Religião-Filosofia-História



IV - Análise dos Quatro Itens da Gnose, segundo Olavo...(...a nível de enciclopédia popular)

1* Item da doutrina Gnóstica, segundo Olavo de Carvalho

 

Olavo assim formulou seu 1º item:

"1o O dualismo radical, ou oposição insanável entre o reino transcendente do puro espírito e este mundo da matéria grosseira" (Olavo de Carvalho, AVISO 2, 17-04-2001).

 

IV - 1. O problema do mal

Antes de examinar esse item, conviria tratar da causa mais profunda da Gnose, que é o problema do mal.

Vimos que uma pessoa que não consegue compreender o problema do mal, e que se revolta contra ele, engendra uma mentalidade gnóstica que vê o mal como ser. O fato de que as coisas do mundo sejam finitas, limitadas, contingentes, é considerado um mal em si mesmo. Cai-se na revolta metafísica que recusa o ser por analogia, e exige que tudo seja igual ao Ser absoluto, Deus. Ou que, se o mal é o ser, o bem seria o Não-Ser.

O homem, então, recusa tudo o que nele é prova de dependência, de limitação e de contingência: a matéria, a razão, a moral, e até o fato de que é ser por analogia, que é ser contingente. Ele imagina possuir, no fundo de si, algo de divino, que está nele encarcerado. A Divindade teria caído no mundo criado, (ou manifestado, na linguagem de Guénon).

Ora, Olavo escreveu:

"A psicologia astrológica (sic!?) é uma teoria do sentido do sofrimento e da raiz deste último nas polarizações que cosmogonicamente desdobram o orbe manifesto a partir da unidade do ser" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, Nova Stella, São Paulo, 1985, p. 65).

Que significa essa frase arrevesada?

A "psicologia Astrológica" seria a teoria que explicaria isto: que da unidade do ser (da Divindade) se desdobrou algo (saiu de, emanou da unidade) para o orbe manifesto, no cosmos polarizado (isto é, dialético, com dualidade) e que a raiz do sofrimento (da dor, do mal) provém exatamente deste desdobramento das coisas emanadas da Unidade divina.

E já essa apresentação da ‘Psicologia astrológica" (sic!?) identifica a doutrina de Olavo com a Gnose.

Examinemos, agora, o primeiro item da Gnose, tal como foi formulado - ou inspirado por uma "Barsa" qualquer? - pelo sr. O de C., comparando-o com o que diz a Gnose.

 

IV - 2. A Divindade: Nada que é Tudo. O Mundo: Tudo que é Nada

O primeiro item de O. de C., exposto por ele como sendo o primeiro princípio da Gnose, merece reparos.

O primeiro princípio da Gnose não é esse, e sim a concepção da Divindade como distinta de Deus. E, mais do que distinta, como oposta a Deus: se, a Divindade é Ser, Deus seria Não-Ser; se a Divindade é o Não-Ser, Deus é que seria o primeiro Ser.

É da concepção da Divindade como Não-Ser, como vazio ontológico, que derivará a oposição da Divindade a toda a ordem do Ser. Daí a primeira oposição entre Divindade e Deus, este considerado como o primeiro Ser.

A oposição entre a Divindade e o mundo criado provem de uma questão metafísica, no sentido tomista, e não no sentido em que a seita de Guénon toma o termo "Metafísica", isto é, a Gnose.

Vimos que a Gnose considera o ser contingente como sendo ontologicamente mau. Existir como ser limitado é que é o mal.

A Gnose, como já foi dito, recusa o ser por analogia: esse é o grande mal para ela. Daí, ela recusar a matéria. Para a Gnose, o ser criado é tido como nada, enquanto possui algo de criado, e, ao mesmo tempo, como sendo a própria Divindade, pela partícula divina que existiria encarcerada nele. Partícula essa à qual os hinduístas chamam de âtmâ, os sufis de "primum", os gnósticos antigos de éon, Eckhart de "Fünkenlein" (centelhazinha), e que Guénon chamava de "Si" (Soi).

Disso decorre a oposição entre o Não-Ser da Divindade e o mundo material, porque todo ele está colocado na ordem do ser por analogia.

Se a coisa criada é ser, a Divindade é Não-Ser; se a Divindade é Ser, então a criatura é não ser, a criatura é nada. Esta é a oposição entre a Divindade e o Mundo para a Gnose.

Por isso, a Gnose é conceituada também como "revolta anti metafísica", como sistema anti-metafísico, tomando-se o termo - é claro - em sentido aristotélico-tomista, e não guénoniano.

Não tenho, agora, tempo para tratar mais longamente deste problema, que deixo para outra ocasião, se for o caso. Agora, tratarei do mínimo necessário, para responder o que coloca o sr. Olavo de Carvalho.

Cuidarei então de expor apenas a questão da oposição da Divindade e do mundo criado, ou do cosmos manifestado, na linguagem guénoniana.

Para o gnóstico Basílides, a Divindade era "aquele que não é" (Cfr. S. Hipólito de Roma, Philosophumena, VII, 20-21, vol Ii, p.103)

Também na Cabala, - a Gnose judaica --a Divindade - o Ein Sof - que a Cabala distingue do Deus criador, é considerada, ao mesmo tempo, como Ser e como Nada. É o que se pode ver nos textos de Azriel de Gerona (Cfr. Gerschom Scholem, Les Origines de la Kabbale, Aubier- Montaigne, Paris, 1966, p. 447)

Scholem assim resume a questão:

"Ser e Nada não são senão diferentes aspectos da realidade divina que, no fundo, está acima do ser (est sur-être). Há um Nada de Deus que dá nascimento ao ser, e há um ser de Deus que representa o nada. A maneira pela qual as coisas existem no nada de Deus é uma; a maneira pela qual elas existem em seu ser é outra. Mas, tanto uma como a outra são modalidades do próprio Ein-Sof, que constitui a unidade inseparada de alguma coisa e do nada"(G. Scholem, Les Origines de la Kabbale, p. 448).

"(...) Henry Corbin escreveu em seu grande livro sobre Ibn ‘Arabi: há o "Deus que não é", o Deus desconhecido, e há o Deus revelado"(Christian Jambert, La Grande Réssurrection d’Alamut, Verdier, Paris, 1990. p. 218).

Portanto, o sufismo de Ibn ‘Arabi faz a mesma distinção entre a Divindade desconhecida, que não seria ser, e o Deus revelado que seria ser, tal qual a faziam os gnósticos, e tal qual a farão os cabalistas. E Olavo de Carvalho não cessa de fazer referências simpáticas ao sufismo.

Guénon, expondo a doutrina do Vedanta adwaita, usa quase as mesmas fórmulas:

"(...)diremos agora que enquanto o Ser é "uno", O Princípio supremo, designado como Brahma, pode somente ser dito "sem dualidade", porque, sendo além de qualquer determinação, mesmo do Ser, que é a primeira de todas, ele não pode ser caracterizado por nenhuma atribuição positiva (...)" (René Guénon, Introdução às Doutrinas Hindus, Ed. Ciências Tradicionais Michel F. Weber, São Paulo, 1989, p. 295).

"Brahma é Ishiwara enquanto princípio produtor de todos os seres manifestados"(R. Guénon, idem, p. 245).

A este Primeiro Principio única realidade de fato, se opõe "o mundo, entendendo por essa palavra, no sentido mais amplo de que seja suscetível, o conjunto da manifestação universal, não é distinto de Brahma, ou pelo menos, só se distingue dele em modo ilusório." (Idem p. 295).

E Schuon diz:

"Para o Islam, ou mais precisamente para o sufismo que é a medula do Islam, a doutrina metafísica - nós já o dissemos várias vezes - é que "não há realidade fora da única Realidade", e que, na medida em que somos obrigados a levar em conta da existência do mundo e de nós mesmos, "o Cosmos é a manifestação da Realidade"; os vedantinos diriam-- repitamo-lo mais uma vez - que "o mundo é falso, Brahma é verdadeiro" mas que "toda coisa é Atmâ" todas as verdades escatológicas estão contidas nesta segunda asserção". É em virtude da segunda verdade que somos salvos; conforme a primeira, nós nem "existimos" na ordem das reverberações da contingência"(F. Schuon, Comprendre L‘ Islam, p. 127-128).

