Religião-Filosofia-História



VIII - Os Desenvolvimentos Secundários da Gnose, conforme Olavo de Carvalho

 

VIII - 1. Preliminares

No seu AVISO 2, Olavo diz:

"Desses princípios - (os quatro pontos doutrinários fundamentais da Gnose em... nível de enciclopédia popular) - derivam alguns desenvolvimentos secundários, dos quais os mais notórios são a concepção sexual do pecado original (hoje, por ironia, atribuída pela mídia à Igreja Católica), o ascetismo destrutivo e o milenarismo revolucionário que originou as ideologias modernas"

E desafia Olavo: "Qualquer tentativa de caracterizar como gnóstico - herético o meu pensamento só poderia ser levada em conta se demonstrasse nele, a vigência desses princípios e a adesão a esses desenvolvimentos" (Olavo de Carvalho, AVISO 2).

E ele nega de pés juntos que esses princípios e desenvolvimentos existam em sua doutrina e em sua vida. E garante:

"Tudo isso é tão evidente nos meus textos e aliás até na minha vida pessoal, que a acusação de gnosticismo levantada pelo sr. Orlando Fedeli, no essencial, não pode pretender ao estatuto de coisa séria".(Olavo de Carvalho, AVISO 2).

Mas, ao mesmo tempo ele se resguarda, fazendo uma restrição ao dizer que o fato de haver algum elemento gnóstico num autor, num estilo de arte, em ciências, etc, misturado com elementos cristãos, não tornaria esse autor, estilo, ciência, etc, de si gnósticos. E como exemplo disso, menciona a Alquimia e Astrologia:

: "Só para dar um exemplo, a mesma teoria da influências dos astros sobre as paixões humanas se encontra idêntica em Sto Tomás de Aquino e em Robert Fludd. É cristão no primeiro e gnóstica no segundo, não porque apresentem qualquer diferença interna mas pelo lugar que ocupa nas concepções globais de um e de outro"(Olavo ce Carvalho, AVISO 2, 17-4 - 2001).

Ora, já demonstramos que os quatro pontos fundamentais da Gnose indicados por Olavo existem na doutrina de René Guénon, assim como nos livros e escritos de seu discípulo Olavo de Carvalho.

Ademais, nem todos os sistemas gnósticos explicitam simultaneamente todos esses "desenvolvimentos secundários", como os chama Olavo, e nem por isso deixam de ser gnósticos.

Por exemplo, há uma contradição evidente entre o primeiro ponto e o segundo. A concepção do pecado original como o ato conjugal de Adão e Eva, que leva à condenação do matrimônio e à proibição por vezes absoluta de todo ato sexual, é própria das seitas gnósticas ascéticas, como o catarismo e o maniqueísmo.

Outras seitas gnósticas defendem o oposto, isto é, o desprezo da matéria por uma violentação completa da lei moral imposta pelo demiurgo, ensinando e praticando um antinomismo radical. (Aliás, Olavo reconhece essa dualidade de atitudes face à matéria nas seitas gnósticas). Foi esse antinomismo gnóstico que Cristo condenou, falando aos Fariseus: "Aquele, pois, que violar um destes mandamentos mais pequenos, e ensinar assim aos homens, será considerado o menor no Reino dos Céus"(Mt V, 19).

Em geral, essas seitas gnósticas antinomistas são as que colocam mais claramente a origem do mal na Divindade e não na culpa de Adão. Como já dissemos, elas falam mais de um pecado ante original, metafísico, acontecido na própria Divindade, antes do que numa culpa moral do primeiro casal. É o que ocorre, por exemplo na gnose hinduísta seguida por Guénon e por Olavo.

O Cardeal Ratzinger, no seu último livro, explica precisamente isto.

"O "pecado original", por exemplo, costumeiramente tão difícil de ser entendido, é identificado com a queda no finito, e assim resulta claro que ele pesa sobretudo sobre aqueles que se acham no círculo da finitude" (Cardeal Joseph Ratzinger, Introduzione allo Spírito della Liturgia, p. 28).

Finalmente, há as seitas gnósticas que assumem uma postura dialética quanto a esse ponto, quer adotando uma posição ascética para os seus novatos, quer, posteriormente um antinomismo absoluto, quando eles teriam alcançado a ‘realização" gnóstica por meio de uma suposta identificação com a Divindade. Era o que faziam por exemplo, os Irmãos do Livre Espírito, no final da Idade Média, os quietistas, certos grupos cabalistas, alguns grupos sufis, e os ismaelitas de Alamut.

Entretanto, todas essas seitas, são gnósticas, embora adotem ou o 1o ponto "secundário" citado por Olavo, ou só o 2o, ou, dialeticamente, os dois ao mesmo tempo.

Vejamos então, sucintamente, alguma coisa sobre os pontos que Olavo chama de "desenvolvimentos secundários" da Gnose.

VIII - 2. O 1o Desenvolvimento Secundário da Gnose conforme Olavo: a concepção sexual do pecado original.

Como já ressaltamos, a Gnose, normalmente, coloca a origem do mal na própria Divindade. O mal seria ontológico e não moral. Para o Catolicismo, o mal é apenas moral, e nunca metafísico, pois, como demonstrou Santo Agostinho em seu obra Contra Manicheos, se o mal absoluto existisse, ele teria o bem da existência, e, portanto, não seria mal absoluto. Ademais, o mal é o que vai contra a natureza. logo, ele não pode ser natureza. Mal, então, é a ausência de ser ou a ausência de ordem. O que é confirmado pela Sagrada Escritura na qual se lê que Deus, ao criar cada coisa, afirma que cada coisa é boa. (Cfr. Gênesis, cap. I).

Para a Gnose, o mal é ontológico, tendo se dado na própria substância divina, e provocou a queda da Divindade no Universo material. Se as seitas gnósticas insistem mais nesse ponto do que na queda de Adão, elas são antinomistas. Se insistem mais no pecado original de Adão, elas são preponderantemente ascéticas. Por isso, algumas das seitas gnósticas deste último tipo condenam o ato sexual como perpetuador da matéria e do aprisionamento dos éons divinos nos corpos materiais. É esse o caso da seita gnóstica mais conhecida, o Maniqueísmo, cuja posição face ao problema do mal foi repetida pelo Catarismo medieval, e por vários outros grupos gnósticos, no decorrer da História.

Para as seitas gnósticas de tipo maniqueu, os atos sexuais seriam "abjetos, bestiais, imitação de conjunções diabólicas. Sobretudo, eles têm por resultado, pela propagação da espécie, a transmissão do Mal original. Eles fazem do homem o cúmplice e o instrumento da Matéria fabricada pelo Demiurgo, para manter as partículas da luz sujeitadas na turpitude dos corpos, a fim de continuar a dominá-las, prolongando o cativeiro de geração em geração. Em suma, a sexualidade forma o mais grave obstáculo para a redenção da humanidade, que ela retarda e impede. Daí, para o maniqueu que tende à perfeição - ou o que é a mesma coisa - à santidade, um dever primordial, imperativo, bem resumido e explicado por Alexandre de Lycopolis: trabalhar em cooperar para a ruína da Matéria decretada por Deus(...) e, em conseqüência, abster-se não só de todo alimento animal, mas também, mas sobretudo, abster-se do casamento, de todo comércio sexual, da procriação de filhos, afim de que o Poder (divino) não continue mais tempo a permanecer na Matéria conforme a propagação do gênero humano(...). (Henri Charles Puech, Sur le Manichéisme et Autres Essais, Flammarion, Paris, 1979, pp. 66-67).

Entretanto, com a Cabala essa questão é mais matizada. Para os judeus, o casamento era obrigatório, e o ter filhos era, como é, uma benção de Deus. Pelo contrário, a esterilidade era um sinal de maldição, porque significava que Deus recusava que a pessoa estéril tivesse qualquer parentesco com o futuro Messias.

Por isso, a Gnose não poderia penetrar entre os judeus, condenando o casamento e a reprodução.

Os primeiros sinais de introdução, entre os judeus, de um misticismo herético que irá mais tarde desembocar na Gnose cabalista, se deu ainda no período do segundo Templo, isto é, ainda no século V antes de Cristo, conforme Gerschom Scholem, cuja autoridade na questão é indiscutível (cfr. Gerschom Scholem, A Mística Judaica, Perspectiva, São Paulo, 1972, pp. 39, 41, 48 nota 24).

Entretanto, a nosso ver, antes mesmo da queda e destruição de Jerusalém, já teria havido essa infiltração. Baseamos nossa opinião no próprio texto da Sagrada Escritura.

Com efeito, no livro de Ezequiel se conta que Deus mostrou ao Profeta que a destruição da cidade santa e do Templo fora causada porque os sacerdotes judeus, secretamente, nos subterrâneos do Templo, adoravam os deuses do Egito, enquanto, na superfície, fingiam continuar adorando o Deus verdadeiro. E é claro que, se adoravam os ídolos do Egito, era porque admitiam a doutrina que explicava essa adoração, que era a Gnose egípcia. (cfr. Ezequiel, Cap. VIII).

Creio que você conhece o texto de Ezequiel, no qual ele mostra como Deus levou o Profeta, em visão, ao interior do Templo de Jerusalém, através de uma porta secreta que existia na parede do Templo. É um texto que parece até o de um romance policial... Entretanto é inspirado por Deus, e tem que ser aceito, é evidente, acima da opinião de Scholem.

O Sefer ha Zohar, o principal livro da Cabala, escrito no século XIII como um pseudo epigráfico, por Moisés Shem Tov de Léon, afirma que o pecado original foi um ato sexual:

"Depois que o homem dirigiu todas essas palavras para a mulher, a inclinação má despertou, deixando-o pronto a buscar a união com ela em desejo carnal, e incitou-a a coisas nas quais a inclinação má tomou prazer, até o fim. A mulher viu que a árvore era boa para ser comida, e que dava prazer aos olhos e tomou da fruta arrancou-a e a comeu - dando logo admissão para a inclinação má - e deu-a também para seu marido com ela: era ela agora que procurou despertar desejo nele, de modo a conquistar seu amor e afeto"(Zohar, I, 49, b.).

Entretanto, a Cabala também diz que o ato conjugal é o meio para reunir de novo a Sefirah Malkult ou Shekinah, isto é o sexo feminino da Divindade, com a Sefirah Yesod, o sexo masculino dela - porque em Deus haveria dualidade sexual, entendidas essa duas sefiroth como princípios, e não materialmente, assim como haveria a dualidade de bem e mal - permitindo que Malkult - a Shekinah - retorne ao pléroma divino.

