Religião-Filosofia-História



V - O 2o Item da Gnose, segundo Olavo de Carvalho: o Demiurgo

"O Criador apresentado como uma divindade secundária imperfeita ou má, em contraste com a suprema divindade espiritual".

Essa oposição já foi vista em muitas das citações do item anterior, nas quais ficou patente que os pensadores da escola guénoniana admitem que há uma distinção metafísica entre a Divindade e Deus. Se a Divindade é considerada como Não-Ser, como diz Guénon, ou como Supra Ser, como sugere Olavo, Deus e o Mundo serão tidos como Seres. Se a Divindade é considerada como Ser, como afirma Olavo, Deus será tido como Nada, ou Não-Ser.

Esse Deus, primeira manifestação da Divindade, teria sido o Criador, o causador das manifestações divinas. É a este Criador que a Gnose sempre chamou de Demiurgo, aquele que a Bíblia denominou Yahwé..

É facílimo provar que a escola de Guénon defende essa tese. Para isso basta citar o artigo Le Demiurge - o Demiurgo - que René Guénon publicou na Revista La Gnose, no 1, novembro - dezembro de 1909, e janeiro de 1910, sob a assinatura de T. Palingenius, nome que ele adotou, quando foi sagrado Bispo da Igreja Gnóstica. (Cfr. René Guénon, Mélanges, "Le Demiurge, Gallimard, Paris, 1976).

Nesse artigo - ao qual jamais O de C. fez reparos ou recusou adesão, pelo contrário apoiou e elogiou --Guénon expõe largamente a doutrina gnóstica do Criador oposto à Divindade.

Ele começa exatamente, como toda Gnose, tratando da questão da origem do mal e pergunta : "Si Deus est, unde malum? ".

E ele responde a essa questão, como todo gnóstico, dizendo que o imperfeito não pode provir do perfeito. Portanto, recusando o ser por analogia (no sentido tomista do termo analogia).

René Guénon - cuja defesa por O de C. deu início a este debate - escreveu:

"É evidente que o perfeito não pode produzir a imperfeição, já que se isso fosse possível, o perfeito deveria conter em si mesmo o imperfeito em estado principial, com o que deixaria de ser perfeito. O imperfeito não pode proceder do perfeito por via de emanação; assim, não poderia resultar senão da criação "ex nihilo"; mas como admitir que algo possa proceder do nada, ou, em outros termos, que possa existir coisa carente de princípio? Por um lado, admitir a criação "Ex- nihilo" seria admitir o aniquilamento final de todos os seres criados, já que, o que teve um começo, deve também ter um final, e não há nada mais ilógico que falar de imortalidade em tal hipótese. Mas a criação assim entendida é um absurdo, posto que é contrária ao princípio de causalidade, que é inegável para todo homem sincero e medianamente razoável, com o que podemos dizer como Lucrécio: "Ex nihilo nihil, ad nihilum nihil posse reverti" (Palingenius, aliás, René Guénon, O Demiurgo, artigo publicado pela primeira vez no número 1 da revista La Gnose, 1909, reeditado in René Guénon, Mélanges Centro Studi Guenoniani, Venezia, 1978, parte I, p. 19. A tradução é do Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais).

E note que Guénon assinou esse artigo como Bispo da Igreja Gnóstica, na qual ele assumiu o nome de Palingênius, renascido.

Será que Guénon, Bispo da Igreja Gnóstica não era gnóstico?

É de rir.

A doutrina gnóstica de Guénon se encaixa inteiramente no sistema da Gnose pois considera a criação ex nihilo, - como a ensina a Igreja Católica - um absurdo, e julga que uma Divindade perfeita não poderia ter produzido uma criação imperfeita. Exatamente como ensina a Gnose.

Guénon, ao dizer que o perfeito não pode produzir o imperfeito, faz confusão entre perfeito absoluto (Deus) e o perfeito relativo (a criatura).

Pelo contrário, dizemos nós, o que é evidente é que Deus não poderia produzir outro Ser perfeito absoluto, porque este último, se criado, por ser criado, já não teria a perfeição do criador. Logo, Deus só pode criar seres com perfeição relativa.

Também por essa doutrina, Guénon é gnóstico.

E O de C. quer ser o continuador da obra de Guénon. Logo, quer dar prosseguimento à sua pregação gnóstica.

Esta doutrina sobre o Demiurgo como deus criador, responsável pelo mal metafísico, Guénon já a recebera de seu iniciador nas doutrinas taoístas, Albert de Pouvourville (Matgioi).

"O Deus pessoal das ‘religiões jeovaistas’, para Matgioi, estava na origem de [sua] enfermidade intelectual." (J.P. Laurent, Le Sens Caché dans l’oeuvre de René Guénon, p. 157, apud Marie-France James, Ésotérisme et Christianisme autour de René Guénon, p. 80, nota 33).

E essa autora explica ainda que, para Matgioi, "... o cristianismo, refluxo do budismo, tinha sido artificialmente ligado ‘por copistas malfazejos’ ao ‘Jeovaismo demiúrgico’. O tema do demiurgo, tão importante no Esoterismo, achava aqui uma nova aplicação: os judeus tinham interceptado o raio celeste e tornado necessária esta forma imperfeita e diminuída de conhecimento que foi a Revelação "(J. P. Laurent, Le Sens Caché dans l’oeuvre de René Guénon, p. 53, apud Marie -France James, op. cit. p. 80, nota 34).

No artigo intitulado Le Démiurge, Guénon ensina a Gnose de modo explícito: "Podemos dizer que o Demiurgo cria a Matéria entendendo por essa palavra o cáos primordial que é a reserva comum de todas as formas, depois organiza essa matéria caótica e tenebrosa onde reina a confusão, fazendo surgir dela as formas múltiplas cujo conjunto constitui a criação" (T. Palingenius, aliás, René Guénon, Le Démiurge, artigo publicado originalmente na revista La Gnose n o 1, p. 4).

Não há dúvida então que T. Palingenius, Bispo da Igreja Gnóstica, era um gnóstico. (E o "T." significava bem sintomaticamente Tau..."Á bon entendeur...").

Quem tiver ouvidos para entender, que entenda.

Seria preciso citar o artigo de Guénon na íntegra, tanto ele é interessante para provar que ele é gnóstico. Limitemo-nos a algumas passagens.:

"Considerado como criador, o Demiurgo produz primeiro a divisão, e não é realmente distinto dela, já que só existe enquanto a divisão mesma existe; depois, como a divisão é a fonte da existência individual e essa vem definida pela forma, o Demiurgo deve ser considerado como formador e então é idêntico a Adam Protoplastas, tal como vimos"(René Guénon, Le Démiurge, p. 4).

Também Nasr considera que o mundo - produção do Demiurgo - é mau, e que o homem deve buscar libertar-se dele, da mesma forma que era preconizada pelo maniqueísmo e pelo budismo:

"O ponto de vista do maniqueísmo, que vê o mundo como mau ao invés de bom, é primeiramente iniciático e não metafísico, ou seja, começa com o objetivo não de entender a natureza das coisas, mas de fornecer uma via para escapar da prisão da existência material. O budismo possui uma perspectiva prática similar mas, é claro, com um pano de fundo metafísico diferente, à medida que pertence a um universo espiritual diferente." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, State University of New York Press, 1989, p. 156, nota 13)

Veja, meu prezado Felipe, como Guénon considera o Demiurgo criador - isto é, o Deus que a Igreja Católica adora - como mau:

"Isso nos leva a considerar ao Demiurgo como um reflexo tenebroso e invertido do Ser, já que na realidade não pode ser outra coisa".(R Guénon, Le Démiurge, p. 4).

Essa asserção de Guénon - a quem Olavo não quis reconhecer como gnóstico, e de quem se fez defensor e divulgador - nos leva a indagar: será que Guénon, como muitos outros gnósticos, julgava que o demiurgo era, de fato, o deus do mal.? Será que ele identificava Yahwé a Lúcifer?

Ora, nesse mesmo artigo, Guénon escreveu:

"Desde um ponto de vista geral, o Demiurgo, convertido em uma potência distinta e considerado como tal, é o "príncipe deste mundo" de que se fala no Evangelho de São João " (R. Guénon, Le Démiurge, p. 4. O negrito é meu).

Todos os intérpretes do Evangelho sempre disseram que o "Príncipe deste Mundo" do qual falou o mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo, no Evangelho de São João, é o próprio demônio, Lúcifer.

Portanto, Guénon considera que o Criador deste mundo material grosseiro foi o diabo, identificando Deus Pai, o Criador, com Lúcifer.

E quando ainda assinava artigos como Bispo da Igreja Gnóstica, Guénon escreveu, tratando da diferença entre o Grande Arquiteto do Universo e o Demiurgo:

"Isso basta para marcar a profunda diferença entre o Grande Arquiteto da Maçonaria, de um lado, e, de outro, os deuses das diversas religiões, que não são todos senão aspetos diversos do Demiurgo" (Palingenius, aliás, René Guénon, La Gnose, Julho - Agosto de 1911; apud Marie-France James, op. cit. p. 131, nota 30).

Portanto, para Guénon, o Deus Criador da Bíblia, para ele, era o demiurgo causador do mal pela criação do universo material.

Está então provado que Guénon defende exatamente o segundo item citado por Olavo como fundamental da doutrina gnóstica. René Guénon é, pois, um gnóstico.

E Olavo de Carvalho defendeu Guénon, se declara continuador e divulgador de seu pensamento, nunca condenou essa blasfêmia de Guénon, não quis reconhecer que ele é um gnóstico, e omitiu que Guénon foi Bispo da Igreja Gnóstica.

Por que Olavo fez tudo isso?

Mas Olavo de Carvalho não se limitou a fazer tudo isso. Ele elogiou o artigo Le Démiurge de Guénon, assumindo a sua doutrina.