E Guénon explica:

"(...) e assim o Mundo, entendendo por essa palavra o conjunto da manifestação universal, não pode distinguir-se de Brahma senão de modo ilusório, enquanto que, pelo contrário, Brahma é absolutamente "distinto daquilo que ele penetra", isto é, do Mundo, pois que não se Lhe pode aplicar nenhum dos atributos determinativos que convém a este, e que a manifestação universal toda inteira é rigorosamente nula em face à Sua Infinitude." (René Guénon, L’ Homme et son Devenir selon le Vedanta, Ed. Traditionnelles, Paris, 1991, p. 89-90).

Para Guénon - mestre admirado por Olavo, e por cuja defesa ele iniciou este debate, "[...] toda sistematização é absolutamente impossível para a metafísica pura, à vista da qual, tudo o que é de ordem individual é verdadeiramente inexistente" (René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, Ed Traditionnelles, Paris, 1991, p. 15. O negrito é meu).

"A multiplicidade existe segundo seu modo próprio, desde o fato de que ela é possível, mas este modo é ilusório, no sentido que nós já precisamos (o de uma "menor realidade"), porque a própria existência dessa multiplicidade fundamenta-se sobre essa unidade da qual ela saiu e na qual ela está contida principialmente"

"Encarando deste modo o conjunto da manifestação universal, pode-se dizer que, na própria multiplicidade de seus graus e de seus modos, a "Existência é única", conforme uma fórmula que tomamos do esoterismo islâmico;(...) "

"Pode-se portanto dizer que o Ser é um, e que ele é a própria Unidade, em sentido metafísico, aliás, e não no sentido matemático, porque estamos aqui bem além do domínio da quantidade: "(René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, pp. 64-65).

Também Schuon repete esta doutrina ao escrever: "Brahma não está no mundo", mas "toda coisa é Atmâ"; Brahma é verdadeiro, o mundo é falso" e : "Ele (o libertado, mukta) é Brahma.". "Toda a Gnose está contida nessas enunciações, como ela está contida também na Shahadah ou nos dois testemunhos, ou ainda nos mistérios crísticos"(F. Schuon, Comprendre l ‘Islam, p. 130. O negrito é meu).

E repare, meu caro Felipe, como Schuon admite e reconhece que tanto a doutrina brahmânica como a do Sufismo islâmico contém toda a Gnose. Só não se pode admitir sua interpretação dos "mistérios crísticos".

Guénon também despreza o indivíduo enquanto tal, valorizando-o apenas por sua potencialidade de atingir a divinização, de se unir ao Absoluto:

"O indivíduo humano, com efeito, é ao mesmo tempo muito mais e muito menos do que geralmente se pensa no Ocidente; ele é muito mais em razão de sua possibilidades de extensão indefinida para além da modalidade corporal, (...); mas ele é também muito menos, já que, bem longe de constituir um ser completo e suficiente em si mesmo, ele não é mais do que uma manifestação exterior, uma aparência fugidia revestida pelo ser verdadeiro, e pelo qual a essência deste não é de forma alguma afetada em sua imutabilidade" (René Guénon, A Metafísica Oriental, ed Ivpiter, p. 40. Tradução de Olavo de Carvalho).

Nessas frases, Guénon afirma que o homem, enquanto indivíduo, não é nada, e que seu verdadeiro ser é imutável. Que o Homem é capaz de ultrapassar a sua corporeidade, que o individualiza, e atingir a divinização pela união com o Absoluto.

Olavo não só traduziu este texto gnóstico de Guénon, ele repete essa doutrina escrevendo:

"Sem dispensar os meios racionais - e, ao contrário, fazendo deles uma utilização cujo rigor deixa para trás tudo aquilo a que a filosofia profana está acostumada - a metafísica requer, além deles [dos meios racionais], uma "centralização" do sujeito cognoscente no único ponto-chave em que ele, criatura contingente, participa do Absoluto, e em seguida uma "ascenção’ na qual ele abandona sua dimensões puramente individuais e se "reintegra" no Absoluto. Essas duas etapas correspondem respectivamente àquilo que a tradição chinesa denomina o estágio do "Homem Verdadeiro" - ou seja, a plenitude reconquistada do estado humano - e o estágio do "Homem Transcendente" que já é propriamente uma "divinização" e, portanto, uma ultrapassagem dos limites humanos".(Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, Nova Stella, São Paulo 1986, p.54).

Este trecho de Olavo seria suficiente para caracterizá-lo como gnóstico. E não se iluda quem julgar que ele aí - ao contrário da Gnose - alude ao uso de meios racionais, que ele mesmo, pouco além, afirma insuficientes. Não haja ilusão, porque, poucas linhas abaixo, Olavo afirma com todas as letras que o meio de divinização é um Conhecimento superior ao racional, que é o obtido pelas ciências comuns:

"Esse duplo movimento, de centralização e ascenção, está representado no simbolismo da cruz (René Guénon, Le Symbolisme de la Croix, Paris, Vega, 1931), e se realiza unicamente pelo conhecimento --embora num sentido muito mais efetivo do que aquele que a apalavra "conhecimento" evoca hoje" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 54).

Veja bem, meu caro Felipe, como Olavo atribui a divinização do homem a um Conhecimento superior ao conhecimento comum, isto é, à Gnose, conhecimento absoluto e salvador, porque divinizador.

Guénon chamou o Primeiro Princípio de "Principial".

Ora, Olavo escreveu:

"Principial", termo cunhado por René Guénon. (La Crise du Monde Moderne, Paris Gallimard,1930), para designar o que se refere ao mundo dos princípios eternos e imutáveis, por oposição ao mundo da manifestação" (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, nota 3 do cap. VII, p. 91. O negrito é meu.).

Então temos aí bem explícito o primeiro item constitutivo da Gnose, tal como foi apresentado por Olavo de Carvalho: para Guénon e para Schuon - pelo menos - há oposição entre a divindade e o mundo manifestado.

Ele não pode deixar então de admitir que Guénon é gnóstico, pelo menos quanto ao primeiro item que ele mesmo apresentou.

Nessa nota, acima citada (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, nota 3 do cap. VII, p. 91), Olavo não faz a menor restrição ou crítica à doutrina de Guénon sobre a oposição entre o mundo da manifestação e o não manifestado.

Será que em outras passagens ele refuta e recusa essa oposição?

Noutra nota, em outro de seus livros, Olavo afirma:

"O neologismo "principial" (em francês principial, principielle) foi cunhado especialmente por Guénon para designar aquilo que se refira à ordem dos princípios eternos e imutáveis, e não ao mundo das manifestações. O termo pode ser empregado de modo relativo ou absoluto. Sob o prisma absoluto, está claro que principial, propriamente, é só o princípio único, eterno e imutável, anterior, de certo modo, ao Ser. Sob o prisma relativo pode-se dizer que o Ser, em geral, é principial em relação à natureza, que é apenas uma de suas manifestações, e que a natureza é principial em relação à ordem sensível" (Nota 16 de Olavo de Carvalho, in René Guénon, A Metafísica Oriental, ed Ivpiter, São Paulo, 1981, nota 16, p. 53).

Nessa nota se afirma - sem qualquer recusa ou restrição - que o "Principial", sob o prisma absoluto, é, de certo modo, anterior ao Ser.

Acreditava, então, Olavo que o "Principial" não era Ser?

Já vimos, porém, que para O. de C., pelo menos mais recentemente - porque ele muda "d’accento non di pensiero"...-- a Divindade é Ser, e que, nisso, ele discorda de Guénon. Entretanto, noutra passagem, ele diz que poder-se-ia chegar a um acordo nessa questão chamando o Principial de Supra Ser, em vez de Não Ser (Ver p. 52 deste trabalho).

Outro problema está em saber se admitindo, como faz Olavo, que a Divindade - o "Principial"--- é Ser, se ele admite também que as coisas que constituem o universo sejam seres análogos.

Nesse mesmo livro, o sr. O. de C. afirma: "O postulado de objetividade que funda a ciência moderna estabelece a existência de um mundo material objetivo, acessível ao conhecimento pelos sentidos e regido por leis matemáticas, ou matematicamente expressáveis."