A Cabala então, ao mesmo tempo em que afirma que o pecado original foi um ato sexual, diz que a união conjugal é um ato mágico que anula a individualidade, ao unir os esposos, e faz com que a Shekinah se reuna a Yesod, reconduzindo as partículas divinas que haviam caído no mundo material - no mundo da manifestação, na linguagem de Guénon - ao seio da Divindade, de volta ao pléroma divino. A Cabala é então uma Gnose dialética também no campo da moral conjugal

"O Nome Santo não pode permanecer sobre nada que é falho. Por conseguinte, um homem que deixa esta vida defectivo por não ter deixado um filho após ele não pode ligar-se ele mesmo ao Santo Nome e não é admitido atrás da cortina, porque ele é defectivo e uma árvore que foi arrancada deve ser plantada de novo; porque o Santo Nome é perfeito em todo sentido, e nenhum defeito pode estar ligado a ele"(Zohar, I, 48 a).

A mulher seria assim, ao mesmo tempo, a causa do mal, enquanto instrumento da perpetuação da matéria, e o médium para reunir as partículas da Divindade tombadas no cárcere da materialidade fazendo-as retornar ao pléroma divino.

Essa mesma doutrina vai ser repetida por Jacob Boheme, cuja gnose é uma reprodução "cristianizada" do sistema cabalista de Isaac Lúria de Safed.(cfr. Jacob Boehme, Mysterium Magnum, XIX. 19; e Sex Puncta Philosophica, V, 14, VI, 8 e 9; Alexander Koyré, La Philosophie de Jacob Boehme, Vrin, Paris, 1971).

Se você, Felipe, quiser ler sobre isto, recomendo-lhe que leia os livros de Scholem sobre a Cabala, especialmente Major Trends in Jewish Mysticism, Les origines de la Kabbale, e Messianic Ideas in Judaism, assim como todos os livros de Boehme.

A Gnose cabalista de Boehme teve uma grande repercussão no Ocidente, inicialmente nos livros de Isaac Newton, depois na Gnose de Martinez de Pasqualis e de Louis Claude de Saint Martin. Este, o "Filósofo Desconhecido", influiu profundamente nos meios católicos através dos livros do maçon Joseph de Maistre, que difundiu a cabala de Boehme entre os ultramontanos franceses e italianos, especialmente. Até hoje, Joseph de Maistre influi - pessimamente- nos "tradicionalistas" católicos...(cfr. René le Forrestier, La Franc-Maçonnerie Occultiste au XVIII Siècle et L’ Ordre des Élus Cohens, Dorbon-Ainé, Paris, 1928; e Émile Dermenghem, Joseph de Maistre Mystique, Éd. D’Aujourd’hui, Paris, 1979).

Mas a maior influência do Martinismo e de Boehme verificou-se nos filósofos idealistas alemães e no Romantismo.

É de mau tom alguém citar-se a si mesmo, mas como em português é muito difícil encontrar livros sobre esse tema, fico constrangido a pedir-lhe que tenha a paciência de ler o primeiro capítulo de minha tese sobre a Gnose nas Visões de Anna Katharina Emmerick, no site Montfort.

Lá, você lerá que, nas pseudo visões de Ana Katharina Emmerick, se defende exatamente essa tese: que o pecado original foi o ato conjugal. E nisso essas falsas visões seguem a Cabala. Todos os detalhes dessas visões mentirosas, que se afastam da narração bíblica, são tirados de livros cabalísticos.

O Romantismo foi o meio que a Gnose usou para infiltrar-se nos meios católicos, como salientou Alain Besançon.

No esoterismo hindu e maometano, o problema do pecado original de Adão e Eva é deixado em segundo plano, colocando-se o problema do mal no plano ontológico, e não moral ou humano. Aliás, seria difícil fazer a Gnose entrar na Arábia condenando o ato sexual... No Corão, a felicidade paradisíaca é descrita exatamente em termos sexuais...

O que não torna a Gnose Hindu nem a Gnose islâmica menos gnósticas.

Desse modo, se em Guénon e em Olavo de Carvalho, não se acha uma condenação do ato sexual, isso não basta para isentá-lo de adesão e propaganda da Gnose. Apenas os coloca num grupo de seitas gnósticas do segundo tipo (as antinomistas), diferente das ascéticas (como a maniquéia), quanto a esse ponto, que Olavo chama de "secundário", na doutrina da Gnose...

Entretanto, é preciso lembrar que Guénon - muito reticente quanto ao misticismo - não deixa de elogiar as pseudo "visões" de Anna Katharina Emmerick:

"O que faz todo o interesse de certas visões, é que elas estão de acordo, em numerosos pontos, com dados tradicionais evidentemente ignorados pelo místico que teve essas visões". E, em nota aposta a essa afirmação, diz Guénon:

"Pode-se citar aqui como exemplo as visões de Anna Catherina Emmerich"(René Guénon, Aperçus sur L‘ Initiation, Éditions Traditionnelles, Paris, 1992. p.22 e nota 3).

E, dessa vez, não discordamos de Guénon: Anna Katharina Emmerick concorda em muitos pontos com as doutrinas gnósticas de Guénon.

Para não ser injusto com o sr. O de C. devo dizer que é preciso concordar também com ele, pelo menos num ponto: ele afirma que a condenação das idéias gnósticas é evidente em seus textos e em sua vida pessoal (Aviso 2).

De fato, devo admitir: pelo menos na vida pessoal, pelo que é público, Olavo nada tem com este primeiro ponto "secundário" da doutrina gnóstica. Tem mais com o segundo. Pois embora, pela doutrina, ele seja tão gnóstico como um cátaro perfeito, ele não pratica, de modo algum, o moralismo ascético do "perfeito" cátaro.

 

VIII - 3. O 2o Desenvolvimento Secundário da Gnose conforme O de C: o Ascetismo Destrutivo.

O segundo "ponto secundário", apontado por Olavo, como decorrente dos quatro pontos doutrinários fundamentais da Gnose, seria o que ele chama de "Ascetismo destrutivo"

Ora, já vimos que o desprezo gnóstico pela matéria, pelo que Guénon chama de Mundo da Manifestação, pode se dar, quer pela abstenção de tudo o que seja ligado ao corpo e à matéria, como também pelo abuso da matéria através de um antinomismo radical.

Alguns gnósticos optam, pela via da abstenção ou da renúncia, a tudo o que é material, entregando-se a macerações cruéis e a jejuns anti naturais, como faziam os cátaros.

Outros, pelo contrário, a exemplo dos Carpocráticos, optam inicialmente pela violentação de toda lei moral, que eles dizem imposta pelo Demiurgo. Havia ainda seitas que juntavam os dois sistemas. Os Irmãos do Livre Espírito, por exemplo, começavam exigindo penitências terríveis. Depois, dizendo que já haviam alcançado a "libertação", se proclamavam livres de toda lei, entregando-se a orgias sem freio.

A Cabala de Isaac Luria de Safed deu origem, cerca de um século após o seu aparecimento, ao movimento de Sabbatai Tzvi. Segundo a Cabala, o mal tem raiz na própria Divindade, na sephirah Din. Considerava a Cabala que, quando as partículas da Shekinah caíram no mundo, houve algumas que caíram até mesmo em Samael (Lúcifer). Para resgatar estas partículas da Shekinah que estavam aprisionadas em Samael, seria preciso "descer aos infernos", cometendo os piores pecados. Era a doutrina da santidade do pecado, que já existia na Cabala antiga. Sabbatai Tzvi, o falso messias cabalista, apostatou, adotando o Islamismo. Seus seguidores formaram seitas de diversos nomes. Uma delas foi o Franckismo, do nome de seu lider, Jacob Franck que fundou um grupo antinomista muito importante, que procurava praticar atos que violassem a dignidade humana. Ele planejou mais ainda: queria instituir na sociedade leis que fizessem a própria sociedade ser indigna, violando o quanto possível as leis naturais estabelecidas pelo criador. Tudo isso pode ser lido na obra de Gerschom Scholem: Sabbatai Sevi, the Mystical Messiah, Princeton University Press,1975).

Segundo Scholem, o antinomismo do cabalismo Franckista era mais radical que o dos gnósticos carpocráticos:

"É seu costume (dos sabataianos, seguidores de Jacob Franck, no século XVIII) que, com a vinda de Sabatai Tzvi, o pecado de Adão já estava reparado e o bem resgatado do mal e da "escória". De acordo com eles, desde essa época, a nova Torá tornou-se a lei sob a qual todo tipo de coisas anteriormente vedadas são agora permitidas, mesmo as categorias da relação sexual que ela proibia. Pois uma vez que tudo é puro, não existe pecado ou dano nessas coisas (...) Na História do gnosticismo, os carpocracianos são considerados os representantes mais exponenciais desta forma libertinesca e niilista de gnose. Mas nada que se conhece deles atinge o espírito resoluto desse evangelho do antinomismo pregado por Jacob Franck aos seus discípulos em mais de 200 ditos dogmáticos. As idéias que ele aduzia em apoio de suas pregações constituem não tanto uma teoria como um verdadeiro mito religioso de niilismo" (G. Scholem, As Grandes Correntes da Mística Judaica, Tradução do livro Major Trends in jewish Mysticism, Perspectiva, São Paulo, 1972, p. 318).

Também os ismaelitas shiitas de Alamut - os Assassinos de Hassan Ibn Sabbah - eram deste último tipo, unindo penitências e orgias.

A Gnose sufi, por exemplo, segundo Schuon-- um dos queridos mestres de Olavo - explica que, aquilo que é proibido no exoterismo, pode ser permitido no esoterismo. E dá como exemplo o vinho.

É sabido que a lei corânica proíbe o muçulmano de tomar vinho. Entretanto, o esoterismo sufi permite que o iniciado tome vinho. Na realidade, o esoterismo islâmico tem a mesma inversão da lei típica das seitas gnósticas: desde que o adepto alcançou certo nível de iniciação, a lei, para ele, já não vale mais. Para o iniciado, a lei passa a ser apenas um símbolo, e tudo lhe fica permitido. O que é lei, o que é proibição e obrigação para os religiosos, é lícito para os iniciados, para os que atingiram a união com a Divindade.

Schuon escreve:

"No Islam, em geral, parece que sempre houve - abstração feita da distinção muito particular entre sâlikûn e majâdhib - a divisão exterior entre sufis "nomistas" [seguidores da lei] e "anomistas" [sem lei],uns apegados à lei em virtude de seu simbolismo e de sua oportunidade, e os outros destacados da Lei em virtude da supremacia do coração (qalb) e do conhecimento direto (ma’ rifah). Jalâl ed-Din Rûmi diz em seu Marhnâwt: "Os amadores dos ritos são uma classe, e aqueles cujas almas estão abrasadas de amor formam uma outra (...)" (F. Schuon, Comprendre L ‘Islam, p.27-28, nota 2).