"Talvez a amostra mais contundente da coerência da obra guénoniana seja o fato de que, no seu primeiro artigo, publicado em 1909 (Le Démiurge), Guénon já tenha definido, de maneira taxativa, tanto a sua posição quanto a do adversário: e daí até a sua morte, em 1951, Guénon permanecerá, sem nenhuma alteração doutrinária, o defensor da Unidade contra "o espírito de negação e de revolta", da parte contra o todo e do relativo contra o Absoluto, o qual espírito personificado, recebe na tradição semítica o nome de Shatan, Shaitan, ou Satã, termos que querem dizer precisamente" o Adversário " (Olavo de Carvalho, O Homem e sua lanterna. René Guénon o Mestre da Tradição contra o Reino da Deturpação, in revista Planeta, no 107, agosto de 1981, p. 17).

Portanto, Olavo de Carvalho adere à doutrina gnóstica exposta pelo Bispo Gnóstico Palingenius - Guénon de que o Criador do Universo - o Demiurgo - é para ele também o "Adversário", Satã, o revoltado contra a Unidade, contra o Absoluto, contra a Divindade Incognoscível.

E por essa citação do próprio Olavo de Carvalho fica provado, mais uma vez, que ele também tem uma doutrina gnóstica. E bastaria este ponto: o de identificar o Criador, o Demiurgo, com Satã, o Adversário, com Lúcifer, para que ele seja um verdadeiro e completo defensor da Gnose.

Olavo de Carvalho, também, é gnóstico.

Para bom entendedor, bastaria essa citação de Olavo, para compreender que ele é adepto da Gnose.

Entretanto, daremos alguns textos a mais de Olavo, para confirmar o que está para lá de evidente no texto acima sobre a identificação do Demiurgo com Satã.

A Gnose pretende que toda a criação é fruto de uma queda da própria Divindade que se teria tornado prisioneira no universo material criado pelo demiurgo. Por isso, a Gnose apresenta as esferas cósmicas como verdadeiras "muralhas" orbitais do grande cárcere do universo. Essas órbitas planetárias ou astrais seriam guardadas pelos servos do Demiurgo, os Arcontes, ou espíritos planetários, demônios que impediriam o retorno das partículas divinas (âtmâs) ao pléroma divino.

A criação teria sido uma queda da Divindade, e isto seria a causa de todo o mal do universo. A criação teria sido um drama teo cosmogônico. Para os gnósticos, enquanto estão presas no universo material, as partículas divinas - os âtmâs, os "primum" de Ibn Arabi, os éons da Gnose antiga, etc.-- estão no reino da dor e do sofrimento, no túmulo da matéria, onde foram encarceradas pelo Demiurgo, isto é, pelo "Adversário."

"(...) essa separação dos caminhos [o do Conhecimento e o da ciência] sem cruzamento acha sua origem, para o cristianismo e para o judaísmo, no seio de um drama ético cuja responsabilidade, a do pecado, cabe ao homem, enquanto que, para a Gnose, o drama se dá, e foi sempre, e está já atado, dando-se fora do tempo na esfera do divino. No Primeiro caso, a criação, foi humanamente corrompida, enquanto que, no segundo, essa corrupção é o fruto de uma deficiência não mais ética, mas ontológica: para os gnósticos, se a criação é má e corrompida, ele o é porque é a criação de um deus que não é verdadeiramente Deus, a gnose introduz uma distinção entre o demiurgo e o Deus verdadeiro" (Michel Barat, Le Dualisme de la Gnose et L ‘Image Symboliquemente double de la Femme, in Les Cahiers Jean Scot Erigène, I, Images de l’Homme e Iniciation, ed. Loge d’Etudes et de Recherche Jean Scot Erigène, Parois, 1988, pp. 36-37).

Já citamos e explicamos a frase abstrusamente arrevesada de Olavo que alude à queda da Divindade como causa e raiz do mal do universo criado:

"A psicologia astrológica (sic!?) é uma teoria do sentido do sofrimento e da raiz deste último nas polarizações que cosmogonicamente desdobram o orbe manifesto a partir da unidade do ser" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, Nova Stella, São Paulo, 1985, p. 65).

Essa mesma tese da unidade do ser é proclamada por Olavo, de modo ambíguo, ao escrever:

"Ser e unidade são sinônimos. Ser é ser um" (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 26).

É claro que essas frase devem ser entendidas no contexto da doutrina exposta por Guénon, por Ibn Arabi e pelos outros mestres de Olavo, e não num contexto metafísico tomista a respeito dos transcendentais do ser, a respeito do ens e do unum. É no contexto da doutrina sufi e hinduísta da unidade e da unicidade do ser que deve ser compreendida essa citação de Olavo de ser como sinônimo de unidade.

Como todo gnóstico, Olavo desvaloriza o mundo material concreto, assim como as ciências naturais que permitem conhecê-lo, preferindo as "ciências esotéricas tradicionais", as ciências ocultas da Gnose, a Alquimia, a Astrologia etc. Por essa razão diz Olavo que "a experiência concreta é destituída de verdade, destituída de sentido".

"Ora, os princípios universais geralmente chegam a nosso conhecimento unicamente através de fórmulas abstratas, de modo que nos encontramos sempre divididos entre uma verdade universal e abstrata e uma experiência concreta destituída de verdade e de sentido" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, ed cit. p. 41).

Daí, ele falar também da "opacidade dos dados fenomênicos sensíveis" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 50). Por isso também ele opõe a intuição tradicional que dá a Sabedoria ou Gnose à Filosofia racional que se fundamenta numa análise dos dados materiais destituídos de verdade e de sentido. Para Guénon, que normalmente é seguido nesse ponto por seus discípulos tradicionalistas, a "Metafísica" é sobrenatural" (R. Guénon, A Metafísica Oriental, tradução de Olavo de Carvalho, p.19-20), ela está "além da natureza" (Op. cit., p. 17), está "além do ser" (op., cit p. 21).

Daí, Guénon fazer restrição até mesmo a Aristóteles, dizendo que "Assim, quando Aristóteles encarava a metafísica como o conhecimento do ser enquanto ser, ele a identificava com a ontologia, isto é, tomava a parte pelo todo" (René Guénon, A Metafísica Oriental, tradução de Olavo de Carvalho, p. 21), para concluir que a metafísica de Aristóteles é "parcial" e "incompleta por limitar-se ao ser" (R. Guénon, A Metafísica Oriental, p. 26).

Evidentemente, Guénon toma o termo "Metafísica" como sinônimo de Gnose, caso contrário, seria o cúmulo da pretensão ele querer criticar Aristóteles enquanto Metafísico.

A Metafísica "tradicional" - a esotérica - não seria filosofia: "não é um conhecimento puramente humano e racional". "(...) um conhecimento de ordem natural, um saber profano e exterior; não é de nada disso que desejamos falar. Tomamos, então, "metafísica" como sinônimo de "sobrenatural? Aceitaríamos de bom grado tal assimilação, de vez que, enquanto não ultrapassamos a natureza, isto é, o mundo manifesto em toda a sua extensão (e não apenas o mundo sensível, que não é, dele, senão um elemento infinitesimal), estamos ainda no domínio da física; o que é metafísico, como dissemos, é aquilo que está além da natureza, é portanto, propriamente o "sobrenatural "(René Guénon, A Metafísica Oriental, pp.19- 20. Tradução de Olavo de Carvalho).

Todo esse desprezo de Guénon pela Física e pela Metafísica aristotélica provém exatamente da consideração de que o mundo material seria ilusório, valendo apenas como manifestação do mundo divino.

Guénon vai defender uma "Metafísica" supra racional, sobrenatural, contra a Metafísica racional, aristotélica. Do mesmo modo, como toda a Gnose, valorizará as ciências esotéricas em detrimento das ciências naturais. O mesmo faz Olavo, ao defender a Astrologia e a Alquimia, que, como veremos, se fundamentam na Gnose.

Sobre o desprezo das ciências naturais, e a preferência pelas ciências esotéricas, veremos outro textos mais adiante. Aqui, só colocamos esses pontos como comprovação de uma concepção negativa do mundo, típica da Gnose.

 

VI - O 3o Item fundamental da Gnose, segundo Olavo de Carvalho

"A oposição irrecorrível do corpo e da alma, donde a concepção da alma como prisioneira do corpo material".

 

VI - 1. Um Erro de Olavo

Nessa redação de seu terceiro item da Gnose, O de C. cometeu um erro grosseiro. A Gnose jamais afirmou que a oposição é entre a alma e o corpo. Ela vai mais longe. A oposição que ela afirma é entre o espírito divino (pneuma) aprisionado quer no corpo material (hylé), quer na alma (psyché). E que essa oposição é de ordem metafísica.

Para a Gnose, o homem é um ser composto de três elementos distintos:

1) corpo material; 2) alma racional; 3) espírito divino (pneuma).

Sendo que o "pneuma", repetimos, se oporia tanto à alma, quanto ao corpo.

Como Olavo cometeu esse erro primário? Pois é claro que ele sabe que a Gnose não diz o que ele escreveu nesse terceiro item.

Não se pode dizer que ele não tenha compreendido a Gnose, pois é inteligente.

Teria errado por estar enfurecido? Por estar "hidrófobo", como ele costuma dizer?

Ou teria caído em equívoco por falta de precisão, falha comum em um jornalista auto didata?

Não quero pensar que ele tenha errado de propósito.

Até mesmo uma enciclopédia popular deve dizer que a Gnose considera que a Divindade, ao cair no mundo material, se dividiu, ficando em cada ser, aprisionada uma partícula divina. Para a Gnose cristã, essa partícula divina se chamava éon, ou pneuma; na Gnose hindu era o âtmâ; na Gnose islâmica de Ibn Arabi, era o "primum", e na de Averróes, era o "intelecto agente"; na gnose de Mestre Eckhart, era a "Fünkenlein", a chamazinha divina; para Teilhard de Chardin, era a "consciência"; para Jung, e para Guénon o "Si" ou Moi (Self), etc.

Conseqüentemente, o homem seria formado por três elementos:

1) corpo material mau e ilusório;

2) alma racional enganadora;

3) espírito divino, qualquer que seja o nome que as diversas seitas dêem a esse espírito.