"O enfoque tradicional concordaria com o caráter matemático do mundo objetivo --que aliás não é uma invenção moderna, mas uma herança do conhecimento tradicional, por exemplo através do pitagorismo. O que não poderia é concordar com a outra parte da hipótese de base, que tende - ora de maneira sutil, ora ostensiva - a identificar "objetividade" com "sensorialidade" ou "materialidade" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, ed cit., p. 57).

A idéia de que a objetividade não se identifica com a materialidade é correta. Deus, os anjos, a alma não são materiais, mas são seres objetivos, reais. Se ficasse nisso, Olavo teria razão.

Contudo, ele considera como objetivos, embora não materiais também os centauros e outros seres representados no Zodíaco.(Cfr. Olavo de Carvalho. Astros e Símbolos, p. 60).

Por outro lado, em outros textos, Olavo adere à doutrina de Guénon de que o mundo material não é real - portanto, que o mundo material não seria objetivo - a afirmação dele acima citada deve ser vista com certo cuidado. Deve ser matizada e considerada no conjunto do sistema exposto por Olavo.

Olavo, como os demais pensadores "tradicionais", não considerava, pelo menos quando escreveu esse livro Astrologia e Religião, os seres materiais como objetivos. Como os demais seguidores de Guénon, Olavo julgava, então, os seres materiais como realmente ilusórios. E, portanto, o mundo material, sendo ilusório, se oporia à Divindade concebida como único Ser.

Veja este outro trecho do Sr. Olavo de Carvalho no qual ele nega a objetividade do ser criado ou manifestado:

"Vivemos, movemo-nos e somos dentro dessa inteligência [divina], pois suprimida a inteligência, já não temos identidade humana nenhuma, e não somos nada."(Olavo de Carvalho, Astros e Religião, ed. cit. p. 64). Texto esse que o identifica com a Gnose sufi.

Está aí a prova de que, para Olavo, o mundo material não era, então, de fato, objetivo. O mundo seria objetivo apenas enquanto nele há, aprisionado na matéria, o Intelecto divino

 

IV - 3. A Divindade e o Mundo na Gnose Sufi

Também para a Gnose sufi há essa mesma oposição entre Allah e o mundo criado, pois se considera Allah como Ser, os seres criados são puro nada, somente existindo pelo que neles existe da Divindade, aquilo que Ibn Arabi chama de "proprium", e que eqüivale ao âtmâ da Gnose hinduísta.

Vejam-se algumas citações para comprovação.

"Porque aquele que pretende que algo distinto dEle [Allah] possa existir - pouco importa que seja por si mesmo, ou por Ele, ou nEle - que possa desaparecer ou extinguir-se, que pode extinguir-se a extinção também, etc, etc. tal homem entra em um círculo vicioso. Tudo isso é idolatria e nada tem a ver com a Gnose. Tal homem é idólatra e não conhece nada de Allah, nem de si mesmo. Se se pergunta por que meio se chega a conhecer o Si mesmo, isto é, o "proprium", a alma, e a conhecer a Allah, a resposta é : a via até estes dois conhecimentos está indicada com essas palavras: Allah é, e o nada com Ele. Ele é agora tal como era" (Ibn Arabi, Tratado da Unidade).

"Então Allah lhe permitiu ver que tudo o que não é Ele [Allah], incluindo o "si mesmo" do homem, não tem nenhuma existência. E viu que as coisas, tais como são: quero dizer, que viu que as coisas são a "quididade" de Allah fora do tempo, do espaço e de todo atributo"(Ibn Arabi, op. cit.).

‘Verás que não é que Allah tenha criado todas as coisas, senão que tanto no mundo invisível, quanto no mundo visível não há senão Ele, porque em nenhum dos dois mundos há um só ponto de existência própria."(Ibn Arabi, op. cit.).

"Na realidade, o distinto dEle não existe"(Ibn Arabi, op. cit.).

"A substância de teu ser ou de teu nada é a Sua Existência. Quando vires que as coisas não são distintas de tua existência e da Sua [Existência], e quando possas ver que a substância de Seu Ser é o teu ser, e que teu nada nas coisas, sem ver nada que seja com Ele ou nEle, então isto significa que conheces a tua alma, teu "proprium". Quando se conhece o Si mesmo de tal maneira, ali está a Gnosis, o conhecimento de Allah, mais além de todo erro, dúvida ou combinação de algo temporal com a eternidade, sem ver na eternidade, por ela, junto a ela, outra coisa que a eternidade" (Ibn Arabi, op. cit.).

Daí a recusa explícita da analogia do ser:

"Pode-se falar de união entre dois ou mais, e não quando se trata de uma coisa única. A idéia de união ou de chegada comporta necessariamente a existência de duas coisas ao menos, análogas ou não. Se são análogas, são semelhantes. Se não são análogas, formam oposição. Porém, Allah - que Ele seja exaltado - está isento de toda semelhança, assim como de todo rival, contraste ou oposição." (Ibn Arabi, Tratado da Unidade).

Portanto, para o sufismo de Ibn Arabi, as coisas criadas são nada e, ao mesmo tempo, possuem a quididade, isto é a substância de Allah.

"Quando tiveres conhecido o que é verdadeiramente o teu "proprium", ter-te-ás desembaraçado do teu dualismo e saberás que não és distinto de Allah"(Ibn Arabi, op. cit).

"Desde o momento em que este mistério tenha sido desvelado a teus olhos-- que não és distinto de Allah - saberás qual seja o fim de ti mesmo, que não tens necessidade de aniquilarte, que jamais deixastes de ser, e que não deixarás jamais de existir..."(Ibn Arabi, op. cit.).

 

IV - 4. Panteísmo ou Gnose em Guénon?

Há uma questão colateral que convém a analisar.

Essa concepção da Unidade e da Unicidade do Ser poderia levar alguém a pensar que, com essa unicidade, se aceitaria o Panteísmo, isto é, que tudo é Deus, inclusive a matéria

Engano: os autores que analisamos afirmam que os seres criados são de fato ilusórios. Rejeitam assim o panteísmo. E, realmente, Guénon recusa expressa e taxativamente o panteísmo:

Para Guénon há unidade do Ser, o que, à primeira vista, levaria a dizer, a quem examinasse a questão superficialmente, que Guénon defenderia um panteísmo crasso, o que está bem longe do que ele pensava, pois ele coloca uma diferença fundamental entre o "Principial" e o mundo das criaturas (o conjunto do manifestado, para usar o neologismo de Guénon), este mundo é ilusório e não metafisicamente real.

Isso, que dizemos, é confirmado tanto pelas citações que já demos de Guénon, como por um admirador e discípulo dele, Jean Tourniac:

"De resto, jamais Guénon pretendeu que o Cosmos manifestado, fosse Deus! Tudo está em Deus, mas nada é Deus senão Ele. Jamais a metafísica, em virtude de seu próprio nome, poderia confundir o mundo manifestado com seu Principio Eterno"

"Nós veríamos essa confusão do cósmico e do divino... mais nos evolucionistas católicos do que em Guénon, e nós não compreendemos como se pode acusar Guénon de gnosticismo e de idealismo platônico, e, ao mesmo tempo, de "cosmolatria". [de panteísmo].

"De outro lado, seria difícil recusar a asserção de Guénon sobre as forças cósmicas atrás das quais existe "alguma coisa de outra ordem das quais elas não são realmente senão o veículo e como a aparência exterior, de entidades psíquicas" (Jean Tourniac, op. cit. p. 94).

De fato, Guénon não pode ser dito panteísta, e sim gnóstico.

"Brahma é absolutamente distinto do mundo, pois que a ele não se pode aplicar nenhum dos atributos determinativos que convém ao mundo, toda a manifestação universal sendo rigorosamente nula em vista de sua infinitude; e observar-se-á que tal irreprocidade de relação acarreta a condenação formal do "panteísmo", bem como de todo "imanentismo" (René Guénon, Introdução às Doutrinas Hindus, Ciências Tradicionais, Michel F. Veber, São Paulo, 1989, p. 295).

Guénon não identifica a Divindade e o Mundo das "manifestações, pois diz que este é ilusório e que os âtmâs que estão nos seres individuais do mundo manifestado devem se libertar para retornar ao principial, a Brahma. E isto é Gnose.