E ainda:

"O Koran diz: "Não ides à oração em estado de embriagues", o que pode se entender em um sentido superior e positivo; o sufi, gozando de uma "estação"(maqâm) de beatitude, ou mesmo simplesmente o dhakir (entregue ao hikr, equivalente islâmico do japa hindu) considerando sua oração secreta como um "vinho" (khamr), poderia em princípio se abster das orações gerais; nós dizemos "em princípio", porque de fato, os sufis e equilibrados e solidários, tão marcados no Islam, fazem inclinar a balança para o outro sentido" (F. Schuon, Comprendre l’ Islam, p. 28, nota 1).

Schuon, que Olavo considera como um de seus mestres preferidos, defende o antinomismo de modo escancarado: "...algo sempre considerado pela moral religiosa como tentação, como via para o pecado e, portanto, começo deste, poderá no esoterismo desempenhar um papel totalmente oposto, não sendo uma dissipação 'pecadora', mas pelo contrário um fator de concentração em virtude da inteligibilidade imediata do seu simbolismo." (Frithjof Schuon, A Unidade Transcendente das Religiões, Trad. Pedro de Freitas Leal, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991, p. 59)

Schuon vai defender a tese gnóstica de que os que já alcançaram a divinização, não têm mais que se preocupar em cumprir a lei. Para eles, tudo seria permitido:

"...o homem profundamente consciente da natureza das coisas nada tem a evitar, pois os erros não podem seduzi-lo." (Frithjof Schuon, O Esoterismo como Princípio e como Caminho, Ed. Pensamento, p. 31, negrito nosso)

Para quem obteve o conhecimento, nada mais seria pecado, como diziam os quietistas:

"Censura-se igualmente o quietismo por ser imoral, visto que admite um estado em que o homem se encontra além do pecado, idéia que diz respeito a uma santidade - evidentemente incompreendida - na qual os atos do homem são de ouro, e tudo o que ele toca transforma-se em ouro..." (Frithjof Schuon, O Esoterismo como Princípio e como Caminho, Ed. Pensamento, p. 32-33).

Há, portanto, duas morais, no Islam, como em toda a Gnose: uma para os que praticam a religião exotérica, e outra para os iniciados no esoterismo, que alcançaram o Conhecimento, isto é, a Gnose.

Essa doutrina ficará mais evidente no ismaelismo de Alamut, seita shiita e tipicamente gnóstica.

Como o sufismo, o Ismaelismo de Alamut distinguia a shari’a - a lei-- que todos os religiosos devem obedecer, e a libertação da lei, de que usufruíam os que possuíam o Conhecimento salvador:

"Mas sobretudo, distinguir-se-á claramente entre a religião eterna esotérica (dîn) que significa a obediência a um senhor (maître) único e a religião positiva (shari‘a) que consiste em decretos, limitações e obrigações expressas" (Christian Jambet, La Grande Réssurection d’Alamut, Verdier, Paris, 1990, p. 72).

Essa idéia é confirmada em outras passagens desse livro. Citamos outra, para confirmar a existência da dupla moral no esoterismo islâmico de Alamut:

"O advento da Grande Ressurreição é uma ruptura libertadora. A abolição da lei, o segundo nascimento dos fiéis, a nova ética: tantos outros sinais do exercício de uma dualidade no seio do ser. É bem possível que o Ismaelismo de Alamut tenha sofrido a influência das religiões do antigo Irã, do Mazdeismo e sobretudo do Maniqueísmo"(Christian Jambet, La Grande Réssurection d’Alamut, Verdier, Paris, 1990, p. 225).

Como resultado, os ismaelitas que se julgavam na posse do Conhecimento (da Gnose) se diziam livres da obediência às prescrições legais do Corão, que eles interpretavam simbolicamente.

"A abolição da lei é a recompensa prometida aos justos, o estado angélico é próprio dos fiéis do Imam; a comunidade ismaelita, vivendo aqui em baixo em estado de ressurreição espiritual, é o povo dos anjos.

"O túmulo é o corpo humano, o castigo do túmulo são as obrigações da religião positiva (abkâm - e sharî’at). Os clientes do inferno, Munkar e Nakir, são os opressores, os mantenedores do exoterismo (zâlimân e zâhir) (...) Os habitantes do paraíso são aqueles que são liberados do aparente e que se voltam para o que é escondido. Sua retribuição, neste mundo, consiste em que sejam dispensados dos mandamentos da lei."(Christian Jambet, op. cit., pp. 107-108). E daí Jambet explica como e porque o iniciado era dispensado do jejum, da esmola, da peregrinação a Meca, dos atos de piedade, etc. (cfr. Jambet, op. cit., p. 108).

De tudo isso, concluíam os sufis que quem tivesse alcançado a união com a Divindade, - quem fosse realmente sufi - estava acima de todas as leis morais, podendo fazer o que quisesse.

Nessas condições seria de espantar que os ismaelitas usassem normalmente do haxixe? Seria de espantar que usassem tóxicos para se libertar da escravidão da razão, para entrar em pseudos "êxtases"?

Daí Albert de Pouvourville - que adotou o nome esotérico Matgioi --aquele que iniciou Guénon no Taoísmo, ser viciado em tóxicos:

"De volta à França, Pouvourville [Matgioi] continua a partilhar e a atiçar os sentimentos anti religiosos e anti clericais dos ocultistas de seu tempo. Sob o pseudônimo de Mogd, ele colabora inicialmente na revista martinista de Papus,

L’ Initiation, na qual ele toma a liberdade de louvar os méritos do ópio do qual ele se mostrará guloso durante toda a sua vida, depois, na revista La Haute Science, consagrada "à Tradição esotérica e ao simbolismo religioso" (Marie-France James, Ésoterisme et Christianisme autour de René Guénon, Nouvelles Éditions Latines, Paris, 1981, pp. 77-78. O negrito é meu).

E cito esse livro - historicamente o mais documentado dos vários que possuo sobre René Guénon - de primeira mão...

Guénon iniciado no Taoísmo por Matgioi, deve ter ouvido seu iniciador louvar as "virtudes" do ópio...

Depois, Guénon se tornou Bispo da Igreja Gnóstica e, em 1912, Guénon foi iniciado no sufismo pelo Sheik Abder Rahman Elish El-Kébir, e assumiu secretamente o nome de Abdel Wahed Yahia. E tornando-se sufi --e Guénon foi chamado "o sufi" - ele ficava acima da lei exotérica, da shari’ a.

"Portanto, Guénon tinha sido gnóstico e maçon. Mas ele o era ainda?. Em 1962, Noële Maurice Denis --[que fora muito amiga de Guénon, por quem manteve sua simpatia] - terá esta reflexão curiosa em uma tomista, mas reveladora de suas preocupações metafísicas: ‘Para nós católicos, naturalmente é o aspeto maçon aquele que mais nos inquietava’. Se bem que Guénon confesse agora um soberano desprezo pelos meios gnósticos [Note, meu caro Felipe, que Guénon dizia desprezar os meios gnósticos, não a Gnose] e maçônicos e que agora ele jure somente pela metafísica hindu, ela [Noële] reconhece que é difícil saber em que medida ele evoluiu. Pelo menos, ele não pratica mais "o uso do ópio e do haxixe como ajuda para a ‘contemplação", e parece, que desde seu casamento, como "um jovem burguês unicamente apaixonado pela verdade, e pelo intelectualismo", separado de todo anti clericalismo e reconciliado em parte com um certo espírito religioso. Não é preciso dizer que Noële Maurice-Denis e Pierre Germain ignoram então tudo de sua confirmação [de Guénon] maçônica na Grande Loja de França, e, sobretudo, sobre sua iniciação no sufismo desde 1912"(Marie-France James, op. cit. pp. 165-166.O negrito é meu).

Está aí: a informação, não a acusação, de que Guénon foi viciado em ópio e no haxixe - pelo menos até o seu casamento - foi dada por uma amiga dele, que manteve uma visão ingenuamente otimista sobre o comportamento de Guénon, que dela ocultava seu maçonismo e seu sufismo, como também de sua própria esposa. É claro que, se Guénon fingia ter deixado de ser maçon e ter desprezo pelos meios gnósticos, quando aderira à Gnose sufi, seria legítimo perguntar se ele deixara, realmente, o uso do ópio e do haxixe, usado freqüentemente pelos sufis.

Se insisti na dupla moral dos esotéricos do Islam, foi porque é esse o esoterismo que Guénon defende, e que Olavo repete.

De fato, vimos como Guénon faz a defesa de uma dupla moral: uma, para os homens comuns, vivendo em sociedade; outra para os que atingiram a "realização metafísica", unindo-se à Divindade, como, por exemplo, para os que atingiram realmente o estado de sufi.

Em carta anterior, mostrei como Olavo de Carvalho desconsidera a moral, a virtude e a santidade, em prol de uma "sabedoria esotérica que é a gnose. Para facilidade de documentação e de compreensão, repito, aqui, algumas das citações já feitas nessa carta anterior.

Para começar, recordo que ele escreveu: "Para o sábio, ou gnóstico, conhecer é ser, e vice-versa"(Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 26).Portanto, se para Olavo, sábio é o mesmo que gnóstico, então Sabedoria se identifica com Gnose.

E Olavo afirma ainda que o que ele chama de Sabedoria está acima de todas as crenças, e por trás de todas as religiões. A Sabedoria seria o núcleo interior mais profundo e mais elevado de todas as religiões. E vimos que esse núcleo, para os tradicionalistas guénonianos é a Gnose. Veja que Olavo disse exatamente isso:

"A sabedoria é eterna e o amor à sabedoria é premiado, independentemente de você ser cristão, muçulmano, judeu, ateu. Se você ama isso, não digo que você está salvo, que você vai para o paraíso. Pelo menos um lugarzinho no purgatório você garante. Isso é o mínimo, tem de ser."(Olavo de Carvalho, Aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, Junho de 1998, Bloco 8, p. 26).

Portanto, sabedoria seria independente das crenças e da fé que a pessoa tem.

Para Olavo, a salvação advém não da prática da lei de Deus, mas de uma devoção puramente intelectual, e não prática:

"...a índole geral do meu pensamento filosófico, se inclui uma descrição apocalíptica do estado de coisas no mundo, por outro lado enfatiza fortemente o poder cognitivo da inteligência humana, a primazia da verdade e do bem, o poder de salvação inerente à devoção intelectual, etc. - e tudo isto infunde no aluno uma noção "otimista" do sentido da vida, de modo que ele pode chegar a esperar que sua vida pessoal já esteja dotada de sentido pelo simples fato de ele ter apreendido algo do sentido da vida em geral."(Olavo de Carvalho, "Considerações sobre o Seminário de Filosofia", 01.01.2000, negrito nosso)

Ter essa sabedoria é que vale. "A virtude, por si, não quer dizer nada"(Olavo de Carvalho, idem p. 26).