 

VI - 2. A alma (inteligência, vontade) como prisão da partícula divina

Para a Gnose, a alma racional teria sido criada pelo Demiurgo mau, para ajudar a manter o éon aprisionado. A inteligência, ao compreender o mundo material, feito inteligível pelo Demiurgo, se compraz nele, julgando-o, então, bom, e não querendo sair dele. A inteligência racional, ao fazer abstrações, recorta a realidade única, a unidade fundamental do Ser, em uma multidão de conceitos, levando o homem à ilusão de que existe uma infinidade de seres individuais. A razão enganaria o homem. Abstrair seria o grande pecado da inteligência racional.

"Os piores inimigos do zen são as palavras e a razão discursiva que velam o conhecimento intuitivo, objetivo que exalta, direto e instantâneo"(Luc Benoist, El Esoterismo, ed. cit., p. 29). E o zen é gnóstico.

"A ciência moderna, pelo contrário, tem por instrumento dialético a razão e por domínio o geral. A razão não é senão um instrumento vinculado à linguagem para todos os fins, que permite respeitar as regras da lógica e da gramática sem simplificar nem garantir nenhuma espécie de certeza quanto à realidade de suas conclusões e muito menos de suas premissas. Efetivamente, a razão é apenas um meio puramente discursivo e dedutivo, um habitus conclusionis diria um escolástico, que não chega até às causas". (Luc Benoist, El Esoterismo, p. 5).

Abstraindo, a razão distingue sujeito conhecedor e objeto conhecido, separando, portanto, a realidade única do Ser, dividindo o Ser. Só quando o homem conhecesse que o sujeito conhecedor é o mesmo objeto conhecido, só então ele realizaria que o Ser é um só. A libertação da prisão da razão e da matéria individualizante se daria quando o homem conhecesse que ele (como sujeito conhecedor) se identifica com a Divindade (objeto conhecido). Quando ele fizesse essa identificação, ele teria o conhecimento absoluto que o identificaria com a Divindade, e mesmo, com todas as consciências, agora divididas nas coisas criadas. Realizando, pelo conhecimento, essa união de sujeito (homem) com o objeto (Divindade), ele teria a unidade do conhecimento, na unidade da consciência e de todas as consciências. Que é exatamente o que Olavo de Carvalho chama de "filosofia" :

Filosofia é "a unidade do conhecimento realizada na unidade da consciência, e vice versa"(Olavo de Carvalho, aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, Junho de 1998, Bloco 8).

E que divertido é o exótico "vice versa" dessa definição!...

Se já era perplexitante a definição, que dirá ela posta no avesso por esse surpreendente vice versa?

Que estranha definição de Filosofia a de Olavo. Filosofia da qual ele próprio confessa expressamente que, em seus livros, deixou subentendido o seu real significado, que ele não deixou muito "explicitado":

"(...) a maior parte de meus livros publicados trata apenas de crítica cultural, com uma filosofia subentendida mas não muito explicitada" (Olavo de Carvalho, Entrevista ao Embaixador Caius Traian Dragomir, novembro de 1998, p. 2).

Nessa mesma entrevista, Olavo explica:

" Isto colocava enfim a questão do conhecimento como sistema orgânico, ou da unidade do conhecimento (sic!). Quando digo que essa unidade deve ser do tipo sistêmico - e não apenas sistemático --, subentendo que não pode tomar a forma de um sistema dedutivo, como no racionalismo clássico, mas sim a de uma unidade vivente (sic!) que se identifica em última análise, com a unidade de um ente vivo e consciente: o indivíduo humano real, unidade psico física e espiritual, é o padrão da unidade do conhecimento" (Olavo de Carvalho, Entrevista ao Embaixador Caius Traian Dragomir, novembro de 1998, p. 2).

Que significa esse charabiá?

A "unidade do conhecimento" não seria do tipo racionalista clássico, dedutiva, mas seria "unidade vivente" (sic!). E que significa isso? Que está subentendido nisso?

E que quer dizer: a unidade do conhecimento se "identifica com o indivíduo humano real, unidade psico física e espiritual", que "é o padrão da unidade do conhecimento"?

Haveria indivíduos humanos irreais? Que está "subentendido" nessa estranha conceituação de Filosofia?

A definição de Filosofia de Olavo de Carvalho só pode ser entendida num sistema de pensamento irracional e gnóstico, pois identifica a consciência do sujeito conhecedor com o objeto conhecido (Deus), num Conhecimento único. A Unidade da consciência do indivíduo humano com a Divindade e com todos os seres, daria a unidade do Conhecimento, e a unidade do Conhecimento causaria a unidade da consciência. Está aí explicada a abstrusa definição de Filosofia de Olavo de Carvalho, da qual ele tanto se orgulha, e que ele confessa não ter explicitada inteiramente em seus livros, pois contém algo "subentendido".

Você terá uma confirmação disso que afirmo, caro Felipe, nos livros do próprio Olavo.

Primeiro, no Astrologia e Religião (p.11) ele diz que "O esoterismo é(...) o conhecimento e a realização da unidade". E vimos já que o conhecimento proporcionado pelo esoterismo é a Gnose.

Segundo, numa aula dele, na qual ele afirma: "a Filosofia no sentido mais puro", buscando "a unidade do conhecimento" encontra Deus no mais fundo da consciência humana (Cfr. Olavo de Carvalho, Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, bloco 8, junho de 1998, p. 15).

Ora, afirma Olavo que há uma unidade do conhecedor e do objeto conhecido como se isso fosse uma novidade descoberta por ele ou por seus mestres "tradicionalistas", mas, ao dizer isso, Olavo está, de fato, repetindo o que diziam os gnósticos românticos.

"Se nós chamamos subjetivo aquele que conhece, e objetivo o que é conhecido, então o conhecer autêntico (das Wahre Erkenen) ou o em si do conhecer(das an-sich des Erkenens), não é nem um, nem o outro, nem um sujeito cognoscente, nem um objeto conhecido, mas a unidade absoluta de ambos. A oposição entre subjetividade e objetividade não é, portanto, uma oposição real; a verdadeira realidade só se encontra onde esta oposição desaparece totalmente" (Heinrich Steffens, Grundzüge der philosophischen Naturwissenschaft, Berlin, 1806, apud Georges Gusdorf, Le Romantisme, Payot, Paris, 1993, Vol. I, p. 489).

E concluindo do que citou de Steffens, diz Gusdorf: "A diversidade de ser e a unidade do pensamento devem fundir-se para que advenha o conhecimento pleno"(G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 489).

Esse conhecimento pleno, também para os românticos, era a Gnose:

"As denominações "filosofia transcendental", "filosofia da identidade", "dialética" propõem soluções diversas ao problema insolúvel das relações entre sujeito e objeto, entre o real e o verdadeiro, entre a consciência humana e a consciência divina"(G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 489).

Essa união - ou melhor, identificação - do sujeito conhecedor e do objeto conhecido, quer seja o objeto uma criatura, quer seja a própria Divindade, faz da filosofia romântica uma forma de Gnose.

Veja, meu caro Felipe, estas outras citações de Steffens e de Gusdorf, como se coadunam com a doutrina de Guénon e de Olavo:

"A verdade não é uma construção do espírito, mas uma reintegração na totalidade, uma reconciliação dos opostos; o sujeito e o objeto só se excluem num primeiro momento em que as evidências da separação superam as invidências unitivas"(G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 380).

"A consciência é a revelação do infinito no finito, a tensão entre o infinito interior do Eu [sujeito] e o infinito exterior do Universo, tensão afirmada no espaço interior"(Steffens, Gurnzüg der philosophischen Naturwissenschaft, Berlim, 1806, Einleitung, p. 202) "A consciência em questão não é uma simples apercepção psicológica, mas antes um órgão ontológico. "Graças à consciência se afirma a cada instante o infinito, isto é, a totalidade, a oposição entre o exterior e o interior é superada" (Steffens, op. cit., p. 205, apud Gusdorf, op. cit., Vol I, p. 381).

Veja, caro Felipe, como Gusdorf explicita o mesmo pensamento de Olavo, ao expor a filosofia dos românticos sobre a união entre sujeito e objeto:

"O saber se realiza na fusão conjugal da subjetividade e da objetividade; na linguagem do Antigo Testamento, "conhecer" uma mulher, é unir-se carnalmente a ela" (G. Gusdorf, op. cit. Vol I, p. 358).

É claro que essa doutrina da fusão do sujeito com o objeto é oposta ao princípio de contradição, e admite a dialética gnóstica da igualdade dos contrários (Yin e Yang). É o que pretendia o grande mestre da Gnose romântica, Novalis:

"Destruir o princípio de contradição, tal é talvez a mais alta tarefa da lógica superior"(Novalis, L’Encyclopédie, fragments, ed. Wasmuth, tr, Gandillac, ed. de Minuit, 1966, 128, p. 64, apud G. Gusdorf op. cit, Vol. I, p. 193).

Talvez você queira uma comprovação de que a filosofia romântica era Gnóstica. Veja como Gusdorf admite francamente isso:

"Existe uma relação entre a função mítica e a gnose, especulação meta- religiosa que se aventura além dos limites prudentes dos territórios eclesiásticos. O saber gnóstico, transmitido pela iniciação, assegura aos depositários dos segredos escatológicos o benefício da salvação eterna. A gnose se apresenta sob a forma de parábolas, confiadas aos homens por uma benevolência divina, cuja luz intrínseca desenlaça as contradições do real. O mito gnóstico do andrógino, evocação de uma unidade originária dos sexos, anterior à sua dissociação, propõe, por exemplo, uma inteligibilidade adaptada às delícias, paixões e horrores do amor. Os românticos recorreram a este arquétipo existencial para justificar o injustificável nas paixões da humanidade. A situação gnóstica da razão ultrapassada e confundida é por excelência uma situação romântica; o romantismo é uma renascença gnóstica, vaga de fundo que submerge as seqüelas da filosofia das luzes" (G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol I, pp. 511-512. O negrito é meu).

Quer outra?

"O saber romântico é uma gnose, em busca de evidências ocultas reveladas àqueles que são dignos de serem iniciados nos segredos do ser" (G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 386).

"A possibilidade de ascenção ao saber total caracteriza o gnosticismo romântico"(G. Gusdorf, Le Romantisme, vol. I, p. 411). E note, meu caro Felipe, que também Gusdorf usa o termo gnosticismo como equivalente de Gnose.

