Religião-Filosofia-História



"Tout est relatif, voilà le seul principe absolu"
(C. Maurras)

Esta é uma das causas mais importantes dos erros de M., assim como da confusão a respeito de seu real pensamento:

"Nous ne sommes pas métaphysiciens, proclame-t-il" (JF, 129).

M., discípulo de Augusto Comte, tinha desprezo pela Metafísica. "Et pourtant ce mot de métaphysique, il apparait dans le vocabulaire de Maurras, ainsi que celui de moral comme synonime de mauvais, imprécis, irrationnel, non soumis à l’ordre qui est celui des vies humaines, étranger au réal connaissable" (JF,165).

"Alors, comment établir une doctrine de la société, si la société est liée à l'essence de l'homme, et si l'on professe ne rien savoir de cette essence? Aussi Maurras répond-t-il qu'il ne propose point une doctrine, mais des leçons de l'expérience, d'une expérience faite de longtemps, de toujours" (JF, 129).

Ora, essa substituição da Metafísica pela experiência social é, de fato, a aplicação da lição do Positivismo de Comte, que colocou a Sociologia no lugar da Metafísica. É de se estranhar, então, que M., grande admirador e seguidor do fundador do Positivismo, afirmasse uma igualdade de valor entre Augusto Comte e Aristóteles? O leitor crê que exageramos e que M. não chegou a esse absurdo ?

"En philosophie, Comte, est aux yeux de Maurras ce qui fut Aristote" (JF,75). O positivismo de M. vai tão longe que considera que não só o ser do homem é inatingível pela razão, mas Deus e o próprio ser também não podem ser objeto do conhecimento real humano. M. é - até certo ponto, pode-se dizê-lo - um nihilista.

Em um texto inédito - La merveille du monde - analisado pelo principal discípulo de M. , Pierre Boutang, este pergunta:

"Pourquoi? Pourquoi rien? Les six premières [conclusões] affirment l'impossibilité (il a d'abord été écrit difficulté) du Dieu unique comme de la dualité divine des manichéens; l'aboutissement est "qu'il faut être nihiliste en métaphysique" L'intéret de Maurras pour le nihilisme n'a jamais faibli" (PB,117). E esse mesmo insuspeito autor comenta que "Nihil est égale à ne hilum, même pas le hile, le point noir au haut de la fêve, par où celle-ci reçoit les sucs de la terre... Autant dire que ce "rien" est tout, promesse ou condition de tout, et que le nihilisme a des chances de contenir non une simple désespérance, mais un désir forcené qu'il y ait de l'être. Ce serait une analogie entre Maurras et Heidegger qu'il n'a pas connu: le philosophe allemand a noté que lorsqu'il parlait de néant, celà voulait dire être, et que cette singularité, méconnue lors de ses premières traductions en français n'avait été devinée qu'au Japon. Nous allons prendre conscience, avec La merveille que le nihilisme y est terriblement fécond, et que son adoption philosophique mène au "réisme" le plus décidé pour tout le reste" (PB,118). E pouco adiante PB confirma a objetividade de sua análise do nihilismo de M., citando uma frase dele: "le néant signifie peut-être le Tout" et cela confirme notre analyse de nihil" (PB,118).

Bem curiosa análise que, a pretexto de inocentar o nihilismo maurrassiano o liga ao do existencialista - e portanto gnóstico - Heidegger. E, para os que considerarem errada a classificação de Heidegger como gnóstico, recomendamos a leitura da obra de Hans Jonas (Cfr. Hans Jonas, Gnosticisme, existencialisme et Nihilisme, epílogo da obra do mesmo autor La Religion Gnostique, Flammarion, Paris, 1978, pp. 417-442). E esta aproximação analógica entre o nihilismo gnóstico-existencialista de Heidegger e o de M. nos permite sublinhar os traços gnósticos - porque não dialéticos - entre nada e tudo feito por Maurras, assim como a repulsa pela Metafísica e pelo ser, elementos típicos de uma estrutura de pensamento gnóstico. Note-se que não estamos afirmando que todo o sistema de M. é gnóstico. Sublinhamos apenas que algumas de suas teses são gnósticas.

É de se estranhar, então, que M. conclua que se é preciso ser nihlista na ordem Metafísica, é preciso também ser maniqueu em arte? É o que constata PB, o fiel discípulo de M.: "Seulement, comme il assurait au départ qu'il faut être nihiliste en métaphysique, et malgré l'unité de la Beauté et de sa Loi, il pose qu'il faut être "manichéen" en Art, l'art étant "incliné "sur le mal et radieux dans le Bien" (PB,124). E as aspas da palavra "manichéen" pouco salvam a afirmação.

A ambiguidade de M. exige que citemos outro texto: "Et quand Barrès se dit "nihiliste", Maurras répond tout au contraire: "J'ai le sentiment [e note-se a palavra "sentimento" num autor que pretendia combater o Romantismo, acusando-o de colocar o sentimento, como guia, acima da razão] qu'il y a, peu de chose, mais enfin quelque chose". Que de profondeur, métaphysique, ontologique, dans cet il y a, dans cette affirmation de l'être comme senti" (JF, 169). (Obs.: o sublinhamento é de JF). Que Romantismo! Que cheiro de Gnose Modernista neste "être comme senti", dizemos nós!