"Chegamos à suprema perversão de achar que o próprio desejo da sabedoria é uma coisa menos importante do que cumprir aquelas regrazinhas que o padre ensinou. Isso é uma blasfêmia, é um pecado contra o Espírito Santo" (Olavo de Carvalho, idem p. 26).

Como se vê, Olavo considera os dez mandamentos "aquelas regrazinhas que o Padre ensinou". E ele julga que é possível ter sabedoria sem obedecer as dez regrazinhas ditadas por Deus a Moisés.

Ora, isso é um absurdo. Só se pode ter realmente sabedoria na obediência à lei.

Prova do desprezo de Olavo aos dez mandamentos se tem nestas afirmações do sr. Olavo de Carvalho - (que só publicamos por necessidade de comprovação, pedindo desculpa, pela grosseria delas) - :

"As pessoa imaginam às vezes que o diabo só faz você comer a mulher do próximo. Isso aí é o de menos, você pode comer a mulher de vários próximos e ainda assim ir para o céu" (Olavo de Carvalho, Aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, Junho de 1998, Bloco 8, p.20)

Se isso não é relativismo moral e revolta contra a lei de Deus, o que será revolta e o que será relativismo?

Olavo defendeu expressamente o relativismo moral:

"Com a psicanálise e suas teorias sobre repressão dos instintos, mas sobretudo com a antropologia moderna, que difundiu no mundo todo a idéia de que as leis morais, variando de cultura para cultura, eram apenas a expressão de necessidades sociais passageiras, a pretensão cristã de uma moral universal e absoluta foi abalada. Qualquer garoto de escola repete, hoje, que a moral é relativa, que resulta de uma convenção social e que portanto pode ser modificada à vontade." (Olavo de Carvalho, A Crise do Catolicismo, artigo in Planeta, no110, novembro de 1981p. 23. O negrito é meu).

Sem dúvida, com a defesa de um relativismo moral tão radical, Olavo tem muita razão em se afirmar "um anarquista em moral".

E como podem certos católicos vê-lo com simpatia? Será que basta ele atacar o comunismo de Frei Boff, para aceitar alguém que se proclama "tradicionalista", não importando que defenda a moral relativista de Frei Boff e da Gnose?

Veja ainda, caro Felipe, como ele coloca a "Sabedoria" acima da moral, sem esquecermos, porém, que "Sabedoria", para ele significa Gnose.

"A sabedoria é necessidade básica do homem. E a santidade? A santidade vem depois, é perfeição, é para alguns. Uns conseguem, outros não, para isso mesmo é que existe o perdão, a misericórdia"(Olavo de Carvalho, Aula citada p. 21)

É impossível ter sabedoria sem ter santidade de vida. Por isso Cristo nos mandou ser santos, ser perfeitos como o Pai do Céu é perfeito (cfr. Mt V,48). E a Virgem Maria, no "Magnificat", cantou que "a misericórdia de Deus se estende de geração em geração sobre aqueles que O temem " (Luc. I, 50), e não para os que O desafiam, violando sua lei.

Mas veja o que ensina Olavo, com pretensão de dizer coisa ortodoxa, por utilizar algumas palavras relacionadas com a doutrina Católica:

"Segundo a Igreja, o Espírito Santo tem duas ações: uma sobrenatural, que é dar, por exemplo, uma revelação pessoal, ou dar a sabedoria infusa, outra, natural, que é a de manter o homem capaz de compreender os primeiros princípios, como o princípio de identidade. Hoje isso começa a falhar de uma maneira assombrosa. Não é a assistência sobrenatural, é a natural, a natureza foi atingida e quando se diz no Apocalípse que as próprias águas da vida seriam corrompidas, é a isso que se está referindo. É esse fundo de alma, que é simplesmente a pureza natural que é corrompida já não se consegue entender mais que dois mais dois são quatro, que a galinha bota ovo. A partir daí a linguagem vira um caos, como você vai sair dessa rezando, confessando, comungando? Não vai conseguir, não há um jeito ritual de fazer isso, não se pode sair disso por nenhuma prática repetitiva e regularmente. Tem de sair por uma nova aposta no próprio Espírito Santo. Tem de ser protestante, tem de fazer como o bispo Macedo, tem de arriscar. O Espírito Santo vai me iluminar nesta coisa, eu vou entender este negócio. É o único jeito! Agora dizer: não, primeiro, antes disso, tenho de me livrar de todos os meus pecados, vou virar santinho, e depois de virar santinho, daí Ele vai iluminar-me. Pode tirar o cavalo da chuva: Ele vai iluminar você agora mesmo, com todos os seus pecados, com toda a sua malícia, com tudo isso, porque se Ele não fizer isso, você está ferrado". (Olavo de Carvalho, aula citada p. 21).

A Igreja nunca ensinou que o Espírito Santo dá uma revelação pessoal, nem muito menos que Ele tem uma ação natural. São absurdos teológicos. Não se sabe o que mais espanta nesse charabiá teológico - exegético - místico - moral, se a confusão doutrinária, se o relativismo moral, se a presunção de salvação, se a ignorância doutrinária. É um "caruru" que mistura tudo, sem compreender nada dos termos que está usando e misturando.

O resultado é o cáos doutrinário e o abuso da misericórdia de Deus, com uma aceitação do pecado, sem reação contra ele. E que culmina com o ‘conselho" de ficar protestante, de não confessar, de aceitar os pecados, confiando que o Espírito Santo vai dar uma iluminação, uma herética "revelação pessoal".

É claro que isso só pode ser defendido por um esotérico com pretensões a teólogo de barbearia, para pessoas que não têm a mínima noção de catecismo, da Moral e da doutrina católicas.

Aliás, eu gostaria de saber em que Apocalípse está o versículo que diz que até as águas vivas seriam corrompidas". Porque, com essas palavras, não encontrei versículo nenhum no Apocalípse de São João. Devem estar, então, em algum Apocalípse esotérico. O Apocalípse segundo Olavo.

Permita-me uma digressão, para descansar de tema tão enfadonho.

Você deve ter notado como Olavo "chuta" citações. Já encontrei um texto no qual ele diz que o Padre Pio de Pietralcina vivia na Espanha. (cfr. Olavo de Carvalho, O Crime de Madre Agnes, Speculum, São Paulo, 1983, p. 13). Ora, Padre Pio era italiano, e não viveu na Espanha.

Contaram-me que Olavo costuma citar um verso da Divina Comédia no qual o Diabo teria dito a Dante: "Forse tu non pensavi ch’io loico fossi!".

Era um erro crasso de Olavo, do qual eu não tinha prova.

Noutro dia, você, gentilmente, me trouxe a prova desse erro de Olavo. Num prefácio a um livro de Constantin Noica, Olavo discorre com a segurança de um especialista sobre a Divina Comédia, dizendo que, no Inferno, Dante não ouve os condenados falarem em língua humana: "Entre os condenados, com efeito não ouve Dante conversações em língua de gente, mas tão somente orribile favelle (sic), gritos e gemidos animalescos que expressam sem nomear, que quanto mais ressoam, menos dizem impotentes para, objetivando a dor, transfigurá-la em consciência, prenúncio de liberdade" (in Constantin Noica As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo", Record, Rio de Janeiro - São Paulo, 1999. Introdução de Olavo de Carvalho, p. 16).

Na mesma página, Olavo sustenta que o demônio disse ao próprio Dante - o visitante florentino do Inferno --, o decassílabo que citei acima:

"Forse non pensavi ch’io loico fossi!", exclama o demônio ao perplexo visitante florentino: "Não imaginavas que eu também fosse lógico! " (cfr. op. cit., p. 16-17. O negrito é meu).

Ora, quem lê esse texto de Olavo, discorrendo ele com tanta segurança sobre a Divina Comédia, como se fosse um grande conhecedor da obra dantesca, nem desconfia que, na verdade, ele está simplesmente "chutando". Ouviu e decorou o verso, - mas muito provavelmente não leu o Canto do Inferno em que ele está - e o comenta como se o tivesse lido. Para demonstrar erudição...

Com efeito, o verso citado está no Inferno, XXVII, 122-123. Só que não foi a Dante que isso foi dito. Foi a Güido de Montefeltro.

Nesse episódio, Güido de Montefeltro conta a Dante como, após sua morte, São Francisco quis levar sua alma ao céu (porque ele era franciscano),mas um diabo --"un de’ neri cherubini"-- não lhe permitiu isso, levando a alma de Güido ao inferno, por ele ter dado mau conselho ao Papa Bonifácio VIII.

Como é também completamente falso também que, no Inferno, Dante ouvisse apenas "orribili favelle", e não linguagem humana. Muitos condenados falam com Dante, e lhe contam a causa pela qual foram condenados.

Eles até mesmo conversam com Dante em italiano da Toscana, porque ouvem o poeta passar "parlando onesto", isto é, em dialeto toscano, como, por exemplo, acontece no caso de Farinata degli Uberti (Inferno, X, 22, e ss.).

E está errada também a expressão "orribile favelle", como foi escrita por Olavo: "orribili favelle" é que seria correto, pois "favelle" está no plural, exigindo o adjetivo também no plural.

Prossigamos.

Olavo manifesta um desprezo pretensiosamente absurdo e caricato pelo maior Doutor da Igreja sobre Moral, Santo Afonso de Ligório, ao escrever:

"Santo Afonso de Ligório platonizou a moral cristã, transformando-a num sistema dedutivo, axiomático, fazendo um mal desgraçado" (Olavo de Carvalho, Crítica e Conselhos a Igreja Católica, in aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, Junho de 1998, Bloco 8, p. 19).

Será que Olavo leu mesmo algum livro de Santo Afonso, o maior Doutor da Igreja em Moral?

Tendo em vista como ele "leu" Dante, duvido que ele, seriamente, tenha lido algo de Santo Afonso.

Olavo não quer saber da moral católica como ela é, com tantas exigências. Especialmente em matéria de castidade. Pois declara:

"...há catolicismo, sim, no Brasil, mas reduzido às suas manifestações mais externas e menos espirituais: o moralismo sexual enervante, ostensivamente violado e sempre objeto de chacota (erigida mesmo em gênero literário)..." (Olavo de Carvalho, O Futuro do Pensamento Brasileiro, 2a. edição, Faculdade da Cidade Editora, p. 54. O itálico é meu.).