Pelo contrário, ele sempre afirmou que o universo material é metafisicamente ilusório, e que havia oposição entre o mundo manifestado na grosseria da matéria e o Principial, mas que há Unidade de Ser, porque em tudo o que é manifestado "está presente", há algo da Divindade - âtmâ - o que lhe permitia afirmar que só havia, de fato, unidade de ser. E isso é exatamente o que ensina a Gnose.

Há, pois que distinguir o Panteísmo, que identifica metafisicamente a Divindade e o Cosmos - daí a Cosmolatria - e Gnose, que opõe o Cosmos (ilusório) à Divindade (única Realidade), ao mesmo tempo que afirma que há algo substancialmente divino, aprisionado na matéria: o âtmâ, ou o "Si".

Olavo de Carvalho, repete de modo menos inteligente, essas mesmas doutrinas de Guénon., dizendo que:

"Deus não está acima de nós no sentido em que o capitão está acima do tenente" (Olavo de Carvalho, artigo "Verdade sem dono", in Jornal da Tarde, 2- X- 1997).

Portanto, para ele, Deus não poderia mandar no homem, no que ele concorda com o ex Frei Boff, e com Frei Betto.

De modo que, em Guénon, e em Olavo de Carvalho, não há apenas "Sabor de Gnose" - como até alunos dele reconheceram - mas há mais: há a própria Gnose. Eles são gnósticos: o primeiro, mais elevado; o segundo mais grosseiro e mais mal ajambrado.

Essa Unidade do Ser - entendida de modo gnóstico e não panteísta - é própria também à doutrina do shiismo e do sufismo, que Guénon adotou explicitamente, e Olavo semi ocultamente. (Lembre-se que ele confessou ter tido uma "experiência "pessoal na seita de Idries Sha).

Henry Corbin explica essa Unidade do Ser - defendida por Guénon - muito clara e explicitamente, em sua obra sobre o Islam Shiita, na Pérsia.

"A fórmula disso é: La ilâha illâ’llâh (não há Deus senão Deus). E há o Tawhid ontológico (Tawhid wojûdi): é o Tawhîd esotérico (Tawhîd bâtin), aquele no qual concordam os Iniciados (os "Amigos de Deus", os Awliyâ) convidando os homens a considerar o ser em seu ato absoluto de ser, isto é, sem responsabilidade [ em francês absout) pelas determinações que ele atualiza, porque não pode haver outro ser senão o ser. Compreender o sentido esotérico deste versículo: "Tudo o que existe sobre a terra se aniquila (fânin), somente persiste a Face de teu senhor em sua glória e em sua majestade"(55; 26-27) - é compreender a única realidade do ser único. A fórmula disto é; Laysa fi’l wojûd siwâ’llâh (só Deus é ser). Falando de monismo, evitemos criar equívocos com certos sistemas ocidentais modernos que nada tem a ver com o que tratamos aqui; seria preciso antes falar de théo - monismo, ou mesmo de théomonadismo." (Henry Corbin, En Islam Iranien, vol II, p. 104).

Fica então claríssimo: tanto em Guénon quanto no esoterismo islâmico e hinduísta, não há identidade da Divindade com o Mundo, o que seria panteísmo, mas haveria Unidade e Unicidade do Ser espiritual divino, pela presença substancial de algo da Divindade no ser manifestado, o âtmâ, o éon, aquilo que Eckhart chamava de Fünkenlein, a chamazinha divina aprisionada no fundo da alma humana, o que não é panteísmo, e sim, Gnose (Teo - Monismo ou Teo monadismo, como propõe Corbin.

Que essa doutrina é a da Gnose, é confirmado pelo mesmo Henry Corbin:

"Somente aquele que se volta em direção ao ser (absout) livre de toda determinação que o entrave, e compreende que "não há senão Deus que seja ser", somente este aí escapa ao shirk secreto, inconsciente, professa a Unidade no verdadeiro sentido, [somente esse aí] é um ‘ârif, um gnóstico" (Henry Corbin, op. cit. Vol III, p. 195. O negrito é meu. Os itálicos são do original).

De tudo isso, portanto, se conclui que a doutrina de Guénon é gnóstica, e que Guénon é um ‘ârif, um gnóstico.

E, na medida em que Olavo de Carvalho defende, repete, e não recusa essa doutrina da unicidade do ser, pelo contrário, a afirma dizendo que há "identidade e unicidade do Ser" (Cfr. Astrologia e Religião, Nova Stella, p.1986, p. 17) e de oposição do mundo manifestado em relação à Divindade (Cfr. Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, nota 3 do cap. VII, p. 91), nessa medida, ele também é um gnóstico.

 

IV - 5. Oposição entre a Divindade e o Mundo material

No Item I da doutrina gnóstica citado por O de C., se diz que a oposição entre a divindade e o mundo se dá por causa da matéria "grosseira".

Caberia perguntar: haveria outra matéria não-grosseira, uma matéria subtil? Veremos isso, mais adiante.

Ora, Guénon tem uma concepção pessimista e depreciativa da matéria enquanto tal, pois diz: "...porque a matéria é essencialmente multiplicidade e divisão, e é, por isso, digamos de passagem, que tudo o que dela deriva só pode engendrar lutas e conflitos de todas as espécies, entre os povos como entre os indivíduos" (René Guénon, A Crise do mundo Moderno, ed. Veja, p. 73).

Ele opõe também o mundo das manifestações ao mundo "Principial", pois enquanto considera este o da imutabilidade, o mundo das manifestações - o Cosmos - é o do devir. Para ele toda a criatura é puro devir, sem ter nada de ser propriamente dito, sem ter nada de ontológico ou metafísico no sentido comum deste termo:

"(...) natureza" e "devir" são, na realidade sinônimos" (René Guénon, A Crise do Mundo Moderno, p. 99). Por isso, ele notará que Dante colocou Lúcifer no centro do globo terrestre: "(...) essa mesma tendência a que acaba de se fazer referência é também, poder-se-ia dizer, a tendência "individualizante", aquela segundo a qual se efetua o que a tradição judaico-cristã designa como nome de "queda" dos seres que se separaram da unidade". [O que é uma concepção tipicamente gnóstica e não cristã, dizemos nós]. E em nota a esta frase, Guénon escreve: "É por isso que Dante coloca a residência simbólica de Lúcifer no centro da Terra, isto é, no ponto onde convergem de todas as partes as forças da gravidade; é, neste ponto de vista, o inverso do centro da atração espiritual ou "celeste", que é simbolizada pelo Sol na maior parte das doutrinas tradicionais"(René Guénon, A Crise do Mundo Moderno, p. 121, nota 1).

 

IV - 6. A Divindade e o Mundo na Gnose de Mestre Eckhart

Essa oposição da Divindade incognoscivel, oculta (Não-Ser) e de tudo o que compõe o mundo - conjunto dos seres manifestados, --- apareceu também nitidamente na Gnose de Mestre Eckhart.

"Antes mesmo que houvesse ser, Deus agiu; Ele fez o ser quando o ser não existia. Mestres de espírito frustro dizem que Deus é um puro ser, Ele está mais acima do ser que o mais elevado dos anjos está acima de uma mosca. Eu falaria falsamente também se eu chamasse Deus um ser tanto quanto se eu dissesse que o sol é pálido ou negro. Deus não é nem isto nem aquilo. E um mestre diz: Aquele que crê conheceu Deus, e, se conhecesse qualquer outra coisa, não conheceria Deus. Mas quando eu digo que Deus não é um ser e que Ele está acima do ser, eu, dizendo isso, não lhe contestei o ser, mas, ao contrário, eu lhe atribui um ser mais elevado" (Mestre Eckhart, Sermão Quasi Stella Matutina, in Sermons, Introdução e tradução de Jeanne Ancelet-Hustache, ed. du Seuil, n*9 p. 101).

E mais ainda dizia Mestre Eckhart:

"O ser é verdade? Se se interroga tal ou tal mestre, ele diria: "Sim!". Se me tivessem interrogado, eu teria respondido: "Sim!" Mas agora eu digo: "Não!", porque a verdade é assim super acrescentada (...) e se Ele não é nem bondade, nem ser, nem verdade, nem Um, que é Ele então? Ele é o Nada" (Mestre Eckhart, Sermão: n* 23, ed. cit. p. 21).