"A doutrina gnóstica da revelação como experiência íntima de uma verdade transformante que conduz à salvação por vias que escapam ao controle do entendimento é um elemento da ontologia romântica"(G.Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 635).

(Voltaremos mais adiante - no item VI-4 - à definição de Filosofia de Olavo, para mostrar, ainda mais claramente, que ela tem caráter gnóstico.

Não só a inteligência enganaria o homem. A vontade faria outro tanto.

A vontade enganaria o homem ao tomar cada ser individual como real, bom e desejável. Na realidade, todas as coisas materiais seriam pura ilusão. O mundo das manifestações seria falso, ilusório. Querer seria o pecado da vontade. Daí a pregação da indiferença absoluta diante do mundo, a negação absoluta do querer como necessária para a libertação, preconizada por muitas doutrinas gnósticas, como, por exemplo, a hinduista, a budista e a de Mestre Eckhart.

Essa condenação do querer, essa recusa em aceitar a vontade e o bonum dos seres criados, leva a Gnose ou à ascese absoluta pela recusa de toda criatura, ou ao antinomismo, pelo abuso das criaturas, ao odiar toda a lei imposta pelo Demiurgo ao mundo criado. Para a Gnose, a salvação - a Libertação-- não se obtém pela obediência a mandamentos, pela virtude ou santidade. Basta o Conhecimento. O Conhecimento (Gnose) --que Olavo chama também de Metafísica ou Sabedoria (Cfr. Aula do Bloco 8 de Olavo de Carvalho - Crítica e Conselhos à Igreja Católica - que citei em carta precedente, na qual Olavo ataca a Moral e a virtude como "bobagem").

Também Guénon recusa a Moral em sentido comum:

"Para começar, se estaria tentado a dizer o seguinte: se a distinção entre o Bem e o Mal é ilusória, se em realidade não existe, o mesmo deve suceder com a moral, pois é evidente que a moral está baseada nesta distinção, a qual considera essencial. Isto seria ir demasiado longe; a moral existe, mas na mesma medida que a distinção entre o Bem e o Mal, quer dizer, para tudo o que pertence ao domínio do demiurgo; desde o ponto de vista universal, não teria nenhuma razão de ser" (R. Guénon, Le Démiurge, p. 8)

Repare como Guénon é cauteloso: ele nega a Moral, depois recua, e afinal diz que ela só vale no domínio do Demiurgo, que ele chamou de "Príncipe deste mundo (o demônio). E conclui que fora dos domínios do Demiurgo - que é o que realmente vale, segundo ele-- a moral "não teria nenhuma razão de ser".

Logo depois Guénon escreve: "Isso indica que há de se ter muito cuidado em não confundir os diversos planos do universo, pois o que se diz de um poderia não ser verdadeiro para o outro. Assim, a moral existe necessariamente no plano social, que é essencialmente o domínio da ação; mas não quando se considera o plano metafísico ou universal, posto que então já não há ação"(R. Guénon, Le Démiurge, p. 8).

Será preciso salientar que Guénon defende a dupla verdade, e, em conseqüência, a dupla moral? Ou que ele, de fato, nega toda a moral, porque ela só teria validade no plano da ação, que ele considera absolutamente ilusório e falso?

Seria preciso sublinhar que Guénon, no máximo, defende que pode existir uma moral para a vida social, e outra para os que atingiram a unidade pelo conhecimento? Portanto, que existiriam duas morais?

Ora, a defesa de duas morais é típica dos movimentos gnósticos: uma moral para os homens "materiais"(os Hylikoi) e outra para os que alcançaram o Conhecimento (os Pneumatikoi). No Islam, por exemplo, enquanto os homens comuns ficam proibidos de tomar vinho, para o sufi, o vinho pode ser permitido.

Essa libertação da lei e essa duplicidade moral são permitidas aos que alcançaram o Conhecimento: da idéia que o bem é desconhecido resulta a liberdade do gnóstico. Não há para ele atos permitidos ou proibidos em geral. O importante é conhecer" (Simone de Pétrement, Le Dualisme chez Platon, les Gnostiques et Manichéens, Puf, Paris, 1947, p. 267).

 

VI - 3. As partículas divinas encarceradas nos seres criados

Toda essa doutrina das partículas divinas aprisionadas na matéria, no corpo, e na alma humana, é defendida por René Guénon e por seus seguidores da corrente "perenialista" ou "tradicionalista".

A documentação sobre esse ponto da doutrina gnóstica nos "perennialists" é bastante grande. Dela citarei apenas o que é mais explícito,, pois esta carta não é uma tese de doutorado.

Comecemos por Guénon, analisando sua condenação da individuação e a encarnação..

"Convém insistir muito particularmente na natureza essencialmente supra --individual do intelecto puro; por outro lado, somente o que pertence a esta ordem pode ser verdadeiramente chamado "transcendente", não podendo normalmente este termo aplicar-se senão ao que está além do domínio individual. O intelecto jamais está então individualizado; (...) o espirito jamais está realmente "encarnado", o que por outro lado é igualmente certo em todas as acepções em que a palavra "espírito" pode ser legitimamente tomada. Resulta disto que a distinção existente entre o espírito e os elementos de ordem individual é muito mais profunda que todas aquelas que podem estabelecer-se entre estes últimos, e especialmente entre os elementos psíquicos e os corporais, isto é, entre os que pertencem respectivamente à manifestação sutil e à manifestação grosseira, que em suma não são senão modalidades da manifestação formal" (René Guénon, Espírito e Intelecto, in Mélanges, cap. III, ed cit p. 49-50. A tradução e os negritos são nossos).

Desse texto convém salientar alguns pontos:

1) Que, segundo Guénon, "o espírito jamais está realmente encarnado".

O que resulta numa negação implícita da Encarnação do Verbo. Isso não espanta, dada a adesão de Guénon ao maometismo. E com isso ele nega também a Divindade de Jesus Cristo e a Redenção por Ele realizada.

2) "O intelecto jamais está então individualizado".

Portanto, para Guénon, existe um só intelecto, e esse único intelecto é o Intelecto divino, tal qual dizia o mono psiquismo da Gnose árabe.

3) O intelecto se opõe quer à alma, quer ao corpo, tal qual ensinam todos as escolas gnósticas.

4) Que a "distinção" entre o "espírito"(o intelecto ou o Si) e os elementos individuais, psíquicos e corporais, é muito maior do que a existente entre alma e corpo. Exatamente como colocamos que a Gnose faz. E como Olavo deveria tê-lo feito neste 3o item.

Portanto, Guénon é um gnóstico.

Vejamos outros textos elucidativos de Guénon e de sua Gnose.

"Imaginando-se que é a alma individual, o homem se apavora, como alguém que toma, por engano, um pedaço de corda por uma serpente; mas seu temor é afastado pela percepção de que ele não é a alma, mas o Espírito universal" (R. Guénon, Le Démiurge, p. 6).

Veja, paciente Felipe, outra prova da Gnose de Guénon: o espírito do homem não é pessoal; é o próprio Espírito universal.

Repare ainda como Guénon deixa clara a oposição do "Espírito" não só ao corpo, como também à alma.

Ele vai deixar isso ainda mais patente nesta outra passagem:

"Aquele que tomou consciência dos dois Mundos manifestados, quer dizer, do Mundo hylico - conjunto das manifestações grosseiras ou materiais --, e do Mundo psíquico, - conjunto das manifestações sutis --, é nascido duas vezes, Dwidja; mas aquele que é consciente do Universo não- manifestado ou do Mundo sem forma, quer dizer, do Mundo pneumático, e que chegou à identificação de si mesmo com o Espírito universal, Atmâ, este, e só este, pode ser chamado de Yogi, que quer dizer, unido ao Espírito universal. O Yogi, cujo intelecto é perfeito, contempla todas as coisas como morando nele mesmo, e assim, pelo olho do Conhecimento, percebe que tudo é Espírito" (René Guénon, Le Démiurge, p. 6-7).

Perdoe-me estar a todo momento chamando a sua atenção, mas é que em carta tão longa e tão tediosa, em assunto tão árido e rebarbativo, é fácil perder os pormenores. E, como não só você lerá esta carta, mas também muitos dos assustadiços e perplexos alunos do Olavo, que conhecem menos claramente estes temas, vejo-me obrigado a salientar pontos mais importantes, ou mais obscuros.

Veja então, na citação acima, como Guénon reconhece a existência de três mundos, exatamente como faz a Gnose:

1) O Mundo Hylico ou da Matéria grosseira-- Mundo Hílico

2) Mundo Psykico ou subtil das almas; Mundo Psíquico

3) O mundo do Espírito: Mundo Pneumático.

4) Que o Yogi, o gnóstico pneumático, é aquele que, tomando consciência da unidade do intelecto, se identifica com o Espírito Universal presente em tudo, e realiza a identidade Suprema na unidade do conhecimento e da consciência. Para ele, tudo é Espírito

5) Portanto, a grande oposição não é entre a alma e o corpo, e sim entre o mundo manifestado e o mundo Não Manifestado.

Guénon, Bispo gnóstico, era um gnóstico.

E, para tornar ainda mais claro que ele era realmente gnóstico, Guénon registra pouco depois:

"Acima do Universo Pneumático existe apenas - segundo a doutrina gnóstica - o Pléroma -, que pode considerar-se como constituído pelo conjunto dos atributos da Divindade. Não se trata de um quarto mundo, mas do próprio Espírito universal, Princípio Supremo dos três Mundos, nem manifestado, nem não manifestado, indefinível, inconcebível e incompreensível"(René Guénon, Le Démiurge, p. 7).

Guénon ensina que o "Si" de cada um - o Self, o Moi - "este "Si", ao qual se designa analogicamente por espírito, essência ou com qualquer outro nome, é idêntico à Realidade Absoluta na qual tudo está contido, isto é, o Atmâ supremo e incondicionado"(René Guénon, Espírito e Intelecto, in Mélanges, ed cit.p.52).

Poderia ser Guénon mais explicitamente gnóstico?