Criticando o "moralismo sexual enervante", Olavo segue seu mestre Nasr, para quem o ato sexual reconduz ao êxtase paradisíaco, recompondo o anthropos andrógino primordial:

"O macho e a fêmea em sua complementaridade recriam a unidade do ser andrógino e, de fato, sua união sexual é um reflexo terrestre deste êxtase paradisíaco que pertencia ao anthropos andrógino"(Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, State University of New York Press, 1989, p. 177)

E mais:

"Não é sem razão que a sexualidade é o único meio aberto para os seres humanos, não prendados com o dom da visão espiritual, para experimentar "o Infinito" através dos sentidos. Embora por alguns fugidios momentos, e que a sexualidade deixa uma tão profunda marca na alma do homem e da mulher e os afeta em um modo muito mais duradouro que quaisquer outros atos físicos" (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, State University of New York Press, 1989, p. 178)

Ainda recentemente, Olavo publicou um artigo, no qual afirma:

"Na religião islâmica, há uma série de práticas interiores das ordens místicas, que têm pouco a ver com as obrigações legais e rituais da religião coletiva, mais se destinam a utilizar a substância das paixões mais inferiores, mais violentas, como matéria-prima que, queimada no forno, no altar da prática mística, se converterá em virtude, em conhecimento espiritual, naquele sentido em que é possível dizer, com Sto. Agostinho, que as virtudes são feitas da mesma matéria dos vícios: partindo dos vícios, tomando-se como matéria-prima e queimando-os no forno da meditação e da concentração, o pecado se substitui pela graça."(Olavo de Carvalho, René Girard e a Coletividade Homicida, Transcrição de intervenção na mesa redonda em torno do pensamento de René Girard, realizada no anfiteatro da Universidade (Rio de Janeiro, 17- XI- 2.000, publicado em http//www.olavodecarvalho.org/textos/girad.htm. O negrito é meu)

Certamente você percebeu como Olavo coloca as paixões mais violentas, o vício, o pecado, como fonte de conhecimento espiritual, isto é, de Gnose.

Nesse texto de Olavo, fica patente, ainda, - apesar de uma vaga citação de Santo Agostinho, que não se sabe de onde foi extraída --, que ele acha possível a transmutação alquímica da matéria prima das paixões mais baixas em virtude, justificando o antinomismo, num misterioso "forno" místico-dialético.

O antinomismo pode ser definido como o anarquismo na moral, pois que não aceita que uma lei seja imposta aos homens, já que eles seriam, no fundo, partículas da Divindade aprisionadas na matéria pelo Demiurgo mau.

Ora, Olavo de Carvalho - e já citamos essa palavra dele em carta precedente - se afirma anarquista em moral:

"Em moral sou anarquista. Acredito que há princípios morais universais, permanentes, que a inteligência discerne por baixo da variação acidental das normas e costumes, e acredito, enfim, que há o certo e o errado. Mas por isso mesmo, impor o certo é errado, a não ser em caso de vida ou morte. O sujeito que faz o certo só por obediência e sem compreendê-lo acaba por transformar no errado. "Experimentai de tudo e ficai com o que é bom" recomendava S. Paulo Apóstolo, meu amado guru (sic???). É uma questão de viver e aprender. Mas como podemos aprender, se um tirano paternalista nos proíbe de errar? Por isto deve haver a mais ampla liberdade de escolha e de conduta, e a autoridade religiosa deve se limitar a ensinar o certo, com toda a paciência, sem tentar expulsar o pecado do mundo à força. E se nem os religiosos, que por sua dedicação à vida interior têm autoridade para falar dessas coisas, devem impor regras morais à força, muito menos deve fazê-lo o Estado, que afinal não passa de uma gerência administrativa, a coisa mais mundana e prosaica que existe. As leis devem fundar-se apenas em considerações práticas de ordem, segurança e interesse coletivo, muito corriqueiras, e jamais em motivos pretensamente elevados de ética, que terminam por fazer da burocracia estatal um novo clero, e do Código penal um novo Decálogo. A coisa mais nojenta que existe é a metafísica estatal." (Olavo de Carvalho, Fórmula de Minha Composição Ideológica, entrevista, 23- XII - 1998, Fórmula da minha composição ideológica.htm Página da W. O negrito é meu).

Como sempre, Olavo faz uma declaração escandalosa que, depois, ele procura atenuar com apostos escorregadios. Escandalosa é sua referência a São Paulo, como seu "querido guru".

Ora, São Paulo, como não podia deixar de ser, afirma uma doutrina oposta à de Olavo em matéria de moral e do direito do Estado de impor obrigações morais, fundadas na lei natural. O Estado legítimo, conforme ensina o Apóstolo, existe, não como mera "gerência administrativa", como diz Olavo, pois escreveu São Paulo:

"Toda a alma esteja sujeita aos poderes superiores, porque não há poder que não venha de Deus e os que existem foram instituídos por Deus. Aquele, pois, que resiste à autoridade, resiste à ordenação de Deus. E os que resistem, atraem sobre si próprios a condenação. Com efeito, os príncipes não são para temer pelas ações boas, mas pelas más. Queres, pois, não temer a autoridade? Faz o bem, e terás o louvor dela, porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é debalde que ela traz a espada. Porquanto ela é ministro de Deus vingador, para punir aquele que faz o mal" (São Paulo, Epístola aos Romanos, XIII, 1- 5).

Quando Pilatos disse a Cristo que tinha poder para perdoá-Lo ou para condená-Lo, Cristo não contestou a autoridade do Estado, mas declarou:

"Tu não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado pelo alto"(Jo. XIX, 11).

Portanto, Cristo afirma que o poder do Estado vem de Deus e que esse poder inclui o direito de condenar à morte.

Fica então provado que, de fato, Olavo defende, como o fazem certas seitas gnósticas, o antinomismo, que ele chama de anarquismo moral.

 

VIII - 4. O 3o Ponto Secundário da Doutrina Gnóstica, segundo Olavo de Carvalho: o Milenarismo.

O Milenarismo de Guénon

"Estamos em Kali yuga, na idade sombria na qual a espiritualidade está reduzida ao mínimo, pelas próprias leis do desenvolvimento do ciclo humano, dispondo uma espécie de materialização progressiva através de seus diversos períodos, dos quais este é o último; por ciclo humano, entendemos aqui unicamente a duração de um Manvantara. Indo ao fim desta idade, tudo está confundido, as castas estão misturadas, a própria família já não existe; não é isso exatamente o que vemos ao redor de nós? Há que concluir disto que o ciclo atual chega efetivamente a seu fim, e que logo veremos apontar a aurora de um novo Manvantara? Poder-se-ia ser tentado de acreditá-lo, sobretudo se se pensa na velocidade crescente com a qual os acontecimentos se precipitam; porém, quem sabe a desordem não tenha alcançado seu ponto mais extremo, quem sabe a humanidade deve descer ainda mais baixo, nos excessos de uma civilização totalmente material, antes de poder subir de novo até o princípio e até as realidades espirituais e divinas. Pouco importa por outro lado: quer seja um tanto mais cedo, ou um tanto mais tarde, esse desenvolvimento descendente que os ocidentais modernos chamam "progresso" encontrará seu limite, e então a "idade escura" [Kali yuga] terá seu fim; então aparecerá o Kalkin-avatara, aquele que está montado sobre o cavalo branco, que carrega sobre sua cabeça um tríplice diadema, símbolo da soberania nos três mundos, e que ostenta em sua mão uma espada flamejante como a estrela de um cometa; então o mundo da desordem e do erro será destruído, e, pela potência purificadora e regeneradora de Agni, todas as coisas serão restabelecidas e restauradas na integridade de seu estado primordial, o fim do ciclo presente, sendo ao mesmo tempo o começo do ciclo futuro. Os que sabem que deve ser assim não podem, inclusive em meio à maior confusão, perder sua imutável serenidade; por repugnante que seja viver em uma época de transtornos e de obscuridade quase geral, eles não podem ser afetados no fundo de si mesmos, e isto é o que faz a força da elite verdadeira. Sem dúvida, se a obscuridade deve ir estendendo-se cada vez mais, essa elite poderá, inclusive no Oriente, ficar reduzida a um número muito pequeno; porém basta que alguns guardem integralmente o verdadeiro conhecimento, para estar prontos, quando os tempos estejam cumpridos, para salvar tudo o que ainda poderá ser salvo do mundo atual, e se tornará o germe do mundo futuro" (René Guénon, O Espírito da Índia (1), publicado em "Le Monde Nouveau", junho de 1930, e, depois em "Études Traditionnelles", 1937, cap. II de "Études sur L’Induisme", Paris, Ed. Trad. 1968, pp. 21-22).

Como se vê claramente por esse longo texto, Guénon esperava que, depois de uma crise terrível, viria uma nova época - um novo Manvantara - no qual seria restabelecida a ordem primordial. Haveria um período de felicidade.

Também no livro O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, René Guénon defende essa concepção milenarista:

"Tudo o que descrevemos durante este estudo constitui, de modo geral, aquilo a que podemos chamar os "sinais dos tempos", segundo a expressão dos evangelhos, isto é, os sinais precursores do "fim do mundo" ou de um ciclo, que só aparece como "fim do mundo", sem restrições nem especificações de qualquer espécie, para aqueles que não vêem nada para além dos limites deste ciclo, (...)"

(René Guénon, O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, Dom Quixote, Lisboa, 1989, p. 257).

E pouco depois, nesse mesmo livro, Guénon adverte que este final de ciclo "é o final de um Manvantara completo, isto é, da existência temporal daquilo a que chamamos mais propriamente uma humanidade, o que, mais uma vez, não quer de modo nenhum dizer que seja o fim do mundo terrestre em si, já que, pela "recuperação que se opera no momento último, esse mesmo fim torna-se imediatamente o começo de outro Manvantara"(R. Guénon, op. cit., p. 257. O negrito é meu).

Guénon distingue o sonho evolucionista do racionalismo progressista de uma época perfeita no futuro - a utopia, embora ele não utilize esse termo - da recuperação de uma época de perfeição absoluta que existiu no passado _- o milênio, a Idade de Ouro, o Éden da primitiva felicidade.

Guénon não faz a distinção entre milênio e utopia, mas diz:

"A esse propósito, há ainda um ponto sobre o qual temos de nos explicar de modo mais preciso: os partidários do "progresso" têm o hábito de dizer que a "idade de ouro" não está no passado, mas no futuro; a verdade, bem pelo contrário, no que diz respeito ao nosso Manvantara é que ela é realmente do passado, visto que não é outra coisa senão o próprio "estado primordial" (René Guénon, O Reino da Quantidade, pp. 257-258).