Desse modo, Deus enquanto relacionado com as criaturas é Ser, e é Ser de todas as coisas. Mas este Deus-Ser é apenas o adro da divindade, de Deus em si mesmo, que não seria ser, mas puro intelligere (cfr. Vladimir Lossky, Théologie Négative et Présence de Dieu chez Maître Eckhart, Vrin, Paris, 1973, pág. 213).

"(...) se Deus é ser, a criatura é nada; se a criatura é ser, Deus é superior ao ser e infinitamente não semelhante de tudo quanto existe"(V. Lossky, op. cit. p. 296).

Será preciso lembrar que Eckhart foi condenado pela Igreja como herege? (Cfr. Denziger, 501 a 529).

E Olavo de Carvalho, como Guénon e Tourniac, aponta Mestre Eckhart como um dos elos da corrente esotérica e "tradicionalista" do cristianismo.

Também Eckhart aceitava que a Divindade fosse Ser, desde que, então, se considerasse as criaturas como Não-Ser. A nota gnóstica está na oposição radical e absoluta entre a Divindade e o Universo. Também o gnóstico Bhagavad Gîta aceita que a Divindade possa ser considerada ou como ser, ou como Não Ser:

"Ó Infinito, senhor dos deuses, em quem o mundo habita, tu, imperecível, o ser e o Não-Ser, e aquilo que está além"(Bhagavad Gîta, XI, 37).

Veja, meu caro Felipe, que o Bhagavad Gîta coincide com o pensamento de Mestre Eckhart, e que, tanto Guénon quanto Olavo de Carvalho podem se apoiar, ambos, nesse mesmo texto do Gîta.

Aliás, um "historiador" biógrafo de Guénon, tido como católico ou pelo menos como cristão, Jean Tourniac, testifica que a metafísica de Eckhart é muito semelhante às doutrinas orientais e ao budismo Zen:

"É verdade que Eckhart não hesita em expor publicamente elementos doutrinários que estão singularmente próximos das perspectivas orientais, (..)

"(...) comparou-se o ensinamento de Mestre Eckhart ao do budismo Zen, e há muito de verdade nessa comparação" (Jean Tourniac, Propos sur René Guénon, Dervy - Livres, Paris, 1973, p.41).

O que torna a doutrina de Eckhart semelhante às doutrinas orientais é que todas elas são variações da Gnose.

E Schuon - que é outro dos gnósticos a quem Olavo diz ser devedor doutrinariamente - que diz Schuon desse problema?

"Ora, entre os conceitos inacessíveis ao exoterismo - [às religiões positivas] ---, o mais importante é talvez, pelo menos em certo sentido, o da gradação da Realidade Universal: a Realidade afirma-se por graus, sem deixar de ser una, achando-se os graus inferiores dessa afirmação absorvidos nos graus superiores, por integração ou síntese metafísica. É a doutrina da ilusão cósmica: o mundo não é apenas mais ou menos imperfeito ou efêmero, é sim desprovido de existência face à Realidade absoluta, pois a realidade do mundo limitaria a de Deus, o único que "é". Mas o Ser em si, que mais não é que o Deus pessoal, é por sua vez ultrapasssado pela Divindade impessoal ou suprapessoal, o Não-Ser, de que o Deus pessoal ou o Ser é apenas uma primeira determinação a partir da qual se desenvolvem todas as determinações secundárias que constituem a Existência Cósmica. Ora, o exoterismo não pode admitir nem a irrealidade do mundo, nem a realidade exclusiva do Princípio Divino, nem sobretudo, a transcendência do Não-ser em relação ao Ser, que é Deus"

(Frithjof Schuon, A Unidade Transcendente das Religiões, Dom Quixote, 1991, pp 49-50. Os negritos são meus).

Veja, meu caro Felipe, como neste texto de Schuon - um dos mestres preferidos de Olavo-- fica patente a doutrina de oposição entra a Divindade (Nada, Não-Ser), e Deus (Ser), entre a Divindade (Única Realidade) e o mundo (ilusório).

Guénon repete essa mesma doutrina ao dizer:

"O Mundo, entendendo por essa palavra o conjunto da manifestação universal, não pode distinguir-se de Brahma senão de modo ilusório, enquanto que, pelo contrário, Brahma é absolutamente "distinto daquilo que Ele penetra", isto é, do Mundo, pois que não se lhe podem aplicar nenhum dos atributos determinativos que convém a este, e que a manifestação universal toda inteira é rigorosamente nula com relação à Sua Infinitude". (René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, Ed, Traditionnelles, Paris, 1991, pp. 89-90).

E Jean Robin escreveu:

"A doutrina da Unicidade da existência, de fato, implicava a dos estados múltiplos do Ser, evocada na seguinte passagem de Tchoang-Tseu, citado por Guénon: "Não vos pergunteis se o Princípio está nisso ou naquilo. Ele está em tudo o que é. Por isso Lhe são atribuídas as qualidades de grande, supremo, inteiro, universal, total (...) Aquele que fez com que os seres fossem seres, (Ele mesmo) não está submetido às mesmas leis dos seres. Aquele que fez de modo que os seres fossem limitados, é ilimitado, infinito.(...) Enquanto manifestação, o Princípio produz a sucessão das suas fases, mas, Ele mesmo não é condensação ou dissipação. Tudo procede dEle e se modifica com e sob Sua influência. Ele está em todos os seres, por definição, mas Ele não é idêntico aos seres, não sendo diferenciado, nem limitado" (Jean Robin, René Guénon, Testimone della Tradizione, Ed Cinabro, Catania, 1993, p. 95).

E Olavo de Carvalho, seguindo as lições de seus mestres no Tradicionalismo esotérico, escreveu que "a reta simboliza o princípio da divisão - a substância" o estado de ser mais afastado do Ser puro.(Cfr. Astrologia e Religião, ed. cit. p. 80).

 

IV - 7. Discordância entre Olavo e Guénon?

É verdade que Olavo diz separar-se de Guénon precisamente nessa questão de considerar o Primeiro Principio - o "Principial" - como Não-Ser ou como ser:

"O ponto chave dos erros de Guénon - que até hoje ninguém neste mundo parece ter enxergado, nem mesmo seus concorrentes da escola schuonniana - é de natureza puramente metafísica: está na sua doutrina do Não-Ser e das "possibilidades de não-manifestação". Esclarecida e derrubada essa doutrina intrinsecamente absurda, manifestam-se os verdadeiros pontos de discordância entre cristianismo e guénonismo, bem como sua via de conciliação. Explico isto mais extensamente em meu Diário Filósofico ". (Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, Diadorim, Rio de janeiro, 1995, pp. 305-306, nota 170. O negrito é meu. Infelizmente não possuo o tal Diário Filosófico, que deve ter cada coisa...).

Repare duas coisas:

1) Olavo pretende ser possível conciliar guénonismo e cristianismo;

2) Por esse texto acima, Olavo não aceita que a divindade seja Não-Ser.

Isso o eximiria de aceitar a Gnose?

Não basta. Porque em outros escritos Olavo defende doutrina mais matizada e não tão oposta a de Guénon sobre o Não Ser:

"Segundo se vê em "Les États Multiples de l'Être", a teoria do Não-Ser implica, para além das possibilidades de manifestação e das impossibilidades de manifestação, uma terceira coisa que Guénon chama "possibilidades de não-manifestação". Esta noção é um "flatus vocis": ou ela designa apenas possibilidades de manifestação que efetivamente não se manifestaram, ou então puras impossibilidades de manifestação. Ora, as possibilidades de manifestação e as impossibilidades de manifestação, juntas, compõem o domínio propriamente dito do Ser, nada sobrando para além dele senão um conceito vazio. Na verdade a expressão Não-Ser só vale como figura de linguagem, para designar os aspectos superiores e mais sublimes do Ser mesmo, seu lado misterioso e eternamente desconhecido, ou imanifestado, portanto qualidades do Ser e não uma outra entidade substancialmente distinta. Creio que o próprio Guénon não ignorava isso. Alguns de seus colaboradores preferiram mesmo usar em vez de Não-Ser a expressão Supra-Ser para designar o Brahman, o eternamente imanifestado, distinguindo-o de Ishwara, o Ser manifestado. Isso basta para eliminar toda confusão a respeito." (Olavo de Carvalho, in Diário Filosófico, apud e-mail a aluno. Negrito nosso.)

