanto, isto não impede de modo algum que em seu aspecto esotérico haja um nível a partir do qual a idéia de criação desaparece" (René Guénon, Esoterismo Islâmico e Taoísmo, p. 73).

Portanto, a "manifestação" da Divindade se dá na própria Divindade, não havendo nem criação ex nihilo, nem panteísmo.

Resta para Guénon a posição gnóstica, sendo que, para ele e para o Hinduísmo, a "manifestação" se dá na própria Divindade por um processo de mudança ou evolução interna..

Por essas razões, não haveria nem criação, nem emanação ad extra, da Divindade:

"Não pode haver nada que careça de um princípio; mas qual é esse princípio? Não será na realidade o Princípio único de todas as coisas? Se considerarmos o universo total, é evidente eu ele contém todas as coisas, posto que todas as partes estão contidas no todo. Por outro lado, o Todo é necessariamente ilimitado, já que se tivesse um limite, o que estivesse para lá deste limite não estaria compreendido pelo todo, sendo esta suposição completamente absurda. O que não tem limite pode ser chamado Infinito, e como contém tudo é o Princípio de todas as coisas. Por outra parte, o Infinito é necessariamente "uno", porque dois Infinitos que não fossem idênticos se excluiriam um ao outro; resultando disto que não há mais que um Princípio único de todas as coisas, e este Princípio é o Perfeito, posto que o Infinito só pode ser tal se é o Perfeito" (René Guénon, o "Bispo" Palingenius da Igreja Gnóstica, Le Démiurge, p. 1).

Para expor como se deu a "manifestação", Guénon diz que no deserto se dá a imagem a mais perfeita dela, porque lá, "a diversidade das coisas é reduzida a seu mínimo, e onde, ao mesmo tempo, as miragens revelam tudo o que tem de ilusório o mundo manifestado"(...).

"Não se poderia encontrar uma imagem mais verdadeira da Unidade desdobrando-se exteriormente na multiplicidade sem deixar de ser ela mesma e sem ser afetada por isso e fazendo voltar logo a si mesma, sempre conforme as aparências, esta multiplicidade que, na realidade, nunca saiu de si, pois não poderia haver nada fora do Princípio ao qual nada se pode acrescentar e do qual nada se pode subtrair, porque Ele é a indivisível totalidade da existência única".

(René Guénon, Esoterismo Islâmico e Taoísmo, p. 30).

 

VII - 4. O processo evolutivo na Divindade no Hinduísmo

Guénon expõe como se dá o processo evolutivo na Divindade, de modo mais pormenorizado, quando trata da doutrina hinduista.

Falando do Princípio Supremo, diz ele:

"O Princípio Supremo, total e universal, que as doutrinas religiosas do Ocidente chamam de "Deus", deveria ser concebido como impessoal ou como pessoal? (...) Sob o ponto de vista metafísico, é preciso dizer que esse Princípio é tanto impessoal quanto pessoal em relação à manifestação universal, mas bem entendido, sem que esta "personalidade divina" apresente qualquer caráter antropomórfico, já que é necessário se resguardar da confusão entre "personalidade" e "individualidade" (René Guénon, Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, ed. Ciências Tradicionais Michel F. Veber, São Paulo, 1989, p.241).

Elucida Guénon que, enquanto impessoal, esse Princípio Supremo pode ser tido como Não Ser e se chamaria de Brahma. Enquanto pessoal, ele seria Ser e se chamaria Ishiwara (Cfr. op. cit., p. 241).

"Brahma, na sua Infinitude, não pode ser caracterizado por nenhuma atribuição positiva, o que se exprime dizendo que ele é nirguna ou "além de qualquer qualificação", e ainda nirvishesha ou "além de qualquer distinção; em contrapartida, Ishiwara é chamado saguna ou "qualificado", e sadishesha ou "concebido diretamente", porque ele pode receber de tais atribuições, obtidas no universal por uma transposição analógica, diversas qualidades ou propriedades dos seres dos quais é o princípio". (R. Guénon, op. cit. p. 243).

Por sua vez, "Ishiwara é encarado sob uma triplicidade de aspectos principais, que constituem a Trimûrti ou "tripla manifestação", e dos quais outros aspectos mais particulares derivam, secundárias com relação àqueles. Brahmâ [ com circunflexo] é Ishiwara enquanto princípio produtor dos seres manifestados; ele é chamado assim porque é considerado como o reflexo direto, na ordem da manifestação, de Brahma [sem circunflexo], o Princípio supremo." (...) "Os outros dois aspectos constitutivos da Trimûrti, complementares um do outro, são Vishnu, que é Ishiwara enquanto princípio animador e conservador dos seres, e Shiva, que é Ishiwara enquanto princípio, não destruidor como se diz a torto e a direito, mas, com mais exatidão, transformador; estas são "funções universais" e não entidades separadas e mais ou menos individualizadas" (René Guénon, Introdução Geral aos Estudos das Doutrinas Hindus, pp. 243- 245).