Dizendo isso, Guénon se filia claramente à Gnose romântica e a seu milenarismo, esperando uma volta à "Idade de Ouro".

Essa expectativa em nada difere dos sonhos milenaristas de Joaquim de Fiore, dos sonhos do Reino de Deus dos Espirituais Franciscanos no século XIV. É exatamente o velho milenarismo de retorno à felicidade primordial defendido pelos escritores românticos e por Anna Katharina Emmerick, que Guénon apresenta, nesses parágrafos, em roupagem hindu. É um milenarismo de sari e de turbante, mas é milenarismo mesmo.

Outra mostra da tendência milenarista de Guénon se tem ao constatar sua ausência de crítica - e mesmo simpatia - pela revolução Tai Ping Tien Guo (Reino Celeste da Grande Paz), por ver nela uma ressonância da ação secreta do Taoismo.

Os Tai Ping foram revolucionários que, na China imperial do século XIX, procuraram estabelecer um Reino messíânico, igualitário e comunista.

O primeiro líder da revolução Tai Ping, Hong Xiuquan, foi influenciado por folhetos de propaganda protestante. Proclamou-se o "irmão mais jovem de Jesus Cristo", e levou os camponeses do grupo marginalizado Hakka a tomarem armas, e a procurarem estabelecer a igualdade à força.

Os Tai Ping tomaram Nankin, da qual fizeram a sua capital, e estabeleceram um reinado de terror. Instituíram uma reforma agrária radical, delirantemente sonhadora, que encantaria Frei Boff, e contra a qual Guénon não fez a menor crítica.

Assim proclamava a lei agrária dos Tai ping:

"A distribuição da terra é feita em conformidade com o tamanho da família, sem consideração de sexo, só levando em conta o número de pessoas: maior número, mais terras receberão(...) Todas as terras sob o Céu pertencem a todos os homens sob o céu. Se a produção for insuficiente numa parte, em outra será abundante. Toda a terra sob o Céu deve ser acessível em tempo de abundância e de fome". "Se houver fome em uma zona, tragam o excesso de onde reina a abundância, a fim de alimentar o esfomeado. Dessa maneira, todos os homens sob o Céu usufruirão da grande felicidade dada pelo Pai Celestial, Senhor Supremo e Deus Augusto. A terra será possuída por todos. o arroz comido por todos, as roupas vestidas a todos, o dinheiro será gasto por todos. Não haverá desigualdade e ninguém ficará sem alimento".(...)"Por todo o Império serão plantadas amoreiras ao pé dos muros. Todas as mulheres cultivarão bichos da seda, fiarão panos e costurarão roupas. No Império, cada família, sem exceção, possuirá cinco galinhas e dois porcos (...) A mesma regra aplicar-se-á ao trigo, ao feijão, ao linho, aos tecidos, à seda, aos pintos, aos cães, etc. Do mesmo modo em relação ao dinheiro. Pois tudo na terra pertence à grande família do Pai Celestial, Senhor Supremo e Deus Augusto. Ninguém no Império possuirá propriedade privada, tudo pertence a Deus, para que Deus de tudo possa dispor. Na grande família do Céu, todos os lugares são iguais e cada um vive na abundância. Tal é o edito do Pai Celestial, Senhor Supremo e Deus Augusto, que especialmente ordenou ao Verdadeiro Senhor dos Tai Ping que salvasse o mundo" (Lei Agrária dos Tai Ping, apud Jean Chesneaux, A Ásia Oriental nos Séculos XIX e XX, Ed. Pioneira, São Paulo, 1976p. 55-56).

Até parece que a Pastoral da Terra da CNBB passou por lá, pois o MST dos Stediles e Rainhas, atiçado pelos Bispos progressistas, não prega diferentemente.

Talvez seja conveniente informar também que a Reforma Agrária dos Tai Ping - precursora daquela que é preconizada pela ala "Tai Ping" da CNBB --, como não poderia deixar de ser, teve um resultado trágico; 30.000.000 de mortos, segundo informa o Chinese Cultural Studies, (Concise Political History of China, compeled from Compton’s Luring Encyclopedia, on American on line(August 1995).

E como os Tai Ping foram, segundo Guénon, manejados por trás pelas sociedades secretas "tradicionais" taoístas, ele não recrimina os horrores praticados por eles, pois sobre tudo isso diz apenas o seguinte:

"Não queremos, certamente, dizer que todos os membros dessas organizações relativamente exteriores devam ter consciência da unidade fundamental de todas as tradições; mas os que estão por trás dessas organizações e as inspiram possuem forçosamente, na qualidade de "homens verdadeiros" (Tchenn-jen), essa consciência, e é isso que lhes permite introduzir nelas, quando as circunstâncias o tornam oportuno ou vantajoso, elementos formais pertencentes de modo exclusivo a diferentes tradições" (René Guénon, A Grande Tríade, Ed Pensamento, São Paulo, 1957, p.9).

Depois desse texto obscuro, Guénon coloca a seguinte nota 9:

"9. "Inclusive, às vezes, até as que são mais completamente estranhas ao Extremo Oriente, como o Cristianismo, como se pode ver no caso da Associação da "Grande Paz" ou "Tai-ping", que foi uma das emanações recentes da Pe-lien-houei, que vamos mencionar mais adiante" (R. Guénon, idem p. 9, nota 9).

E só. Nenhuma crítica. Só porque os Tai Ping tentaram estabelecer um Reino milenarista por influência do protestantismo e dos manejos do Taoísmo "tradicionalista". Para Guénon, as 30.000.000 de vítimas dos "tradicionalistas", daqueles que ele chama "os homens verdadeiros" que se danassem! Vai ver que os 30 millhões de mortos não eram "homens verdadeiros".

Vimos que Guénon cooperou, por muito tempo, na revista "Il Regime Fascista".

Veja-se agora, a curiosa nota que ele insere num outro livro seu:

"A propósito da Tula atlântida, nós achamos interessante reproduzir aqui uma informação que nós destacamos numa crônica geográfica do Journal des Débats (22 de janeiro de 1929), sobre Os índios do ístmo do Panamá, e cuja importância certamente escapou ao próprio autor desse artigo: "Em 1925, uma grande parte dos Índios Cuna se rebelou, os índios mataram os soldados do Panamá que habitavam em seu território, e fundaram a República independente de Tulé, cuja bandeira é uma swastika sobre fundo alaranjado com borda vermelha. Esta república existe ainda na hora atual". Isto parece indicar que subsiste ainda, no que tange as tradições da América antiga, muito mais coisas que se seria tentado acreditar" (René Guénon, Formas Tradicionais e Ciclos Cósmicos, Gallimard, Paris, 1982, pp. 38-39, nota 1. Os itálicos são do autor).

Nesse texto de Guénon, queremos chamar a atenção sobre três pontos:

1) A simpatia com que ele fala da Swastika;

2) A simpatia com que ele fala de Tulé, lembrando que a Tule Geselschaft, foi uma das sociedades secretas que prepararam o triunfo do Nazismo, na Alemanha;

3) Que a Swastika e Tulé estão relacionados com o Agartha, misterioso centro secreto de onde os "Superiores Desconhecidos", de que falavam os martinistas - e nos quais Guénon acreditava de pés juntos-- dirigiriam o mundo magicamente. O Agartha, segundo Guénon e os esotéricos, seria o centro Iniciático de nosso universo. Um lugar oculto, no centro da Ásia "misteriosa", onde viveria o Rei do Mundo, que de seu esconderijo dirigiria magicamente os governantes de todo o mundo, por meio dos "Superiores Invisíveis". Esse delírio foi escrito no estapafúrdio livro de Guénon "O Rei do Mundo".

Acredite quem quiser.

Mas, vizinho do Agartha, deve morar Papai Noel. Cujo trenó deveria ser puxado, em vez de renas, pelos centauros do Mundo Imaginal de Olavo.

Acredite quem quiser...

Guénon acreditava.

Acreditava tanto no Agartha, quanto no Rei do Mundo, que lá morava.

Acreditava até que os Superiores Desconhecidos lhe falassem, e que eram entidades do mundo "imaginal". Era dessas "entidades" do outro mundo, que Guénon tomava os seus pseudônimos. Ele mesmo conta isto:

"Numa carta de 17 de junho de 1934, Guénon escreve a um seu correspondente - depois de ter feito, entre outras coisas, referência aos ensaios publicados em La Gnose e na La France Antimaçonique --"Toda vez que me servi de outras assinaturas, houve razões particulares para isso, as quais não devem ser referidas a R.G., pois que estas assinaturas não são simplesmente "pseudônimos" ao modo "literário", mas representam, se assim se pode dizer, "entidades" realmente distintas" (Cfr. Jean Robin, René Guénon, Ed. Il Cinabro, p. 325. O negrito é meu).

Então, como Fernando Pessoa, Guénon assumia "entidades". Coisa comum na Bahia.

E Robin explica que essas entidades seriam Tulkous. Segundo os tibetanos, o tlkoul "é ou a reencarnação de um santo, ou de um sábio falecido, ou ainda a reencarnação de um outro ser não humano: deus, demônio etc."(Jean Robin op. cit., p. 325-326).

Então, Guénon acreditava que era instruído por um ou vários tulkous... Que existiriam no mundo astral ou imaginal. E que poderiam ser espíritos de sábios ou santos falecidos, deuses ou demônios...

Advinha, você, Felipe, quem acho eu que baixava em Guénon para ensiná-lo, dizendo-se um tulkoul "Superior Desconhecido"? Creio que não é difícil de advinhar...ë alguém bem conhecido. Principalmente, sabendo-se que esse tulkoul era subordinado ao "Rei do Mundo"...

E Olavo? Em que acredita?

Olavo acredita no que Guénon acredita.

Portanto para Olavo existe mesmo esse "Centro Iniciático" mundial.

Olavo, que acredita em centauros, djins, e nos monstros do Zodíaco, porque não acreditaria na existência desse "Centro" geográfico terrestre do esoterismo tradicional?

Olavo acredita. Julga-se um homem de fé.

E você, Felipe, não acredita que Olavo acredite no que Guénon acredita?

Que falta de "fé"!

Pois leia, você mesmo, a prova de que Olavo acredita no "Centro" iniciático, de onde os "Superiores Desconhecidos" dirigem a política mundial:

"Existe uma Tradição Primordial, universal e eterna, que é o depósito da sabedoria revelada. Existe a manifestação humana e terrestre dessa Tradição, e portanto uma organização tradicional que a representa. Existe um centro geográfico que é a localização dessa organização em algum ponto da Terra, em cada ciclo temporal. Tudo isso é inquestionável" (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, ed. Nova Stella, Coleção Eixo, [La bien nommée] São Paulo, 1986, p. 13).