No livro L’ homme et son Devenir selon le Vedanta, René Guénon trata num capítulo inteiro sobre a distinção entre o "Si" e o "Eu" (entre o "Soi" e o "Moi"), isto é, entre o eu, enquanto indivíduo material, e a partícula divina - o âtmâ ou "Soi"(Self), que seria o verdadeiro ser do homem.

Nesse capítulo, há um texto intitulado "O Centro Vital do Ser Humano, moradia de Brahma", no qual se pode ler o seguinte:

"O "Si" - [em francês, o "Soi"] - como vimos no que precede, não deve ser distinguido do Atmâ; e, de outro lado, Atmâ é identificado ao próprio Brahma: é o que nós podemos chamar de a "Identidade Suprema" de uma expressão emprestada ao esoterismo islâmico, cuja doutrina, sobre este ponto como sobre muitos outros, e apesar de grandes diferenças na forma, é no fundo a mesma que a da tradição hindu" (René Guénon, L ‘Homme et son Devenir selon le Vedanta, ed Trad., Paris, 1991, p. 41).

Esse texto é bem interessante. Nele Guénon afirma que o "Si" é igual ao Atmâ, que é igual a Brahma. Logo, o centro do homem seria a própria Divindade, já que duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si. O "Si" é uma partícula de Brahma no homem.

Caberia citar aqui a famosa frase do Upanishad: "Brahma é o teu âtmâ e teu âtmâ é Brahma". Em outras palavras, a partícula divina que está encarcerada no homem é a Divindade, e a Divindade é ela.

Como você vê, de novo, fica patente a Gnose hindu propalada por Guénon.

Considere ainda que Guénon, embora reconhecendo as diferenças de forma entre o Hinduismo e o esoterismo islâmico, julga entretanto que, no fundo, eles são a mesma coisa, isto é, a Gnose de sempre.

Guénon diz mais explicitamente ainda o que já estava bem claro:

"Assim, o que reside no centro vital, do ponto de vista físico, é o Éter; do ponto de vista psíquico, é a "alma vivente", e, até aí, nós não ultrapassamos o domínio das possibilidades individuais; mas também, e sobretudo, do ponto de vista metafísico, é o "Si" [Soi] principial e incondicionado. É portanto verdadeiramente o "espírito Universal" (Atmâ), que é, na realidade, o próprio Brahma, o "Supremo Ordenador"; e assim fica plenamente justificada a designação deste centro como Brahma-pura. Ora, Brahma, considerado deste modo no homem (e se poderia considerá-lo semelhantemente com relação a todo estado de ser), é chamado Purusha, porque ele repousa ou habita na individualidade (trata-se, digamo-lo de novo, da individualidade integral, e não somente da individualidade restrita à sua modalidade corporal) como em uma cidade (puri-shaya), porque puri, em sentido próprio e literal, significa ‘cidade’". (René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, p. 46-47).

Veja agora, como Guénon repete o que ensinava a antiga Gnose ou o antigo gnosticismo:

"Purusha, considerado como idêntico à personalidade, é por assim dizer uma porção (ansha) do Supremo Ordenador (o qual entretanto não tem partes sendo absolutamente indivisível e "sem dualidade"), como uma faísca em relação ao fogo (cuja natureza está aliás em cada faísca)"(René Guénon, L’Homme et son Devenir... p. 58).

"Faísca" do fogo! A "Fünkenlein" de Mestre Eckhart!

Exatamente a mesma expressão de Mestre Eckhart, para designar a partícula da Divindade em cada ser criado!

Da Gnose se poderia dizer: "plus ça change, plus c’est toujours la même chose ".

Não se pense, porém, que a partícula divina exista só no ser humano. Para a Gnose, ela existiria em todas as coisas do universo. Para o Vedanta e para Guénon da mesma forma:

"Convém aliás notar que (...) em razão da unidade fundamental do ser em todos os seus estados, deve-se considerar o centro de cada estado no qual se projeta o raio espiritual, como virtualmente senão efetivamente identificado com o centro do ser total; e é pelo quê um estado qualquer, o estado humano também tanto como qualquer outro, pode ser tomado como base para a realização da "Identidade Suprema’"(René Guérnon, L’Homme et son Devenir, p. 72).

Guénon sublinha que não se deve confundir o "Si" com o "Eu", porque o "Eu" está relacionado com a pura individualidade, com a corporeidade, com a manifestação, enquanto o "Si" é relacionado com Brahma, a Divindade. Haveria então oposição entre o ‘Si" e o "Eu", tal qual havia oposição entre a Divindade e o mundo das criaturas.

"Em vez dos termos "Soi" e "Moi", poder-se-ia empregar também os de "personalidade" e "individualidade", com uma reserva, entretanto, porque o "Soi", como nós o explicaremos um pouco mais adiante, pode ser ainda alguma coisa mais que a personalidade" (René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, ed. Traditionnelles, Paris, 1991, p.30).

Para Guénon: "O "Soi" é o princípio transcendente e permanente cujo ser manifestado, o ser humano por exemplo, não é senão uma modificação transitória e contingente, modificação que não poderia, aliás, de modo algum afetar o princípio, assim como o explicaremos em seguida" (...)"O "Soi" enquanto tal, jamais é individualizado e não pode jamais o ser, porque devendo ser sempre encarado sob o aspecto da eternidade e da imutabilidade que são os atributos necessários do Ser puro, ele evidentemente não é suscetível de nenhuma particularização, que o tornaria "outro que Si mesmo" (R. Guénon, op. cit., p. 31).

"O "Soi" é assim o princípio pelo qual existem, cada um em seu domínio próprio, todos os estados de ser; e isso deve se entender não só dos estados manifestos dos quais acabamos de falar, individuais como o estado humano ou supra individuais, mas também, se bem que a palavra "existir" se torne então imprópria, do estado não - manifestado, compreendendo todas as possibilidades que não são suscetíveis de nenhuma manifestação, ao mesmo tempo que as próprias possibilidades de manifestação em modo principial;(...)" (René Guénon, L’Homme et son Devenir p. 32).

"O "Soi", considerado em relação a um ser como acabamos de fazer, é propriamente a personalidade"(R. G., op. cit., p. 32) "Essa personalidade é uma determinação imediata, primordial e não particularizada do princípio, que é chamado em sânscrito Atmâ ou Parmâtmâ, e que nós podemos designar, por falta de melhor termo, como "espírito Universal (...)" (Réné Guénon, L’Homme et son Devenir, op. cit., p. 32).

Em tudo haveria uma partícula da Divindade (Brahma).

"Atmâ penetra todas as coisas, que são como suas modificações acidentais, e que, conforme a expressão de Râmânuja, "constituem de algum modo seu corpo (essa palavra devendo ser tomada aqui apenas num sentido puramente analógico), que elas sejam, aliás, de natureza inteligente ou não inteligente", isto é, conforme as concepções ocidentais, "espirituais" tanto quanto "materiais", porque isto, não exprimindo senão uma diversidade de condições na manifestação, não faz nenhuma diferença com relação ao princípio incondicionado e não manifestado" (René Guénon, L ‘Homme et son Devenir selon le Vedanta, p. 33).

Para Guénon, o Intelecto se identifica com o que ele chama de espírito (o pneuma dos gnósticos):

"A conclusão que resulta imediatamente de tudo isso é que, enquanto o ser esteja não só no estado humano mas em qualquer estado manifestado, individual ou supra individual, não pode haver para ele nenhuma diferença efetiva entre seu espírito e o intelecto, nem, em conseqüência, entre espiritualidade e intelectualidade verdadeiras."(René Guénon, Espírito e Intelecto in Mélanges, p.52).

Veja, Felipe, como Guénon usa intelectualidade como sinônimo de espiritualidade, já que, para ele, e para os "tradicionalistas", o Intelecto humano é o Espírito divino, o Logos. Em Guénon, há um tal abuso de termos usados equivocamente que se pode dizer que ele escreve em código... esotérico, e Olavo imita esse código como ele pode.

"O coração é o órgão do Conhecimento, é o órgão do amor espiritual, é o sopro do espírito, o pneuma, a causa de sua relação com a vida. No coração se oculta o princípio divino indestrutível, chamado luz pela Tradição hebréia. É o embrião imortal da Tradição chinesa, aquele ao qual a alma permanece unida durante algum tempo depois da morte" (Luc Benoist, El Esoterismo, p. 10).

Se fossemos citar os textos mais claramente gnósticos das obras de Guénon, seria preciso copiar praticamente livros inteiros. Creio, então, que estas citações já são suficientes para provar que, para Guénon, há uma partícula divina encarcerada em cada coisa criada.

Era o que queríamos demonstrar, neste III item proposto por Olavo.

Logo, Guénon é gnóstico.

Também na Gnose averroísta, se ensina doutrina semelhante a respeito do intelecto. Veja, segundo Etienne Gilson, o que afirmava Averróes (Ibn Rochd) sobre o Intelecto uno e divino.

"Assim, tocando o problema da unidade do intelecto agente, ele (Averróes) declara expressamente isto: per rationem concludo de necessitate, quod intellectus est unus numero, firmiter teneo oppositum per fidem. [Pela razão concluo que necessariamente o intelecto é um só, mas mantenho firmemente, pela fé, o oposto disto]. (Étienne Gilson, La Philosophie au Moyen Âge, Payot, Paris, 1976, vol I, p. 360).

Mais adiante, explica Gilson: "A descrição do mundo de Averróes é suficiente para mostrar que o Intelecto agente é aí na realidade uma substância inteligível separada, isto é, uma Inteligência agente, a mesma para todos os homens" (...) "Tudo o que há no indivíduo de eterno ou de eternizável pertence ao Intelecto agente de pleno direito e só é imortal por sua imortalidade" (E. Gilson, op. cit., vol I, p. 366).

Schuon, defendendo o mono psiquismo averroista, disse: "Toda a certeza - a das evidências lógicas e matemáticas notadamente - surge do Intelecto divino, o único que existe" (F. Schuon, Comprendre L’Islam p. 170). E mais adiante Schuon dirá que o "Intelecto é transpessoal" (F. Schuon, Comprendre L’ Islam, p. 173).