Esta recusa da Metafísica e o nihlismo de M. - em que pese o seu sentimento de que, no fundo, alguma coisa, embora "peu de chose" - explicam algumas de suas afirmações surpreendentemente bergsonianas, e, portanto, claramente gnósticas, por serem negadoras do ser.

"Et Maurras a - en 1901 - cette remarque qui nous étonnera beaucoup sous sa plume: "Nous ne savons jamais avec exactitude où nous en sommes, et cela pour une raison assez fine: nous ne sommes pas" ( JF, 119).

"Nous ne sommes pas"!!! Isto é, não somos, não existimos!!! Para um líder de católicos direitistas, é realmente demais, ainda que isto tenha sido escrito em 1901!

E JF comenta assim esta declaração anti-ontológica:

"Et quoi! Cette note bergsonienne, cet "éléatisme", cet "évolutionosme chez Maurras? Oui. Et il [M.] insiste: "Non, nous ne sommes pas. Du mois cette partie de nous-mêmes dont nous notons les variations et les aventures manque tout à fait de stabilité et de permanence. Elle échappe aussi, comme tout ce qui manque d`être, à de fermes définitions. Nous sommes non des êtres mésurables, définissables, mais des forces en continuelle transformation". Ainsi parle ce Maurras qu'on tient pour l'homme du "tout fait", l'apologiste d'une notion de l'homme purement statique et fermée sur elle même. Le vocabulaire même nous enseigne: "comme tout ce qui manque d'être". Le philosophe catholique, tomiste, entend bien ce que cela signifie: Dieu seul est, et toute sa création n'est que participation à cet être. Sur cela, on le sait, Maurras ne se prononce pas, mais ce qu'il constate est dans cet axe: nous manquons d'être et sommes "en continuelle transformation" (JF,119).

A tentativa de tornar tomista a afirmação de que "nós não somos" nos parece mais do que forçada. Ela não salva o "nihilismo" de M., nem sua tese de que estamos "em contínua transformação", que é claramente heraclitana e bergsoniana. Portanto, gnóstica. Não temos dúvida, porém, que os atuais defensores de M. procurarão defendê-lo dizendo que estas frases de M. são de 1901. Quereríamos saber quando, depois de 1901, ele as renegou...

De onde provinha o nihilismo e o gnosticismo dessas teses do jovem M.?

"Le desespoir métaphysique qui n'avait pas cessé d'habiter la grande âme solitaire (...) de Maurras" (JF,348) provinha de sua incompreensão e revolta diante do problema do mal. Exatamente o problema que está na origem de toda Gnose.

O problema do por quê do mal no mundo - do mal físico ou moral - tornou-se agudo para o espírito de M. devido à surdez que o acometeu na adolescência.

"(...) le jeune Charles Maurras ruminait à longueur des journées certains problèmes philosophiques qui l'obsédaient et le faisaient retomber dans les tenèbres. Ces problèmes, c'étaient le problème du mal, le problème de la Providence, ceux-là mêmes qui l'écharde dans sa chair, le mal physique, sa privation mystérieuse, posaient à son esprit et dont il se sentait accablé" (JF,394).

Com a questão do mal punha-se a M. a pergunta: "comment y trouver la marque du Dieu bon?" (JF,394). "Alors, comment accepter l'idée que le mal est au coeur même des choses belles, que le péché s'y enracine, et surtout qu'un Dieu que ne saurait être que Bon et Bien y a soumis ses créatures, plus: les tente avec lui?" (JF,395). Ainda no final de sua vida M. dizia: "je n'arrivait à comprendre comment Dieu qui est le Souverain Bien peut tolérer le mal" (JF,410-411). Por isso, M. até às vésperas de sua morte não rezava o Pai-nosso, porque não compreendia e não aceitava a petição "ne nos inducas in tentationem" (JF,395).

"Aussi le dernier mot du Pater sera-t-il presque jusqu'à la fin le scandale de Maurras: "Ne nous induit pas en tentation" Il se demandait si ces mots n'étaient pas "un vestige du premier jansénisme, ou Paulinien, ou augustinien". Ce qu'il nommait "la lèpre semite", c’était cela: l'idée d'une salissure du monde, d'une souillure de sa beauté." (JF,395).

Nessas frases de M. citadas por JF - e frases ditas pouco antes de morrer - se revela uma recusa orgulhosa de que o homem possa ser tentado, e de que no mundo haja males. Revela-se ainda uma crença soberba e pagã na perfeição absoluta do homem e do mundo. Há em M. uma repulsa orgulhosa das imperfeições. Sua repulsa pela "salissure" da natureza cheira fortemente a Gnose. Na realidade, M. recusa aceitar duas coisas: o pecado original e a própria contingência do ser criado.

Vistas estas coisas, compreende-se que M. tenha constatado que no homem há "la melancolie de ne pas être Dieu" (JF,35). "Au désir d'être Dieu qui habite les hommes, voici donc la première réponse: nous ne sommes pas des dieux. C'est déchirant, mais c'est vérité" (JF,36).