Portanto, a diferença entre Olavo e Guénon seria de terminologia e não de conteúdo: em vez de Não Ser, Olavo prefere usar a expressão Supra Ser.

Ora, também esta não é uma idéia original de Olavo.

O gnóstico Mestre Eckhart já a havia adotado:

"Deus não é bom, ele não pode portanto tornar-se melhor, e porque ele não é melhor, ele não pode vir a ser o melhor (...). Ele está acima de tudo isso! Se eu digo ademais que Deus é sábio, isso não é verdade; eu sou mais sábio do que ele! Se eu digo ainda que Deus é alguma coisa que é, isso não é verdade; ele é algo absolutamente transcendente, ele é um supra ser não-ser"(Mestre Eckhart, Sermão: Da Renovação do Espírito, Obras de Mestre Eckhart, pp. 131, apud, G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 566. O itálico é do autor).

Aproveito aqui, meu caro Felipe, observações que você me fez na carta mais recente que você me enviou:

A expressão Supra-Ser em vez de Não-Ser é utilizada pelo próprio Schuon, em "O Mistério do Véu", segundo ensaio do livro O Esoterismo como Princípio e como Caminho, escrito após A Unidade Transcendente das Religiões.

É claro que há muito de artificial em toda esta controvérsia, haja visto o caráter dialético da gnose, para a qual, em última instância, Deus é - usando a fórmula do gnóstico Nicolau de Cusa - a coincidentia oppositorum. Nasr o reconhece a seguir, ao afirmar que tanto faz chamar a Divindade de Ser ou Não-Ser, desde que se Lhe oponha o mundo:

"Ela [a Divindade] é Vazio se o mundo é encarado como plenitude e Plenitude se o relativo é percebido à luz de sua pobreza ontológica e vazio essencial. (9)"

E na nota nove, ele esclarece:

"(9)...metafisicamente falando, o conceito de Realidade Suprema como vazio e como plenitude se complementam um ao outro como o símbolo yin-yang e ambos se manifestam integralmente em toda tradição integral. Mesmo no Cristianismo, em que o simbolismo da Plenitude Divina é enfatizado e desenvolvido com notável elaboração na teologia franciscana, especialmente a de São Boaventura, a visão complementar de vazio aparece nos ensinamentos do dominicano Meister Eckhart, que fala do 'deserto da Divindade'." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, p. 134 e nota 9, p. 155-156)"

Até aqui, Felipe, vai a citação de sua carta, que tenho prazer em agregar a esse trabalho, como contribuição de um ex aluno de Olavo, que percebeu onde as brumas esotéricas olavianas o estavam levando.

E não posso deixar sem protesto a agregação do nome de São Boaventura nessa citação de Nasr, onde o Doutor Seráfico aparece como Pilatos no Credo.

 

IV - 8. Toda criatura é puro fluxo. A Dialética Ontológica.

Outra nota de oposição entre a Divindade e o Mundo criado - pelo menos na visão de Guénon - proviria do caráter dialético das coisas criadas, que faria delas um fluxo, um devir perpétuo, sem existir sujeito de mudança. O ser criado, para a Gnose, seria puro fluxo, e não propriamente Ser

Como vimos, quando a Gnose considera a Divindade como Ser, então, as criaturas não tem senão um ser aparente ou ilusório. Se a Gnose afirma que a Divindade é Nada absoluto, então é a criatura que é tida como ser.

Em todo caso, nas duas situações, ela vê a criatura como dialética, isto é, como sendo o resultado de uma luta de dois princípios iguais e contrários, que na Gnose Taoísta são chamados de Yin e Yang. Daí, ela considerar que toda criatura não é ser, mas apenas devir, fluxo, ou mudança, sem haver propriamente um sujeito de mudança, tal como dizia Heráclito.

Benoist cita a mesma imagem usada por Heráclito para afirmar o fluxo do devir:

"A Criação deve ser, por conseguinte, um fluxo permanente como a água que corre cria a permanência do rio"(Luc Benoist, El Esoterismo, p.15).

Guénon, também, defende essa teoria em vários de seus livros.

"A tradição extremo oriental em sua parte propriamente cosmológica atribui capital importância aos dois princípios, ou, se se preferir, às duas "categorias" que designa pelos nomes de yang e yin: tudo o que é ativo, positivo ou masculino é yang, tudo o que é passivo, negativo, ou feminino é yin. Em todas as coisas o lado claro é yang, e o escuro é yin, mas um não existindo nunca sem o outro, eles aparecem como complementares muito mais do que como opostos".(...) "Segundo o que já dissemos, é fácil compreender que yang é o que procede do Céu e yin o que procede da natureza da Terra(...) o aspecto Yang dos seres corresponde ao que neles há de "essencial" ou de "espiritual", e sabe-se que o Espírito é identificado com a luz pelo simbolismo de todas as tradições; por outro lado, seu aspecto yin é aquele pelo qual se liga à "substância", e esta, devido à "inintegibilidade" inerente à sua indistinção ou a seu estado de pura potencialidade, pode ser definida propriamente como a raiz obscura de toda a existência" (René Guénon, A Grande Tríade, pp. 29-30. O negrito é meu).

Não é necessário mostrar como essa doutrina é fortemente dualista, nem como os conceitos de essência e de substância são usados de modo abusivo, nem ainda como Guénon coloca um tom negativo na raiz obscura de toda existência, já que ele declara que a luz está relacionada com o Espírito.

Disso tudo, desse conceito dualista do ser proveniente da idéia do Yang e do yin, Guénon conclui que: "todo ser é andrógino" (René Guénon, A GrandeTríade, p. 30). O que e uma formulação tipicamente alquímica e gnóstica.

Desse choque de princípios opostos é que resulta a perpetua mutação, proveria idéia de que só existe o devir e não sujeito do devir, isto é, que todo ser é fluxo:

"(...) natureza" e "devir" são, na realidade sinônimos" (René Guénon, A Crise do Mundo Moderno, p. 99).

Também para o sr. O de C. o ser criado é puro fluxo, puro devir:

Com efeito, Olavo de Carvalho em muitos textos repete essa noção depreciativa do ser criado - "manifestado" - que é típica da Gnose e, como vimos, da doutrina de Guénon.

Falando do conceito dialético do ser de Hegel, ele já havia afirmado - sem qualquer restrição - que: "Em outras termos: ser é devir" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 32).

E não venha o sr. Olavo dizer que estamos atribuindo a ele o conceito de ser de Hegel, porque essas conclusões ele tira de seu raciocínio anterior sobre o Ying e yang, isto é, sobre a dialética dos contrários na gnose Taoísta, que ele vê confirmada em Hegel.

Tanto ele aceita essa noção de ser como fluxo, pelo menos no "mundo manifestado", que, pouco adiante, ele diz:

"Na astrologia, o símbolo que evoca esse segundo enfoque é o do ciclo lunar. Este projeta na tela dos céus o espetáculo da permanência na mudança, do ser que se revela e constitui no devir" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 32).

É do dualismo metafísico do ser --que Olavo aceita - que ele tira o conceito de ser como puro devir, o que faz de Olavo de Carvalho um seguidor da metafísica de Heráclito e não de Aristóteles. E Heráclito também pode ser apontado como um filósofo de pensamento gnóstico.

 

IV - 9. Evolução da Divindade e sua Manifestação no mundo das criaturas

Para Olavo de Carvalho, como para os demais defensores da Tradição primordial, a Divindade, que Guénon chama de "Principial", seria una, eterna, imutável. Porém, que essa afirmação não engane. O termo "Imutável", em si mesmo, não significa que a Divindade não tenha se transmudado no Cosmos. Dizem, os que se auto denominam filósofos "perennialists", que a Divindade se manifestou primeiro emanando o Primeiro Ser - Ishiwara, no Hinduísmo --e depois todas os demais "níveis de ser", ou " os Múltiplos Estados de Ser", como expõe Guénon.

"Aqui, nos é preciso insistir um tanto sobre um ponto essencial: é que todos os princípios ou elementos de que falamos, que estão descritos como distintos, e que o são efetivamente do ponto de vista individual, não o são entretanto senão neste ponto de vista apenas, e não constituíam na realidade senão outras tantas modalidades manifestadas do "Espírito Universal" (Atma). (René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, ed. cit. p. 89).