E daí para diante la vai a "doutrina" hindu, numa exuberante e delirante enumeração de "aspectos" da Divindade, começando por "Prakriti ou Pradhana, que é a substância universal, indiferenciada e não- manifestada em si, mas de onde todas as coisas procedem por modificação; este primeiro tattwa é a raiz ou mûla da manifestação, e os tattwas seguintes representam suas modificações em diversos graus. No primeiro grau, está Budhi que é também chamado Mahat, ou o "grande princípio", e que é o intelecto puro, transcendente em relação aos indivíduos; aqui, estamos já na manifestação, mas não ainda na ordem universal". (R. Guénon Introdução Geral ao estudo das Doutrinas Hindus, pp. 273-274).

Para Guénon, "... o estado presente [do universo e do homem] não é mais que o efeito de uma queda, o efeito de uma espécie de materialização progressiva que se produziu no curso das eras, através da duração de um certo ciclo" (René Guénon, A Metafísica Oriental, Ivpiter, São Paulo, 1981, p.35. Tradução com notas de Olavo de Carvalho).

Dispenso-me de continuar a citação destes delírios gnósticos. Quem quiser conhecê-los, vá enroscar-se nessa mitologia de pesadelo, nas páginas desse livro delirante de Guénon.

Chega.

Para concluir, lembro apenas que Guénon reafirma a tese fundamental da Gnose, ao dizer que:

"A realização metafísica consistindo essencialmente na identificação pelo conhecimento, tudo o que não é conhecimento em si ‘so tem um valor de meios acessórios" (René Guénon, Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, p. 279).

 

VII - 5. Olavo e o emanacionismo

E Olavo, o que escreveu ele sobre esse problema explicitado no seu quarto item da doutrina Gnóstica?

Já vimos que ele considera que a raiz do mal, a raiz do sofrimento, está na polarização dialética do universo, que proveio do desdobramento da unidade do ser:

"A psicologia astrológica (sic!?) é uma teoria do sentido do sofrimento e da raiz deste último nas polarizações que cosmogonicamente desdobram o orbe manifesto a partir da unidade do ser" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, Nova Stella, São Paulo, 1985, p. 65).

Ora, essa formulação diz, com palavras diferentes, exatamente o que está afirmado no IV item da Gnose, segundo Olavo. Parece que ele anda muito esquecido do que escreveu...

Tão esquecido que não se "lembra de que, para Olavo de Carvalho, "... a unidade primordial, o ser, de onde emanam todas as coisas" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, Nova Stella, São Paulo, 1985, pp. 74-75. O negrito é do próprio Olavo).

E note bem, meu caro Felipe, que Olavo usou o verbo emanar, que Guénon não usa. Portanto, Olavo é ainda mais claramente gnóstico do que Guénon, pelo menos nessa frase.

Essa doutrina tipicamente gnóstica é repetida por Olavo, noutra passagem de outro de seus livrecos, que já citamos, mas na qual queremos, agora, frisar a idéia de emanação.

"A segunda conseqüência, de ordem teórica, é que todas as modalidades de ser passam a ser entendidas como modalidades de conhecer; por exemplo, as formas existenciais dos entes - a forma dos planetas, dos anjos, das flores e bichos, entendendo-se forma, evidentemente em sentido amplo e estrutural, não restrito e visual - são também suas modalidades de conhecer. De conhecer o que? A Unidade mesma da qual derivam" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 26. O negrito é meu).

Além de novamente afirmar que tudo deriva da Unidade Primordial --e vimos que Olavo entende deriva como emana - nessa frase está afirmado que todos os seres, pelo fato de serem, conhecem, e conhecem a Unidade primordial de que derivam. portanto, para Olavo, a flor, por exemplo, tem em si, algo que permite a ela conhecer (cfr. Astrologia e Religião, Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 26). De alguma modo ela, a flor, teria participação no intelecto. O que está logicamente de acordo com o restante da doutrina defendida por Olavo de que tudo provem do Intelecto Primeiro. Mas isto é exatamente Gnose..

No Natal de 1997, Olavo publicou um artigo intitulado Lux in Tenebris. Evidentemente, o título e a data escolhida para sua publicação, levariam os leitores a julgar que era um artigo sobre o nascimento de Cristo, tanto mais que nele se falava do nascimento do Logos. Na realidade, Olavo expunha, nesse artigo, mais ou menos vagamente, a doutrina gnóstica da queda da Divindade e da evolução das partículas divinas aprisionadas até a sua libertação.

Veja os trechos mais importantes e preste atenção à terminologia guénoniana:

"Desdobrado sob a dupla aparência de consciência e de presença, é o mesmo Logos, a mesma Inteligência que se manifesta dentro e em torno de nós, que dialoga consigo sempre que um homem vê uma pedra e a pedra é mostrada a um homem" (Olavo de Carvalho, Lux in Tenebris, artigo in Jornal da Tarde, 25 - XII 1997).

O que está dito aí de modo obscuro é que o Logos, a Inteligência divina existe, quer na consciência, quer nas coisas como presença, e é ela que dialoga consigo mesma, quando o homem pensa e conhece uma pedra. Uma só "Luz" divina existiria oculta nas trevas da matéria. Lux in tenebris... E o universo não foi criado: foi um desdobramento da Divindade.