Por isso, Schuon também identifica potencialmente o verdadeiro sujeito humano ao divino:

"A gnose é caracterizada por recorrer à pura metafísica: a distinção entre Atma e Maya e a consciência da identidade potencial entre o sujeito humano, jivatma, e o Sujeito Divino, Paramatma. A via contém por um lado a 'compreensão', e por outro a 'concentração'; portanto, doutrina e método." (Frithjof Schuon, To Have a Center, p. 67-68, capítulo "Gnosis is Not Just Anything", em <http://www.frithjof-schuon.com/NA-gnosis-engl.htm>.).

Em Nasr, encontramos a mesma concepção gnóstica e hermética da composição tripartite do homem, incluindo nele um "espírito" de origem divina.

"Num primeiro nível de compreensão do microcosmo humano, portanto, deve-se levar em consideração a natureza tripartida do ser humano, que consiste em espírito, alma e corpo - os clássicos pneuma, psyché e hylé, ou spiritus, anima e corpus, das tradições ocidentais tanto greco-alexandrinas quanto cristãs - ao menos considerando o hermetismo cristão. A alma é o princípio do corpo, mas no ser humano 'normal' é ela própria subserviente ao espírito e atinge sua salvação e beatitude por meio de seu casamento com o espírito que é tema de tantos textos alquímicos." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, State University of New York Press, 1989, p. 172. O negrito é meu.)

E Nasr, tratando do Hinduísmo, diz que:

"Nesta tradição em que o conhecimento de Deus deveria ser propriamente chamado de autologia em vez de teologia..." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, University of New York Press, 1989, p.7). Portanto, conhecer-se seria conhecer o próprio Deus. Logo, o conhecimento "tradicional" identifica o homem a Deus.

Também Émile Boutroux - outro autor elogiado por Olavo, como um verdadeiro aristotélico - tem a mesma doutrina sobre a composição do homem e sobre o elemento divino que existiria nele: o "nous"

"O que diferencia o homem dos outros animais é o núus, que nele está unido à alma animal. (...) O núus é o conhecimento dos primeiros princípios. Ele não tem nascimento: é eterno." (Émile Boutroux, Aristóteles, Editora Record, Rio de Janeiro, 2000, p. 109-110.)

E se Olavo foi estudioso, admirador, seguidor de Guénon - e de Schuon, e de Nasr --, se ainda é seu defensor, por que não confessou que Guénon era gnóstico?

Qual o interesse dele em não deixar saber que Guénon é gnóstico?

E o próprio Olavo?

Será que ele discorda da concepção gnóstica de que o homem é composto de alma, corpo, e de um espírito, ou pneuma, divino?

Será que ele discorda da Gnose de Guénon e de Averróes, no que se refere ao intelecto?

Registre-se, para começar, que Olavo afirma uma estranha composição para o ser humano, e, além disso, ele exalta a alma humana, manifestando - ainda que só teoricamente - um certo desprezo pelo corpo:

"De modo que, nessa perspectiva, somente aquilo que é propriamente humano - isto é, caracterizado pelos três atributos que definem o homem: inteligência objetiva, vontade livre e linguagem (sic!) - pode ser reconhecido como pertencente à alma individual, tudo o mais provindo de um resíduo de animalidade no homem, resíduo este que é por sua própria natureza coletivo e impessoal.. A presença de quaisquer elementos animalescos ou diabólicos no homem deve ser vista sempre como uma intrusão, e o invasor deve ser expulso para que a alma individual recupere sua integridade." (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 63).

O texto é, de novo, ambíguo. Nele há um sabor de gnose pelo evidente desprezo do que há de animal no homem, isto é, pelo corpo, e pelo que dele deriva.

Aliás, muito estranha é a colocação da "linguagem" como elemento constitutivo da alma humana, quando a linguagem é uma propriedade e não elemento essencial do homem. Caso se levasse em conta, rigorosamente, o conceito de homem expresso por Olavo, os mudos não seriam homens. O que é evidentemente absurdo.

E Olavo afirma que essas três faculdades são comuns ao homem e a Deus:

"O homem realiza isso [ zelar pela ordem cósmica] pelo exercício das três faculdades que ele tem em comum com o próprio Deus: inteligência, vontade e linguagem (sic)". (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 27. O negrito é meu).

Deus, então, teria linguagem?

Repare, Felipe, que Olavo não está aplicando a palavra "linguagem" de modo antropomórfico para Deus, pois ele diz que a linguagem é uma faculdade divina e humana, comum a Deus e ao homem.

Mais, ele diz que tirou isso do Corão!

Todavia não informa seus leitores de que Surata do Corão ele tirou isso. Gostaria de saber em que Surata o Corão afirma isso.

"(...) os três fatores que segundo o Corão definem a condição humana, e que são a inteligência objetiva, (capaz de apreender o absoluto e o relativo), a vontade livre (capaz de optar pelo real e rejeitar o ilusório) e a linguagem lógica (capaz de abstração (sic),isto é de superar a particularidade e de elevar-se ao universal)." (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 59).

Então, o homem teria faculdades em comum com o próprio Deus?

Olavo não ressalva que está se exprimindo analogicamente (No sentido tomista da palavra analogia), de modo que, sem essa ressalva, o ter faculdades em comum com Deus faz do homem um ser divino. Exatamente como pretende a Gnose.

Olavo, também por isso, é gnóstico.

E note que, agora, por essa última citação, para Olavo, a abstração já não seria pecado...

Contradições olavianas.

Para ele, "A inteligência "aparece" na alma, mas não "está" na alma; ela "vê" o mundo e portanto (sic! Olavo deve ter traduzido o "pourtant" francês pelo termo "portanto", em vez de "entretanto". Coisas de auto didata distraído...) não "está" no mundo" (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, Nova Stella, São Paulo, 1986, p.17).

Noutro livreco, ele escreveu um texto que já citei, mas que convém aqui repetir para possíveis maus, ou mais lerdos e "esquecidos" entendedores:

"Pelo fato de que o homem habita simultaneamente muitos planos da realidade --sendo um ente tão corporal quanto o cálcio de seus ossos e tão espiritual quanto a inteligência divina que nele reside (...)" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 49).

Portanto, - e não "pourtant" - Olavo afirma que a inteligência que "habita" o homem, é divina. Portanto, - e não "pourtant"-- a inteligência não é um constitutivo da natureza humana, mas a Inteligência só habita no homem, e ela seria divina. Pensamento que torna Olavo tão gnóstico quanto Guénon.

Para Olavo, há, de fato, um "centro" divino, não só no homem, mas em todas as coisas:

"O centro representa não só o núcleo da consciência do observador como também o alcance universal, divino da consciência individual verdadeiramente centrada em si mesma e identificada com o universo"(Olavo de Carvalho, artigo O que é Afinal este Símbolo dos Símbolos? Mandala, Encontro do Homem com o Universo, in Planeta, no 59, Junho de 1977, p.54. O negrito é meu).

Nessa passagem há mais uma confissão da Gnose de Olavo: ele afirma que há na consciência humana algo de divino, o "centro", que identifica o homem com o universo e com Deus. Exatamente a doutrina da Gnose.

Nesse mesmo artigo, Olavo prossegue sua pregação gnóstica ao escrever:

"Não só o ser humano possui um centro, mas todas as coisas e seres, na medida em que existem, possuem uma presença, um aqui-agora, um "eu" (Esta é uma tese plenamente aceitável em termos de ciência moderna: os gnósticos de Princeton a endossam.) Assim, o centro da realidade universal está por toda a parte, onde quer que exista uma presença. "O centro tem um certo caráter paradoxal. Por um lado, é impossível definí-lo, porque o agora não se deixa agarrar. Por outro, ele é a única realidade concreta, já que todas as coisas que não estão no agora são simples ilações" (Olavo de Carvalho, artigo O que é Afinal este Símbolo dos Símbolos? Mandala... in Planeta, Junho de 1977, no59, p.54).

Desse modo, Olavo ecoa a doutrina de Guénon e do hinduismo de que em tudo há um Atmâ ou "centro", e que este Atmâ é a própria Divindade nas coisas, as quais, sem se considerar o Atmâ ou "centro", são puro nada.

 

VI - 4. A Libertação pelo Conhecimento

Para libertar-se do Mundo da manifestação, o homem deveria identificar-se com Brahma pelo conhecimento de que o seu "Si" - o seu Intelecto agente - é o próprio Atmâ, o próprio Brahma.

"A realização dessa identidade se opera pelo Yoga, isto é, a união íntima e essencial do ser com o Princípio Divino, ou, se se prefere, com o Universal" (René Guénon, L’Homme et son Devenir..., p. 41).

"A libertação não é, por conseguinte, para o nosso eu, mas para o nosso Si Mesmo [Self] que jamais chega a ser alguém. A libertação nos chega quando deixamos de ser nós mesmos como indivíduos e realizamos a identidade suprema"(Luc Benoist, El Esoterismo, ed. cit., p.26).

Essa união do Atmâ com Brahma se "realiza" quando o homem "efetivamente toma consciência do que é realmente e desde toda a eternidade"(R.G. op. cit. p. 42).

É pois pelo Conhecimento que o homem se liberta de seu estado atual e volta a ser a Divindade.

E isso é Gnose da mais clara.

Veja como é certa minha afirmação:

"Para aproximar-se da Presença invisível e escapar da ilusão de maya[ isto é, do mundo material] o hindu considera que nada supera a gnosis, o conhecimento da doutrina"(Luc Benoist, El Esoterismo, p. 25).

Esse Conhecimento Libertador não deve ser confundido com o conhecimento comum, racional, obtido pela abstração ou pelo estudo. É um Conhecimento de outra natureza, que Guénon chama de Conhecimento Intuitivo.

"Ao indicar as características essenciais da metafísica, dissemos que ela constitui um conhecimento intuitivo, isto é, imediato, opondo-se nisto ao conhecimento discursivo e mediato da ordem racional."(René Guénon, Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, p.183).

Essa intuição - diz Guénon - seria capaz de identificar sujeito e objeto:

"A intuição intelectual é mesmo mais imediata ainda que a intuição sensível, porque ela é além da distinção entre sujeito e objeto que esta última deixa subsistir; ela é tanto o meio do conhecimento como o próprio conhecimento, e nela sujeito e objeto são unidos e identificados" (René Guénon, Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, p.183).