Então, Olavo crê:

1) Que existe uma organização encarregada de guardar a Tradição Primordial revelada e eterna.

Como se chama essa organização? Nem Guénon diz seu nome. Portanto, Olavo não sabe o nome dela.

2) Essa organização estaria sediada em um misterioso ponto da Terra, que alguns esotéricos - inclusive os nazistas - chamam de Agartha

3) Olavo não diz nada do Rei do Mundo que moraria lá, no Agartha, no centro da Ásia, talvez numa gruta, no Himalaia. Guénon fala desse Rei. Até escreveu um livro - um delírio - sobre isso. Mas escreveu. Escreveu e publicou. E se Guénon escreveu, Olavo leu e acreditou, ainda que não diga uma palavra sobre o tal Rei do Mundo.

E Olavo critica Santo Afonso!

E Olavo, defende ele algo parecido com o milenarismo de Guénon?

Tudo o que diz Olavo de mais "original", pode ser encontrado nos seus mestres tradicionalistas. Se Guénon disse que esperava uma crise universal no final do Kali yuga, à qual se seguiria um novo Manvantara, causador do retorno à ordem primeva, pode-se contar que Olavo vai defender a mesma coisa, em algum de seus livros esotéricos.

Olavo afirma a doutrina dos ciclos cósmicos ensinada por Guénon, e diz que estamos no final de uma era. Os indícios deste fim de era são descritos nos livros hinduístas, e Olavo acredita que eles se assemelham ao que profetiza o Apocalípse (!!!).

Imagine!

Olavo - parecendo certos crentes de seitas malucas que aguardam o fim do mundo para depois de amanhã - chega a dar os sinais da crise tremenda do fim do período em que vivemos e que precederá a renovação do mundo. Ele diz que tirou esses sinais premonitórios do livro Hindu chamado Baghavata Purana - Eta nome feio! - Livro XII, S1, 24 a 44.

Veja lá que "precisão" profética a do Baghavad Purana apud Olavo de Carvalho:

"Durante esse período, os homens têm a inteligência curta e poucos recursos. [De fato, vendo a TV, parece hoje...]. Eles são glutões, libidinosos, indigentes. As mulheres são libertinas e más."

"Os campos são devastados pelos assaltantes. os livros sacros são profanados pelos heréticos". [Parece São Paulo, do MST e de certos clérigos, seus protetores...].

‘As mulheres são de talhe exíguo, mas vorazes, de uma fecundidade excessiva, [Não é hoje...], sem pudor, tagarelando sem parar [Isto, dirão más línguas tagarelas, sempre foi assim. E alguns temem que será assim até no reino milenarista predito por Guénon, no pós Kali yuga], ladras, turvas e de um grande descaramento".

"O comércio estará nas mãos de gente miserável, de mentirosos convictos. Mesmo não sendo em caso de necessidade, as ocupações ilícitas serão consideradas lícitas". [É hoje! Sem dúvida!]

"Os homens abandonarão os pais, irmãos, amigos e parentes, serão dados à luxúria e às afeições ilícitas.

"Os Shudras (homens grosseiros e materialistas) disfarçados em ascetas, viverão deste disfarce, captando oferendas"

"Os homens terão a alma sempre perturbada: estarão atormentados pela escassez e pelo fisco’ [É o Brasil atucanado! Sem sombra de dúvida! E no escuro do "Apagão"]

"A riqueza substituirá vantajosamente a nobreza de origem, a virtude, o mérito.

"No casamento, os homens só buscarão o prazer, e, nos negócios, o lucro fácil"

"O objetivo de todos será encher a barriga. A insolência passará por sinceridade’

"A lei dos heréticos prevalecerá. Todas as castas serão parecidas com a dos Shudras"

(Apud Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, Nova Stella, São Paulo, 1986, pp. 52-53).

São "profecias" que não significam nada, porque são aplicáveis a qualquer tempo. Parecem ter sido feitas por alguém que sofria do fígado, ao despertar, numa chuvosa segunda feira.

Entretanto, elas indicam a mentalidade de um crente na expectativa da chegada do ‘Reino" do Messias. Só falta alugar um "out door" luminoso, na perfumada marginal do Tietê, anunciando: "O Kali yuga está no fim. Um Avatara vai chegar. Você, que está aí parado no trânsito engarrafado, não desespere. Vai começar um novo Manvantara. Aguarde. É para breve."

Com as garantias do Purana, de Guénon e de Olavo.

O Rei do Mundo vem aí.

Acredite se quiser.

Acha que exagero?

Pode ser, se se considera que nem um Avatara - que bicho será esse? - conseguirá solucionar o trânsito paulistano.

Mas veja o que escreveu Olavo:

"Face a isto é preciso dizer que em nosso tempo uma multiplicidade de ciclos cósmicos e históricos está chegando ao seu fim, prenunciando uma mudança de muito maiores proporções do que um simples arranhão na crosta das instituições do nosso moderno Ocidente industrial e materialista. De fato, coincidem por volta desta época o encerramento da Era de Pisces, o encerramento de um ciclo polar de 21.600 anos e o encerramento da Idade do Ferro [deve ter começado a Idade de Plástico...] (era de decadência iniciada aproximadamente em 4. 450 A C.) (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 51).

E prossegue, impertérrito, Olavo qual profeta anunciando a chegada do Avatara:

"Para que se compreenda bem o que isto quer dizer, é preciso saber que a doutrina hindu - como, aliás, todas as doutrinas tradicionais - encara o desenvolvimento temporal da espécie humana como um processo de queda progressiva, que de intervalo a intervalo é sustado por uma intervenção providencial dos céus, com o surgimento de um Avatara ou Profeta, que restaura até certo ponto as possibilidades espirituais anteriores, mas sem nunca poder elevar a humanidade ao nível pleno de perfeição espiritual de antes." (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, pp. 51-52).

Não disse?

Aí está Olavo, qual profeta tupiniquim, anunciando o advento do Avatara, o Restaurador, que chegará montado num cavalo branco, qual Dom Sebastião. E com uma coroa na cabeça, segundo Guénon, que se entendia de avataras e manvantaras. (Cada nome feio achanam esses hindus!).

Não há dúvida, então: Olavo adota uma teoria milenarista. E também nesse ponto secundário ele é gnóstico.

Aliás, ele foi do Partido Comunista que, como mostram vários autores, entre eles Eric Voegelin e Alain Besançon, é um "ersatz" da religião, prometendo um Reino messiânico na terra. E Olavo diz que, apesar de combater a burrice dos esquerdistas, ainda "compartilha de vários ideais da esquerda"...

Assim fica patente que Guénon e seu Olavo são milenaristas, em que pesem os ataques atuais de Olavo ao utopismo da esquerda, da qual, porém, ele confessa "compartilhar certos ideais".

E isso nos leva a um... interlúdio...político

 

VIII - 5 - Um interlúdio político: Quem não tem Cão, caça com Gato

Atribui-se a Lenin a frase: "O fruto natural do comunismo é o anti comunismo. Antes que os anti comunistas se organizem, organizemos nós mesmos o anti comunismo".

"Se non é vero, é bene trovatto", dizem os italianos.

Se a frase não é verdadeira, ainda que ela não tenha sido dita por Lenin, é exatamente isso o que se tem visto na História do século XX..

Mussolini sempre foi anarquista, e durante anos foi Diretor do jornal "socialista" "Avanti". De repente, se arrependeu, e se declarou anti-comunista. Tomou o poder, depois da heroicamente ridícula "Marcha sobre Roma", e fez um governo estatizante, isto é, socialista. Foi um tirano à la macarroni, e, depois de deposto e libertado pelos nazis, fundou uma republiqueta socialista até no nome: a Republica Socialista de Saló.

Hitler é tido como anti comunista, mas o Partido nazista se chamava Partido Nacional Socialista Operário Alemão. E primitivamente o nome desse Partido fora Partido dos Trabalhadores Alemães, e seu programa era socialista, exigindo a socialização da economia, a estatização dos bancos, a Reforma Agrária, a educação estatizada, etc. Parece até o programa do PT de Dom Arns e de Lula.

Um historiador insuspeito, François Furet, mostra que fascismo, nazismo e comunismo não eram incompatíveis, havendo estranhas e paradoxais similitudes entre eles:

"De resto, imitação e hostilidade não são incompatíveis: Mussolini copia Lenin, mas é para vencer e impedir o comunismo, em Itália. Hitler e Estaline irão oferecer vários exemplos de cumplicidade beligerante" (François Furet, Ernst Nolte, Fascismo e Comunismo, Gradiva, Lisboa, 1999, p. 14).

E Hobsbawn, outro historiador insuspeito afirma: "Nessa medida, os apologistas do fascismo provavelmente têm razão de sustentar que Lenin gerou Mussolini e Hitler"(Eric J. Hobsbawn, lL’Âge des Extrêmes, Histoire du Court XXème Siècle, Éd. Complexe,1994, p. 172).

De algum modo, pois, Lenin Gerou Hitler e Mussolini. O comunismo gerou, de algum modo, o chamado "anti-comunismo" socialista de direita.

Costumo dizer que fascismo e comunismo são gêmeos dialéticos siameses. É difícil distinguir um do outro. São gêmeos especulares. Ambos filhos da revolução Francesa e do liberalismo. O comunismo, pretendendo levar a igualdade liberal às ultimas conseqüências econômicas, pela abolição da propriedade privada. O nazismo e o fascismo, fazendo triunfar o nacionalismo da Revolução de 1789, de modo radical e completo.

Além disso, há a questão tática, para a qual a frase atribuída a Lenin, ou de Lenin, aponta: impossibilitado de triunfar diretamente, o comunismo procura vencer pela manobra pseudo direitista..

Comunismo esquerdista e fascismo pseudo direitista se assemelham as duas pontas de uma barkana (duna de areia no deserto).

A duna é impelida pelo vento em uma certa direção. Os grãos de areia alcançam o topo da duna, antes nas pontas - mais baixas - do que no centro, mais alto. Isto faz com que as pontas da duna avancem mais rapidamente, dando à duna um aspecto de meia lua, na qual as pontas ficam bem mais avançadas que o centro, mais alto e mais volumoso.

Porém, ambas as pontas avançam na mesma direção: a que é imposta pelo vento. O centro, mais volumoso, - "reino da quantidade"-- avança mais devagar, mas vai ele também, embora mais lentamente, na mesma direção que as extremidades, quer da direita, quer da esquerda da duna.

O processo político, no liberalismo, segue um modo de avançar análogo.