E pouco depois diz Guénon: "assim o Mundo, entendendo por essa palavra o conjunto da manifestação universal, não pode se distinguir de Brahma senão de modo ilusório, enquanto que, pelo contrário, Brahma é absolutamente "distinto daquilo que ele penetra", isto é, do Mundo, pois que não se Lhe pode aplicar nenhum dos atributos determinativos que convenham a este aqui, e que a manifestação universal toda inteira é rigorosamente nula em face de Sua Infinitude." (Réné Guénon, op. cit p. 90).

Fica claro que o universo provém da Infinitude de Brahma, e que Guénon o considera como ilusório, como não ser. Portanto, que há uma oposição completa entre a Divindade e o mundo da manifestação.

Guénon, expondo a doutrina Taoísta, afirma: "Os dez mil seres são produzidos (tsao) por Tai-i (que é idêntico ao Tai-ki), modificados (hua) por yin-yang, pois todos os seres provém da Unidade principal", mas suas ações no "devir" devem-se às ações e reações recíprocas das "duas determinações"(René Guénon, A Grande Tríade, ed. Pensamento, São Paulo, p.33. O negrito é meu).

E se Guénon diz que tudo emana da Unidade principal, Olavo vai repetir isso mesmo, pois ele só ecoa - se fosse em classe de escola, dir-se-ia que ele só cola - o que seus mestres "tradicionalistas" dizem.

"A linha horizontal não é outra coisa senão o ideograma I, que significa o número 1, e também, segundo Wieger, a unidade primordial, o ser, de onde emanam todas as coisas, o Ser é portanto o extremo limite onde estão contidas todas as mutações que constituem e dissolvem os entes" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, Ed. Nova Stella, São Paulo, 1985, p.74-75. O negrito é do autor. O sublinhado é meu).

Não disse?

Tinha certeza que Olavo ia colar também isso.

Portanto, Olavo escreveu: da "Unidade primordial, o ser, de onde emanam todas as coisas".

E chamo sua atenção para o verbo "emanar". Olavo não fala em criação dos seres do universo, e sim em emanação, exatamente como afirma a Gnose.

 

IV - 10. Tipos de matéria: a grosseira e a subtil

Vimos que no primeiro item Olavo indica que a Gnose "opõe a Divindade ao mundo da matéria grosseira".

Ora, vimos que há sistemas gnósticos, como os da Cabala e o do Romantismo que aceitam a matéria, embora a oponham à Divindade. Esses sistemas são exatamente aqueles nos quais se distingue uma "matéria grosseira" das coisas deste nosso mundo visível, e uma "matéria subtil " própria de seres de um mudo superior ao nosso.

Para citar só um exemplo da teoria gnóstica da matéria subtil, limitar - me - ei à da Gnose islamita, tão apreciada por seu Olavo:

"Esta metafísica [do ser como luz] provém, com suas variantes particulares, da metafísica da luz largamente professada pelas escolas teosóficas tradicionais na cristandade, no Islam e entre os Cabalistas judeus. A doutrina dos quanta de tempo e de espaço, em Oâzi Sa’id Qommi, não é senão uma conseqüência da análise aplicada ao conjunto da metafísica do ser, e pela qual desaparece o hiatus entre o que é chamado Espírito e o que é chamado Matéria. Há uma só e mesma Luz diferenciada em múltiplos graus de condensação e de subtilidade; há uma "matéria espiritual" e há uma matéria no "estado material"; o corpo no mundo do Malakût se torna um corpo espiritual subtil. De um modo geral, pode-se dizer que esta metafísica tradicional da Luz precedeu os resultados de nossa moderna física da luz, na medida em que esta tornou definitivamente precária toda fronteira interposta entre "material" e "imaterial" (Henry Corbin, En Islam Iranien, Vol. IV, p. 198).

Conforme a Gnose shiita, haveria um mundo imaginal intermediário entre o mundo sensível, da materialidade grosseira, e o mundo intelectual, puramente espiritual. Este mundo imaginal era chamado de Hûrqaliâ, na Gnose shiita.

O Sheik Ahmad distinguia:

"1o) Há o primeiro jasad que chamaremos de Jasad A, e que é entendido como sendo o corpo elementar, material e perecível. É o corpo aparente de cada um de nós, aquele que podemos ver, tocar, pesar, reconhecer. É uma formação acidental e caduca, resultante de uma composição de elementos físicos sub lunares.

" 2o) Há um segundo jasad que chamaremos Jasad B; ele é escondido e oculto a nossos olhos no jasad A; ele também é uma formação elementar, mas, diferentemente do primeiro, não são os elementos terrestres perecíveis, os de nossa Terra material que o constituem; são os elementos - arquétipos ou elementos subtis da "Terra de Hûrqaliâ". Este segundo jasad é portanto uma formação pertencente ao mundo intermediário, ao mundo do barzkh ou mundus imaginalis; ele tem por conseqüência dimensões mas diferentemente do primeiro jasad, ele não é um corpo acidental, é um corpo essencial e imperecível; é o corpo elementar subtil, o corpo de "carne espiritual", caro spiritualis.

"3o) Há o primeiro jism: chamêmo-lo de Jism A. Diferentemente dos dois jasad, ele não é um corpo elementar; ele não pertence aos Elementos terrestres nem aos Elementos subtis. Ele parece com o Jasad A porque ele é como ele acidental, não durável para sempre.. Ele parece com o Jasad B no sentido em que ele é, como ele, uma formação do mundo intermediário. Entretanto, não é dos Elementos subtis da Terra de Hûrqaliâ que ele provém (isto é, da região que ai corresponde ao clima terrestre do Ocidente cósmico); ele se origina na matéria celeste e nos Céus de Hûrqaliâ (isto é, na região correspondente às Esferas, ao clima celeste do Ocidente cósmico). É o corpo celeste subtil destinado a se reabsorver, o corpo astral.

"4O) Há o segundo jism, que chamaremos Jism B, e que é o corpo subtil essencial, arquétipo, eterno e imperecível (jism asli haqîqî); jamais o espírito se separa dele, porque ele é constituído de individualidade eterna. Dele se pode dizer que ele é corpo supracaeleste no homem" (Henry Corbin, Corps spirituel et Terre Céleste, De l’ Iram Mazdéen À l’Iran Shî’ite, Buchet Chastel, Paris, 1979, pp.115 e 116).

É essa correspondência "analógica" entre o mundo material grosseiro e o mundo imaginal subtil que permite, junto com a dialética, à Alquimia afirmar que a matéria e espírito são correlatos: que a matéria é espírito cristalizado, e que o espírito é matéria sublimada, doutrina essa, alquímica e gnóstica, que se encontra em Jacob Boehme e em seus seguidores, tais como Von Baader, Oetinger, Benguel, e, mais tarde, no próprio Hegel.

Baader distingue uma matéria incorruptível do ser eterno, e outra corruptível do ser temporal. Diz ele: "Confundir ou separar espírito e matéria, como fazem o panteísmo e o espiritualismo, constitui um erro; fazer do espírito e da matéria dois princípios hostís é outro erro(...)há separação entre espírito e a matéria, pelo fato que não se os distingue; não há também hostilidade entre eles". (E. Susini, Franz Von Baader et le Romantisme Mystique, Vrin, Paris, 1942, vol. II, p. 454).

Para Oetinger, cabalista cristão (luterano), alquimista e pré romântico, "O volátil se fixa e o fixo se volatiliza. Isso significa que o espírito se torna corpo, e o corpo se torna espírito. (...) O perfeito símbolo dessa alquimia é Jesus Cristo: em sua pessoa, o Espírito revestiu uma forma corporal e o corpo de carne se espiritualizou com a ressurreição. Essa pessoa é por excelência o lugar do encontro entre o espírito e o corpo (...) É universalizando essa verdade que Oetinger declara de um lado que tudo é espírito, de outro lado, que tudo o que é espírito, é também corpo"(Pierre Deghaye, La Philosophie Sacrée d‘Oetinger, in Kabbalistes Chrétiens, Albin - Michel, Paris, 1979, p. 247).