Para Guénon, só esse conhecimento intuitivo é real e verdadeiro, e não o conhecimento racional, que seria imperfeito:

"O único conhecimento verdadeiro que existe é aquele que mais ou menos participa da natureza do conhecimento intelectual puro, o conhecimento por excelência. Qualquer outro conhecimento, sendo mais ou menos indireto, tem em suma apenas um valor simbólico ou representativo; não há outro conhecimento verdadeiro e efetivo além daquele que nos permite penetrar na própria natureza das coisas, (...) "(Idem p. 183).

E Guénon tira disso tudo a conseqüência absurda:

"A conseqüência imediata disto é que conhecer e ser são, no fundo, uma só e mesma coisa". (René Guénon, idem p. 183).

E aí está mais uma prova de que a identificação do conhecer e ser não é doutrina original de Olavo: ele a colou de outros gnósticos.

Na realidade, quando se afirma que conhecer é ser, se está equiparando o nosso conhecimento ao do próprio conhecimento divino. Somente em Deus é que o conhecer produz o ser.

Eis o que diz Santo Agostinho:

"Deus não conhece todas as criaturas espirituais e corporais porque elas existem, mas elas existem porque Ele as conhece" (S. Agostinho, De Trinitate, XV.O negrito é meu).

São Tomás, comentando exatamente esse texto que ele cita num sed contra, ensina:

"A ciência de Deus é a causa das coisas. A ciência divina é, em relação aos seres criados, o que a do artífice é em relação ao que ele fabrica.. A ciência do artífice é causa do fabricado, porque o artífice obra guiado por seu pensamento, pelo qual a forma que ele possui em seu entendimento é princípio de sua operação, como o calor é da calefação. Advirta-se, entretanto, que uma forma natural qualquer não é princípio de ação enquanto permanece em seu sujeito dando-lhe o ser, senão enquanto tem tendência a produzir o efeito.

Pois o mesmo acontece coma forma inteligível, que, enquanto está naquele que entende, tampouco é princípio de ação se não se lhe acrescenta tendência a produzir um efeito, coisa que faz com a vontade; pois, devido a que a forma inteligível possa representar uma coisa e sua oposta (já que um só é o conhecimento do que se lhe opõe), nunca produziria um efeito com preferência a outro se não o determinasse um apetite, como diz o Filósofo. Se, pois, não há dúvida que Deus produz as coisas por seu entendimento, já que seu ser é o seu entender, é necessário que a ciência divina seja causa das coisas enquanto leva adjunta a vontade, e por este motivo costuma-se chamá-la de "ciência de aprovação". (São Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.14, a. 8.O negrito é meu).

Fica então claro: é só em Deus que conhecer é ser.

Voltaremos a esse tema mais adiante.

 

VI - 5. Eco dessas Doutrinas em Olavo

Se Guénon diz que o Intelecto humano é o próprio Logos divino, e que, por isso, o conhecimento identifica sujeito e objeto; que conhecer é ser; Olavo repetirá, como eco, essas mesmas doutrinas absurdas.

Veja, agora, como se tornam claras certas frases misteriosas e ambíguas de Olavo, à luz da doutrina acima exposta sobre a existência de um núcleo divino no homem e em todas as coisas, e dessa conseqüente teoria do Conhecimento metafísico intuitivo:

"Desdobrado sob a dupla aparência de consciência e de presença, é o mesmo Logos, a mesma Inteligência que se manifesta dentro e em torno de nós, que dialoga consigo sempre que um homem vê uma pedra e a pedra é mostrada ao homem" (Olavo de Carvalho, artigo Lux in Tenebris, in Jornal da Tarde, 25 de Dezembro de 1997. O negrito é meu).

Isso elucida também a causa da estapafúrdia, romântica e gnóstica tese exposta por Olavo - que ele copiou de Guénon - de que há identidade entre sujeito e objeto, pois o Logos, o Verbo, estaria presente no homem e na pedra, sendo, no fundo, a única realidade nesses dois seres, de modo que, quando o homem vê a pedra, o Logos existente no homem dialoga com o Logos existente na pedra, e ele é a única realidade existente em ambos, fazendo identificar sujeito e objeto.

Para não dizer que essa é uma idéia isolada na doutrina de Olavo, cito outra passagem de seus livros:

"O que dá sua coerência e inteireza ao conhecimento é a unidade do sujeito cognoscente, mas não num sentido kantiano, pois não se trata aqui do sujeito individual - ou geral, que é uma simples extensão do individual - e sim do sujeito identificado e reintegrado ao Absoluto; é a unidade da inteligência mesma, não enquanto manifestação individual, mas enquanto participação no Intelecto Agente, à objetividade plena portanto, e, a fortiori (sic) à verdade mesma. A unidade do mundo repousa na unidade do Intelecto, ou Logos, que é a unidade de Deus". (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 63-64. Os itálicos em negrito são meus).

Creio que não é preciso sublinhar que esse texto é completamente averroísta e gnóstico.

Quer mais?

Vá lá.

"Vivemos, movemo-nos e somos dentro (sic) dessa inteligência, pois, suprimida a inteligência, já não temos identidade humana nenhuma, e não somos nada. Se somos (sic) a inteligência, não exercemos a inteligência (...)" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 64. Os negritos são do autor).

Esse aranzel só é compreensível numa visão gnóstica do intelecto.

Ainda em 1997, Olavo permanecia fiel a essa doutrina esotérica:

"Deus não é "exterior" à consciência: é o seu núcleo mais íntimo e pessoal" "Todo ser humano possui esse núcleo". "Descoberto sob a dupla aparência de consciência e de presença, é o mesmo Logos, a mesma Inteligência que se manifesta dentro e em torno de nós, que dialoga comigo sempre que um homem vê uma pedra e a pedra é mostrada ao homem"(Olavo de Carvalho, artigo Lux in Tenebris", in Jornal da Tarde, 25- XII- 1997).

Deus "...se manifesta com todo o seu esplendor na auto realização da consciência humana" (Olavo de Carvalho, Lux in Tenebris, in Jornal da Tarde, 25-XII-1997).

Veja mais esta citação:

"Mas é preciso que este homem de erudição seja ainda um homem de espiritualidade, marcado pela vocação de convergência de todos os conhecimentos na luz unificante do Intellectus primus, ou Logos, ou Verbo divino"(Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 21. Os negritos são do autor).

E não se pretenda dar a essa frase acima uma interpretação benevolamente cristã, porque, para Olavo, como já vimos, o Logos habita todos os homens, é a sua inteligência única.

Quer você uma confirmação disso?

"É possível, ainda, passar da imagem ao conhecimento direto, se formos mais fundo para dentro de nós mesmos, pois ‘nosso intelecto está conjunto à verdade eterna mesma’ "(Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 69)

(Olavo não diz de onde tirou as palavras que coloca entre aspas, e que traduziu mal do francês, pois deveria ter traduzido: "Nosso intelecto está unido à própria verdade eterna", e não como ele fez, traduzindo "conjoint" (unido) por "conjunto").

Como conseqüência dessa noção gnóstica de intelecto, considerado como a partícula da Divindade presente e aprisionada nas criaturas - Olavo vai dizer que até as flores conhecem a seu modo (Cfr. Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 26) --, surgirá a idéia de que o homem pode ter um conhecimento divino, não humano, direto, supra racional, intuitivo, libertador e absoluto. Esse Conhecimento é a Gnose.

Tal conhecimento, de ordem inteiramente superior ao conhecimento racional, normal, se daria por uma tomada de consciência da unidade do intelecto humano com o próprio intelecto divino, a qual seria uma iluminação divina direta e absoluta, uma verdadeira Revelação, no pleno sentido da palavra.

"O revigoramento periódico do contato entre a inteligência e o infinito, que é a sua origem, denomina-se revelação, quando desse contato surgem o rito e uma norma destinada a possibilitar esse contato para um grande número de pessoas; denomina-se intuição intelectual quando ocorre para um indivíduo em particular"(Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 19. Os negritos são do original).

A idéia de revelação expressa nesse texto é a mesma que se encontra na Gnose Modernista.

E pouco adiante, Olavo precisa que essa revelação é a Tradição esotérica, a qual, como já provamos, é a Gnose:

"Não há nem religião nem esoterismo de espécie alguma sem uma revelação. A revelação origina ao mesmo tempo as técnicas e disciplinas que conduzem à intuição, e as normas que conduzem à vivenciação simbólica e indireta do sentido. A estas duas instâncias dá-se o nome de esoterismo e de exoterismo, respectivamente. A possibilidade permanente de efetivar uma dessas duas formas de vida espiritual denomina-se Tradição. Toda Tradição remonta a uma revelação. (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 19. O negrito é do autor).

A revelação primordial poderia ser renovada individualmente por meio de experiências esotéricas, através da "intuição intelectual que constituía um espécie de revelação em miniatura, era esta a função das sociedades esotéricas, (...) "(O de Carvalho, A Crise do Catolicismo, in Planeta, Novembro de 1981, no 110, p. 26. O negrito é meu).

Olavo, repetindo ou colando Guénon, defende um modo de conhecimento que não é o racional, discursivo ou abstrativo. Para ele, o verdadeiro conhecimento seria intuitivo, divino e divinizador:

"Todo homem sente que no seu conhecimento dos objetos particulares há algo de irreal e de precário, e esse algo deriva tanto do caráter ao menos parcialmente 'mental', isto é, hipotético do seu conhecimento, quanto da limitação mesma do seu modo de existência." (Olavo de Carvalho, "Esboço de um Sistema de Filosofia", 21.09.97, p. 10, Parte VII, capítulo 24)

"Pela teoria da tripla intuição (V. O Olho do Sol), vemos que o ato intuitivo é, de fato, o único ato cognitivo que existe. Denomino a esta doutrina intuicionismo radical." (Olavo de Carvalho, "Esboço de um Sistema de Filosofia", 21.09.97, p. 9, Parte VI, capítulo 22. Itálicos e sublinhado do original; negrito nosso.).