O vento do orgulho impele os grãos de areia da "massa" popular em direção à esquerda, isto é, em direção à uma igualdade cada vez maior. Os líderes radicais têm mais facilidade de assumir as alturas de comando, nas extremidades da duna popular. A oposição dos líderes radicais - de esquerda e de direita - é puramente aparente, porque a duna segue, nas duas pontas, na mesma direção: para a esquerda, isto é, para a igualdade e para a estatização.

A massa dos moderados, sempre assustada, e sempre anti radical, vai lentamente na mesma direção que as pontas da duna política. Por isso, um moderado de hoje adotará, depois de amanhã, o que os extremados exigiam ante ontem.

Veja o papel da moderada e anti-radical Democracia Cristã, na Itália: começou combatendo o PC. Depois, fez a "apertura a sinistra". Que foi uma sinistra abertura. Amasiou-se politicamente ao socialismo. E acabou sendo alijada do consórcio do poder.

"Mane pulite" alijaram o socialista Bettino Craxi até a Tunísia, e levaram aos Tribunais antigos líderes demo cristãos, suspeitos de aliança com a Maffia...

Aplique tudo isso ao Brasil... E você verá líderes católicos da Democracia cristã saindo do plenário da Câmara para não votar contra o divórcio...

Você verá os membros da antiga Ação Católica, aliando-se ao PC, e ajudando a guerrilha de Marighela. Hoje, vários deles fizeram crescer, em seu nariz, um bico de tucano.

Como ficaram feios... E que papel feio!

Aplique tudo isso ao Brasil, repito.

No Brasil, em 1964,os militares deram o golpe para impedir o triunfo do comunismo. Mas, imediatamente fizeram uma Reforma Agrária mais radical que a de Jango. Criaram o Incra, e as leis que agora o socialista FHC aplica, pela mão de Jungmann - um ex membro do PC - docemente cedendo às pressões do MST, sob o olhar e o sorriso socialista de Dona Ruth Cardoso para Stedile e Rainha. Sob a benção aposentada, mas sempre dulçurosa, do Cardeal Arns, aquele que mandava telegramas ao seu "queridíssimo Fidel...".

Os militares deram o golpe para impedir a vitória comunista, que faria a estatização da economia. E, depois de anos de governo anti comunista-- sob a tutela de Geisel e Golberi, um amigo de Dom Arns - o Brasil estava mais socializado do que a Yugoslávia de Tito. Com o divórcio, imposto pelo protestante General Geisel.

Parece regra: os anticomunistas, a pretexto de evitar o avanço da esquerda, fazem o que os comunistas anunciavam que queriam fazer. Veja, nos USA: foi Nixon quem fez os acordos com a China Comunista, que eram pedidos por Kennedy.

Via de regra, são ex membros do Partido comunista, são ex marxistas, que tomam a direção da política, quando o PC fracassa nas urnas, ou na tomada do poder, por outras vias...

Dê uma espiada pelos atuais governos da Europa neo capitalista: no poder você encontrará vários trânsfugas do naufrágio socialista e comunista, que sem terem pulado por cima do Muro da Vergonha - o de Berlim-- pularam, sem vergonha, por cima do muro da Ideologia.

Verifica-se precisamente a realização da manobra apontada por Lenin: são comunistas e socialistas que organizam o anticomunismo de "direita".

Nada se parece mais com a extrema esquerda do que a extrema direita. Elas são tão parecidas como as duas pontas da duna.

E o centro vai escorrendo - sempre moderadamente, é claro! - na direção apontada pelos líderes radicais de ambas as pontas. Sem radicalismos. Moderadamente. No Centro está a virtude...Moderadamente cúmplice!

Não foi o moderado Partido do Zentrum de Monsenhor Kaas, que deu a Hitler a Chancelaria, e, em seguida, plenos poderes, e depois desapareceu?
Foi. Foi o Zentrum moderadíssimo que preparou a tirania nazista e possibilitou os crimes de Auschwitz.

Veja ainda a cooperação da burguesia capitalista com a esquerda.

Em toda revolução marxista, se encontram líderes provenientes da burguesia plutocrata que, "arrependidos" de seu "pecado original" capitalista, fazem questão de se fazerem de socialistas sinceros.

Vão até passar alguns dias em barracos de favelas, para "vivenciarem" uma "experiência" de pobreza. Por três dias.

E bancam Robespierres de subúrbio: incorruptíveis paladinos da "ética" e da "virtude", em toda CPI que apareça.

Ou em que apareçam..

Burgueses com complexo de culpa capitalista.

Via de regra, são capitalistas burgueses que pagam os intelectuais e jornalistas que se "convertem" do marxismo, para liderar cruzadas anti comunistas.

Já Lenin dissera também:

"Quando chegar a hora, serão os banqueiros capitalistas que nos darão a corda com a qual os enforcaremos".

"Profético".

Ouvi dizer que Olavo concorda inteiramente com essa idéia, pois costumaria dizer: "Os capitalistas são os porquinhos que os comunistas engordam o ano todo, para ceá-los no Natal".

Se Olavo, não disse textualmente isso, é verdade assim mesmo,

Tendo em vista o acima considerado, pode-se perguntar, como hipótese de estudo apenas, sem afirmação de que seja tese comprovada, se isso tudo é aplicável ao caso concreto de Olavo de Carvalho.

Atualmente Olavo, montado num Pão de Açucar metafórico, proclama-se o único jornalista anti comunista a escrever nos grandes periódicos nacionais.

E escreve artigos ardidos, desancando a esquerda laica e clerical. Descendo a pua na intelectualidade esquerdista uspiana.

Com isso, recolhe as simpatias do público cansado da parolagem tucana, farto do palavreado moralizante do centrismo, sempre moderado, que cohabita com uma corrupção imensa, bem como recebe o apoio do público que exige mais lógica, e reação contra a falta de segurança.

Como hipótese, repito, e tendo em vista o que acabamos de ver, pode-se perguntar: será que quando Olavo se diz anti comunista - hoje - é para valer mesmo?

Tantos outros, no passado, cantaram a mesma canção!...

A hipótese tem que ser levada em conta.

Olavo foi do PC.

E declara que ainda compartilha de certos ideais da esquerda. E se diz anarquista em moral...Anarquista em educação. E mantém conceitos e esperanças milenaristas.

Numa entrevista perguntaram a Olavo:

"O sociólogo Manuel Castells fala que, hoje, se alguma utopia pode servir para refletir a realidade, é o anarquismo, ou seja, a atomização completa dos poderes. O que o senhor pensa disso?

Respondeu Olavo : "Olha, se pegarmos a ideologia anarquista e retirarmos dela um fundo verdadeiramente demoníaco e mórbido, de ódio às religiões, podemos dizer que eu sou anarquista" (Olavo de Carvalho, A Miséria do Materialismo, in República, Fevereiro de 2.000. ano IV, no 40, P. 97. O negrito é meu).

Olavo é pois um anarquista religioso.

Boff é um religioso anarquista.

Será que, de fato, eles são tão diferentes?

Para completar, nessa mesma entrevista, ele declarou: "Eu defendo uma idéia não porque ela seja de direita ou de esquerda, mas porque coincide com a realidade do momento. Eu não tenho a pretensão de chefiar movimento, de orientar política. Se o Brasil quiser um ideólogo, que vá procurar outro ".(Olavo de Carvalho, A Miséria do Materialismo, entrevista in, República, Fevereiro de 2.000, ano IV, no 40, p. 62".O negrito é meu).

Olavo diz defender uma idéia, porque coincide com "a realidade do momento"... Huum...

Essa defesa parece bem instável...

E se mudar "a realidade do momento"...?

Olavo diz que tudo é fluxo.

Humm...

Tomar atitudes conforme a "realidade do momento" pode ser traduzido como ser oportunista...

E Olavo previne: "(...) a palavra esquerda é ambígua e abrange muitas coisas boas também" (Olavo de Carvalho idem p. 97. O itálico é do autor. O negrito é meu).

Quais coisas boas a esquerda defende, Olavo não explicita: mantém em segredo esotérico...

Como se vê, Olavo não pode ser tido como um anti esquerdista radical...

Nessa mesma entrevista, foi dito a Olavo :

"Esse seu pensamento é muito parecido com o de parte da esquerda.

Ao que Olavo respondeu: "Não tenha a menor dúvida! Mas nenhuma fundação americana me paga para isso. As minhas idéias são experimentais: pode ser que a situação mude amanhã ou depois mude ou eu perceba que entendi errado. Agora, o ideólogo não pode mudar de idéia, porque senão acaba o partido" (Olavo de Carvalho, A Miséria do Materialismo, República, no 40, p. 66 O negrito é meu).

Viu?...

Pode ser que "a situação mude amanhã"...

"Ou mude eu"... Por ver que "entendera errado" ao se dizer contra a esquerda...

Olavo não repele a hipótese que levanto.

Nem sequer esconde a hipótese de que ele pode mudar.

Ele a afirma, escreve e subscreve.

Não se pode acusá-lo, então, de falta de sinceridade nesse problema.

O oportunismo de Olavo parece muito com o que é habitual em políticos brasileiros.

Já havíamos constatado: Olavo é mobile. Tudo é fluxo, para ele. E ele está no tudo. Portanto, pode "fluxar"

Por isso, ele não quer ser "ideólogo". Sabe que vai mudar...

Será ele sempre um anti comunista?

Ele mesmo previne que pode mudar...

Acreditar em seu anti comunismo é, então, uma questão de confiança...no fluxo...

Para completar a canção, já parodiada anteriormente, poder-se-ia cantar:

Olavo è mobile...

Por isso...

"Ma non è furbo chi a lui s’ afida,
Chi in lui confida e in suo mistero."

Olavo se diz católico - judeu- maometano, e não é nada disso. É gnóstico.

Ao dizer isso, Olavo procura se colocar como o "sábio" gnóstico, como diz Ibn Arabi:

"O verdadeiro sábio não se vincula a nenhuma crença" (Mohyidin- din- Ibn- Arabi, apud Luc Benoist, El Esoterismo, p. 46).

Que confiança merece um gnóstico com essa ambigüidade religiosa e política?

Estará Olavo se fazendo de anti comunista como se faz de católico?

"Chi lo sa?"

Mas não é prudente confiar... no fluxo.

Há quem se divirta - e se engane - com a violência estilística do anti comunismo de momento de Olavo. Que pode ser apenas de momento, isto é, oportunista. Que já garante que não será assim para sempre...

Depende do momento...ou da oportunidade.

De minha parte, não creio em quem é mutável

Creio em Deus, que não muda.

 

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    Para citar este texto:
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MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/guenon7/
Online, 30/04/2024 às 10:22:01h