A seguir, nesse mesmo artigo, Olavo explica a doutrina hinduísta, propagada por Guénon, a respeito das manifestações da Divindade no Cosmos, e o retorno dos atmâs a Brahma, claro, em linguagem velada, esotérica:

"No fluxo do tempo cósmico, esse Logos atravessa, desde o ponto de vista humano, ciclos de revelação e de ocultação, marcados por quatro momentos fundamentais: o momento em que ele se oculta na multiplicidade confusa do mundo; o momento em que ele se refugia no fundo obscuro da consciência isolada; o momento em que ele se manifesta com todo o esplendor na inteligibilidade do mundo em torno; e o momento em que ele se manifesta com todo o seu esplendor na auto realização da consciência humana"(Olavo de Carvalho, Lux in Tenebris, In Jornal daTarde, 25 - XII - 1997).

Esquematizado esse texto, veja como fica bem clara a doutrina gnóstica de Olavo, e como ele espertamente a oculta :

Ele diz aí que o Logos, o Intelecto, como diz o sufismo passa por quatro momentos:

1) A queda na multiplicidade confusa do mundo manifestado;

2) O ocultamento dos atmâs ou éons divinos, nas coisas criadas;

3) O afloramento do Intelecto nas consciências através da compreensão do universo inteligível;

4) A Auto Realização Suprema do homem pela união de seu atmâ com o Intelecto divino, através do Conhecimento Supremo.

Isso tudo, foi dito em um artigo que dizia respeito ao nascimento do Logos, num artigo de Natal, quando a luz de Deus nasceu em Belém... Lux in Tenebris.

Indiscutivelmente hábil. Esotericamente hábil. Mas num artigo gnóstico, aparentando ser cristão.

Voltemos ao Astros e Símbolos de Olavo, para encontrar nova confirmação de que as coisas existentes no universo emanaram da Unidade Primordial.

"O que estabelece a analogia entre dois entes, portanto, não são as similitudes que apresentam no mesmo plano, mas o fato de que emanam de um mesmo princípio, que cada qual representa simbolicamente a seu próprio modo e nível de ser, e que contendo em si um e outro, é forçosamente superior a ambos" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 39. O negrito é do Olavo. E tão apropriado que me dispensou de colocá-lo).

Portanto, Guénon defende a tese das transformações ad intra, na Divindade.

Olavo, mais claro, fala de emanações, sem dizer que elas são ad intra.

 

VII - 6. O Mundo Imaginal Shiita e Olavo

Olavo inclui no universo manifestado, que se teria desdobrado da Unidade Primeira, também o "mundo imaginal" da Gnose shiita:

"A contra partida ontológica dessa faixa psicológica é o denominado mundus imaginalis, o mundo das formas imaginais, que não se confundem com o imaginário (Hugo atribui o imaginário à parte corporal) e que constituem o elo perdido entre o mundo dos sentidos e as "formas puras (ou abstratas) do entendimento(...)". (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 42. O negrito é de Olavo.).

Então, haveria um mundo imaginal - tal qual na Gnose shiita (Cfr. Henry Corbin, En Islam Iranien.) - que seria o elo entre o mundo puramente material e o mundo superior, puramente espiritual, como ensina a Gnose shiita. E não se pense que sou eu que acuso que isso é relacionado com a Gnose shiita. É o próprio Olavo que escreve:

"Um estudo da consistência e das estruturas do mundus imaginalis poderia levar-nos demasiado longe de nosso propósito, que é simplesmente o de definir o sentido da palavra "Zodíaco", mas podemos remeter o leitor à obra monumental de Henry Corbin que fornece não apenas a explicação, mas a atestação documental extensa das concepções sobre o imaginal, sobretudo na filosofia persa, que ele foi o primeiro autor a divulgar no ocidente". (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 60).

Ótimo.

Só que Olavo esqueceu de dizer que a tal "filosofia" persa é a Gnose shiita. Quem quiser comprová-lo, que leia os quatro volumes de Corbin ns quais ele afirma isto explicitamente: a doutrina shiita é a Gnose do Islam.

E Olavo explica mais: nesse mundo imaginal, existiriam não só os símbolos, mas também os "entes imaginais", simbolizados por eles" (Olavo de Carvalho, op cit., p. 43).

E prossegue Olavo, impertérrito, em suas afirmações gnosticamente descabeladas:

"E é no mundo imaginal que reencontramos então os anjos e os personagens todos das narrativas bíblicas e mitológicas, como formas de realidade que não se reduzem nem ao nosso psiquismo subjetivo, nem a uma objetividade meramente exterior" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 43).

E como ele colocara nesse mundo também os seres mitológicos como o centauro, eis que os personagens bíblicos ficam reduzidos ao nível dos centauros e capricórnios do zodíaco...embora ele diga que "o mundus imaginalis é o âmbito das hierofanias, das aparições sacrais"(Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 61).

E basta! Que já escrevi bem mais do que a meia palavra necessária para os bons entendedores, que, para os maus, não adianta escrever mais.

 

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    Para citar este texto:
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MONTFORT Associação Cultural
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Online, 21/05/2024 às 05:22:24h