Repare então, meu caro Felipe, a modéstia de Olavo ao dizer: "Denomino a esta doutrina intuicionismo radical", como se fosse ele o criador dessa doutrina, que ele colou de Guénon! Exatamente, da página 183 da Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus.

É muita ousadia.

O conhecer - e não o conhecimento - seria a única realidade do homem:

"A suprema realidade do ato do conhecimento não está nem no sujeito nem no objeto, mas no ato de conhecer. O sujeito e o objeto nada mais são, 'em si mesmos', do que potências desse ato. V. a aula 'Ser e conhecer'. Em decorrência, a realização do conhecimento é a única realidade do homem. E o dar-se a conhecer (não somente ao homem, é claro) é a única realidade do objeto." (Olavo de Carvalho, "Esboço de um Sistema de Filosofia", 21.09.97, p. 9, Parte VI, capítulo 21).

Portanto, a única realidade no mundo manifestado, seria não o conhecimento, mas o conhecer. Um verbo, uma ação, e não um substantivo, confirmando a idéia gnóstica de que o ser é fluxo.

Como vimos, esse conhecimento seria esotérico, e não transmissível discursivamente.

Tais práticas esotéricas não podem ser transmitidas por escrito : "Daí por que (sic), vista de fora e sem o apoio da disciplina iniciática (a qual, por razões óbvias, só pode ser dada pessoalmente a cada um, já que implica uma prática metódica, não podendo, por isso, ser exposta por escrito) (...) (Olavo de Carvalho, A Crise do Catolicismo, in Planeta, Novembro de 1981 no 110, p. 27).

Essa revelação obtida pelo Conhecimento intuitivo seria a Tradição - que, como vimos, é a Gnose - e estaria presente em todas as religiões: "Mas, qualquer que seja a religião de que se trate, revelação é o meio pelo qual a Verdade total, universal e definitiva se manifesta e se evidencia aos homens"(Olavo de Carvalho, op. cit. p. 33).

No livro Astros e Símbolos, Olavo diz que a intuição é o contrário da abstração, e que também pela intuição sensível se pode chegar a identificar a parte com o todo, a individualização máxima com a universalização, e que isto é a visão intelectual, que ele relaciona então com a Alquimia. (cfr. Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, pp 70-71).

Como os gnósticos em geral, Olavo desvaloriza a razão dando inteira predominância à inteligência. Ele chega a declarar que a abstração é um pecado.

"Mas a última etapa que absolverá o raciocínio analógico de seu último ranço de abstracionismo, é precisamente a forma suprema de raciocínio, forma essa tão superior a todas as outras, que já representa praticamente uma entrada no mundo da intuição e do conhecimento imediato. A essa forma de raciocínio, denominamos convenientia (...) Quando nosso intelecto chega a essa forma de raciocínio, podemos então começar a compreender a doutrina hindu dos "dias e noites de Brahma", ou a doutrina islâmica da "inspiração e expiração de Deus", como retroação de todos os mundos ao seu princípio, seguida de nova expansão multilateral de manifestação universal. Estamos, assim, às portas da metafísica pura, mas isto será assunto para outra ocasião" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 44. O negrito é do autor).

Repare, meu caro Felipe, que Olavo fala em "absolver" o abstracionismo por seu "ranço", indicando que ele considera a abstração como um verdadeiro pecado

Por isso, ele dirá que o verdadeiro conhecimento - o conhecimento "metafísico", isto é, a Gnose - não pode ser alcançado por meio racional.

"O termo "metafísica" não deve ser aqui entendido da maneira comum e corrente tal como a empregam os professores e manuais de filosofia, mas no sentido propriamente tradicional, que tem nas obras de René Guénon, Titus Burckhardt, Frithjof Schuon, Seyyed Hossein Nasr, Ananda Coomaraswamy e tantos outros, que teremos a ocasião de mencionar.

"Se a metafísica está relacionada ao conhecimento de princípios absolutos, por isso mesmo ela não pode ser realizada por meios unicamente racionais, uma vez que razão, ratio, significa proporcionalidade e, portanto, relatividade" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, pp. 53-54 O negrito é do autor).

Seria então por meio desse conhecimento superior que o homem libertaria seu self, o seu pneuma, do cárcere da matéria e da razão.

O conhecimento a que Olavo se refere é de fato um conhecimento divino e divinizador, e que dá a explicação de sua esotérica definição de Filosofia.

"Buscando-se a unidade do conhecimento dentro da consciência, encontra-se dentro dela algo que não é ela e que a funda naquilo que ela tem de mais íntimo. É a frase de Claudel: Deus é aquele que em mim é mais do que eu mesmo. Ou seja, esse interior do interior do interior da consciência é algo que a transcende. Seria aquele pontinho mais mínimo que ao mesmo tempo é o máximo. Este é um momento particularmente brilhante da filosofia porque é filosofia no sentido mais puro da coisa"(Olavo de Carvalho, aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, junho de 1998, Bloco 8, p. 15).

Isto não é absolutamente Filosofia.

É Gnose.

É esoterismo.

E Olavo o confessa, escrevendo:

"O esoterismo é a ciência universal por excelência, é o conhecimento e a realização da unidade (...)" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 11).

E o tal "pontinho" mais mínimo e máximo no fundo da consciência humana é o que os gnósticos chamavam de éon ou pneuma e que Guénon e o Hinduismo chamam de âtmâ.

E isso também é Gnose.

Vimos que Olavo identifica Tradição, Conhecimento, Sabedoria e Gnose, e que por isso mesmo ele escreveu:

"Para o sábio ou gnóstico, conhecer é ser, e vice versa" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 26. Os negritos são meus).

Para Olavo, então, ser sábio, ser "Filósofo"-- ainda que auto proclamado - é ser gnóstico.

Olavo se auto proclamou "Filósofo", e se considera sábio, porque ele é gnóstico.

Mas, se identificar sábio e gnóstico é dar um passo adiante para compreender o que Olavo deixa subentendido ao expor sua "Filosofia", ainda não progredimos muito na compreensão da afirmação de que todo ser conhece, e que ele só é ser por conhecer. E vice versa.

E ainda tem o vice versa!

De novo um vice versa, que põe o xoró - o incompreensível - no avesso.

Dizendo que conhecer é ser --e vice versa! --, Olavo só repete o que leu em Guénon e em Schuon. (Note-se, porém, que o "explicitador" vice versa é só do Olavo).

Como vimos, quando Olavo diz algo mais estranho, é porque o colou de um de seus mestres esotéricos. Veja essa, que ele confessa ter colado de Schuon.

"Por outro lado, a não-dualidade do conhecer e do ser requer que se entenda o próprio conhecer como um modo de ser. "Ser homem, é conhecer" escreve Frithjof Schuon [in De l’ Unité Transcendente des Religions, cap. IX.] (in Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 25. Os negritos são de Olavo).

E mais:

"Em clima islâmico, a Vontade divina tem em vista, não a priori o sacrifício e o sofrimento como garantias de amor, mas o desenvolvimento da inteligência deiforme (min Rûhl, "de Meu Espírito") determinada, ela, pelo Imutável, e englobando por conseqüência nosso ser, sob pena de "hipocrisia" (nifâq) pois que conhecer é ser; (...)" (F. Schuon, Comprendre l ‘Islam, p. 22).

É praticamente infalível: quando se encontra uma idéia abstrusa nos livros de Olavo, ela é cópia de seus mestres gnósticos. Observe ainda, meu prezado Felipe, que Schuon faz referência à inteligência como deiforme...

Então, para Olavo de Carvalho, - exatamente como para Guénon e Schuon --Conhecer é Ser. E esse conhecimento é que tornaria o homem Sábio ou Gnóstico.

Óbviamente essa tese de que "conhecer é ser" é esdrúxula, e causa perplexidade ao ser lida.

Como se pode entender isso?

É evidente que conhecer não é ser, pois a cadeira em que estou sentado é ser, e entretanto ela não conhece. Para Olavo, porém, ela conhece a seu modo, porque "envia e recebe informações". Todo ente conheceria a seu modo.

"(...) é que todas as modalidades de ser passam a ser entendidas como modalidades de conhecer; por exemplo, as formas existenciais dos entes - a forma dos planetas, dos anjos, das flores e bichos, entendendo-se forma, evidentemente em sentido amplo e estrutural, não restrito e visual - são também suas modalidades de conhecer" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p.26).

Para Olavo, então, a flor, os planetas, os bichos, de certo modo, também conhecem!

Conhecem?

Conhecem o quê?

Conhecem como?

O próprio Olavo vai nos explicar isso:

"De conhecer o quê? A Unidade mesma da qual derivam. Há, por exemplo, modalidades externas e internas de conhecer - a flor não tem interioridade auto consciente, e por isso seu conhecimento da Unidade, ou de Deus, consiste e reside na sua forma corporal (e na função correspondente). O homem tem interioridade auto consciente, e por isso seu conhecimento de Deus não está tanto na sua forma sensível, mas na sua consciência de Deus, e nas conseqüências existenciais que ele tora dessa consciência" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 26).

Então, todas as coisas conhecem "a Unidade de que derivam", isto é, a Divindade. E conhecem a Divindade da qual emanam através do atma, da partícula divina que haveria nelas e nos homens

Quando Guénon, Schuon, Olavo e outros "tradicionalistas" dizem que conhecer é ser, estão, na verdade, equiparando o conhecer humano ao divino. Estão afirmando que o intelecto humano é o próprio intelecto divino. E estão ensinando que é pelo conhecimento que o homem e todas as coisas se identificam com Deus, realizando a unidade das consciências na unidade do Conhecimento. E isso é o que afirma a própria Gnose. Isso é Gnose.

Com todas estas explicitações fica bem mais fácil agora entender o que Olavo quer dizer - deixando subentendido - quando define Filosofia como "a unidade do conhecimento na unidade da consciência, e vice versa".

"Filosofia", - ou sabedoria --para Olavo, é a Gnose. E é por isso que ele afirma que o sábio é o gnóstico.

 

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    Para citar este texto:
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MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/guenon5/
Online, 03/05/2024 às 14:54:51h