Também Luc Benoist afirma a existência de vários mundos:

"Desde uma concepção universal, o mundo se apresenta sob três aspectos: um estado de não manifestação que representa a Possibilidade Universal, um estado de manifestação informal ou subtil que representa a Alma do Mundo e um estado de manifestação formal ou bruta que é o do mundo substancial dos corpos"(Luc Benoist, El Esoterismo, ed. cit., p. 9).

Mais adiante, Benoist vai se referir a um quarto "mundo ":

"Além e acima dos três mundos, o da manifestação corporal, sutil e informal, há um quarto estado não manifestado, princípio dos outros três. É o mundo do En Soph hebreu [da Cabala], da Libertação hindu, da identidade suprema do Islam, e chega-se a ele depois de ter passado além do manifestado, além da obscuridade, quando se pode ver, dizem os textos hindus, o outro rosto da obscuridade. É o estado do yogui hindu e do Homem universal islâmico" (...)"Libertação, conhecimento e identidade não são senão um só e mesmo estado em que o sujeito, o meio e o fim se identificam. Somente o yogui, que corresponde também ao pneumático da Gnosis pode obter uma libertação na vida (...)" (Luc Benoist, El Esoterismo, p. 22).

Poder-se-iam fazer muitas outras citações, que lhe poupo, para não alongar mais ainda esta "lettre - fleuve".

E Olavo? Aceita ele, com a Gnose islamita, que existe uma matéria subtil e uma matéria grosseira, sendo esta o que há de mais oposto à Divindade? Aceita ele que existe um mundo imaginal, sutil?

Falando do Zodíaco, Olavo explica que usando a palavra zoon para designar os seres do Zodíaco, os gregos quereriam dizer que essas criaturas eram de fato seres reais, vivos. Diz mais: "é forçoso concluir que, se designaram tais criaturas pela palavra zoon, foi porque as consideravam tão reais quanto os elefantes ou as minhocas, e não simples produções do psiquismo humano. De fato, a idéia de identificar "realidade" e "corporeidade" não passou pela cabeça de ninguém antes do século XIX e os gregos não tinham portanto nenhum motivo para crer que o incorpóreo fosse necessariamente subjetivo" (Olavo de Carvalho. Astros e Símbolos, p. 60.O negrito é do autor).

E depois de dizer essa enormidade, continua, mais adiante Olavo:

"Seres como a cabra marinha e o centauro possuíam, portanto, uma fórmula própria de realidade, distinta tanto da presença corpórea quanto da pura ideação subjetiva. Essa forma de realidade intermediária foi denominada em latim mundus imaginalis, e o termo "imaginal" pressupunha uma distinção radical entre ela e o "imaginário" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 60).

E ainda: "O mundus imaginalis é o âmbito das hierofanias, das aparições sacrais, (...) "(Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 61).

Dizendo isso, Olavo se enfileira no pelotão dos esotéricos, pois Luc Benoist também diz que no, ‘mundo intermédio’, "se encontram os prolongamentos extra corporais dos indivíduos, as energias das entidades não humanas, as influências dos ‘gênios elementares’ ou elementos de Paracelso, que as tradições chamam de gnomos, ondinas, silfos, salamandras, djins, demônios" (Luc Benoist, El Esoterismo, p. 14).

Pelo menos, Olavo pode dizer que não está sozinho nesse delírio, o que sempre é uma consolação...

Olavo, que tão dado é aos estudos de esoterismo islâmico, e que cita elogiosamente o gnóstico shiita Henry Corbin, cita também a expressão mundus imaginalis, típica da Gnose shiita. Logo, ele conhece e aceita a existência desse mundus imaginalis constituído de uma corporeidade subtil, que é uma crença própria da Gnose shiita.

Por outro lado a Alquimia tem como verdade e certeza que a matéria é espírito cristalizado, e que o espírito é matéria sublimada.

"Os próprios alquimistas descrevem freqüentemente o objetivo de sua obra como "volatilização do sólido e solidificação do volátil", ou como "espiritualização do corpo e corporeificação do espírito" (Titus Burckhardt, Alchimie, sa Signification et son Image du Monde, Thot, Milan, sem data, original ed. alemã de 1960, p.80. A tradução é minha).

"Como dizem os alquimistas, o "corpo" deve se tornar "espírito" e o "espírito" deve se tornar "corpo" (Titus Burckhardt, op. cit. p. 82).

Para os alquimistas - e a Alquimia, como veremos, é uma ciência gnóstica - "(...) a matéria permanece um aspecto ou uma função de Deus. Não é uma realidade separada do espírito, mas o complemento necessário dele"(Titus Burckhardt, op. cit., p. 57).

"Para a humanidade "arcaica" - que não faz a separação artificial entre matéria e espírito - (...) (Titus Burckhardt, op. cit., p. 13).

"A concepção de uma matéria radicalmente separada do espírito, tal qual se apresenta tanto na teoria quanto na prática em nosso mundo moderno - a despeito de certas correntes filosóficas opostas - não é de nenhum modo evidente em si.

(...) "Conforme Descartes, o espírito e a matéria são duas realidades radicalmente distintas que, segundo um plano divino, se reencontram apenas num único ponto: o cérebro humano(...) Para os povos antigos, a matéria era como um aspecto de Deus. Nas civilizações comumente chamadas arcaicas, essa perspectiva era imediata e ligada à experiência sensível, porque essa aqui, a matéria, era a terra em seu aspecto de perenidade, como princípio passivo de todas as coisas visíveis, enquanto que o céu representava o princípio ativo e gerador. Estes dois princípios são como as duas mãos de Deus. Eles estão reciprocamente relacionados como macho e fêmea, pai e mãe, e não podem ser dissociados, porque em tudo o que produz a Terra, o Céu está presente como princípio gerador"(Titus Burckhardt, op. cit., pp.55-56).

Dada essa correlação e esta identidade dialética entre matéria e espírito, para a Alquimia poderia ser dito que a própria alma espiritual possuía uma "matéria (Cfr. Titus Burckhardt, op. cit., p. 66).

E Olavo, que cita, admira e recomenda Titus Burckhardt como um de seus mestres, Olavo defende a Alquimia, que é uma ciência gnóstica, como provaremos adiante.

Por tudo isso, é seguramente uma simplificação própria de enciclopédia popular o que Olavo cita em seu primeiro ponto fundamental da Gnose. E a expressão "matéria grosseira" que Olavo usou - ou copiou - deixa aberta a porta para a admissão da existência de uma suposta matéria subtil, típica da Gnose e da Alquimia.

 

IV - 11. Conclusão deste primeiro item

Registremos então este ponto: para Olavo de Carvalho, o Principial é Ser, é único, eterno e imutável, embora ele tenha dito que ele é chamado também de "Inexistente", pelos filósofos que pretendem ter um "conhecimento", uma "Sabedoria terminal", superior à própria Filosofia, isto é, a Gnose.

Registremos ainda que para Olavo de Carvalho tudo o que existe no Cosmos emanou da Unidade primordial, ou Ser.

Resumindo: o sr. Olavo de Carvalho afirma:

1) Que há oposição entre o "Principial" e o mundo manifestado.

2) Que, ao contrário do que diz Guénon, o Principial seria Ser ou Supra Ser.

3) Mas, com Guénon e Schuon, ele concorda que o mundo manifestado é pura ilusão. Que o ser criado é fluxo, é devir.

4) Que há um dualismo no ser manifestado, que é expresso pelos princípios: do Yin e do Yang, da Gnose taoísta. O que significa aceitar o dualismo metafísico no ser criado, contrariando os princípios de identidade e de não-contradição, princípios esses recusados pela Gnose.

5) Que a tendência à individuação é má. De onde decorre logicamente sua condenação do princípio de individuação, que é a matéria. Daí o seu desprezo por tudo o que é individual, enquanto tal, que só teria valor enquanto potencialidade de divinização, pois, como ensinou Guénon, o indivíduo é Deus em potencial, pelo seu "Si"

6) Ele aceita a doutrina guénoniana dos "estados múltiplos do ser ", que conduz à negação do mundo "manifestado", considerado como mera ilusão.

7) Ele apóia, sem fazer restrições --a não ser negando que o Principial seja Não-Ser - autores que são patentemente, e às vezes, confessadamente gnósticos como Guénon, Schuon, Burckhardt, Nasr, Ibn Arabi, etc.

 

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Online, 20/04/2024 às 10:22:58h