Curioso é encontrar em M. a idéia de que o homem lamenta não ser Deus, idéia que Lutero exprimiu nas teses que apresentou em 4-IX-1517: "De maneira nenhuma é válida a sentença: o homem pode querer, por sua natureza, que Deus seja Deus. Na realidade, preferiria que ele próprio fosse Deus, e que Deus não o fosse" (Lutero, tese 17 das 98 remetidas a Erfurt e Nuremberg, por ocasião da formatura de Franz Gunther de Nordhausen, apud Gottfried Fitzer, O que Lutero realmente disse, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1971, p.26).

O nihilismo de M. e seu espírito anti-metafísico, seu orgulho, sua recusa em aceitar o mal relativo, sua revolta contra Deus que permite a tentação, o sofrimento e mesmo o pecado, sua melancolia de não ser Deus, provocaram o desejo da morte. Já que o homem não é Deus, é melhor não viver. É melhor não ser. É o que ele escreveu em seu livro Chemin de Paradis, que a Igreja colocou no Index: "Il y a, dans tout le Chemin de Paradis, une obsession et comme un véritable appel de la mort: "Je n'eus d'attachement véritable qu'aux lieux où l'on songe en paix à la mort, les églises, les sépultures, les lits de sommeil et d'amour. Ma joie essentielle fut de me sentir qui mourrais" (JF,382).

E, para ele, pelo menos durante parte de sua vida, além da morte, não havia mais nada.

"Ce qui importe au jeune Maurras c'est de "marquer son nom avant que de mourir", car "espérer l'immortalité ne convient pas au genre humain. Il nous suffit de vivre avec quelque beauté, c'est-à-dire, de prendre une conscience profonde de nos forces et de les montrer" (JF,382).

É de estranhar então que ele concluisse: "Les problèmes métaphysiques ne sont résolubles que par la méthode expérimentale qui consiste dans le suicide" (JF,383).

Mais tarde, M. mudou um tanto essa posição nihilista e suicida, mas sem chegar à solução de seu problema fundamental. Falando de seus amigos e discípulos da Action Française que haviam morrido, "Maurras court au devant de ces poursuivances funèbres": "je leur parlais, les priais, et les questionnais sur leur sort, sur le mien, ou plutot sur le lien que la mort n'avait pas pu rompre entre elles et moi. Je mentirais en présentant cet interrogatoire des Ombres comme dérivé ou de curiosité, ou de l'angoisse du problème philosophique et religieux. Il ne s'agissait pas, au reste, de sonder notre avenir d'outre-tombe. Je ne tentais pas d'éclaircir quelle navigation lointaine entreprend le principe secret, l'impalpable soufle de vie (personnel? ou impersonnel?) qui ne me semble pas pouvoir ne pas survivre à notre cendre" (JF,384).

Eis aí um texto de M. em que ele admite "O impalpável sopro de vida" que existe em nós. Admite ainda que "o princípio secreto"que nos anima sobreviverá. Mas, ele manifesta dúvida se esse princípio secreto é pessoal ou impessoal. Nem M. dá maior importância a qual seja o futuro desse "princípio secreto". Ele apenas admite: "Sûrement, nous ne disparaissons pas tout entier. Quelque chose d'immortel est en nous" (JF, 389-390). Até o fim da vida sua crença permaneceu ambígua: "Je n'ai jamais nié le surnaturel - écri-t-il à Xavier Valat em 10-IX-1952. La dificulté est de savoir où il commence" ( JF,411).

Agnóstico e descrente do Bem infinito que permite o mal neste mundo, o jovem M. dizia ter horror do infinito (JF,38). Para ele, só vale o finito, o definido. Só há luz - luz da verdade - no que é definido. Ele recusava entregar-se ao "sentiment de l'infini": tout est nombré et terminé... définitions certaines et justes confins hors lesquels s'étend un obscène chaos" (JF,34).

"L'infini! Le sentiment de l'infini! Rien que ces mots absurdes et ces formes honteuses devraient induire à retablir la belle notion du fini. Elle est bien la seule sensée. Quel Grec là dit? La divinité est un nombre, tout nombre est terminé" (JF,235).

Quando se acusava M. de que esses conceitos eram inconciliáveis com a noção cristã de Deus, ele se defendia dizendo que por infinito entendia o indefinido.

M. queria atacar a noção de infinito dos românticos alemães, mas sua confusão entre infinito e indefinido é inaceitável. Como é inaceitável sua escusa, pois ele foi um autor que defendia exatamente os conceitos claros e definições precisas.

Pelas mesmas razões que não aceitava o infinito, M. não aceitava também a eternidade. "Avoir raison, c'est encore une des manières dont l`homme s'éternise", dizia M. (JF,113).

"Faute d'avoir trouvé une éternité personelle, c'est dans la victoire de la raison que M. cherche la durée de quelque chose d'humain; amener la Cité à une vie raisonable, c'est assurer cette durée".

"S'il est vrai, comme l'écrivait M, que les idées ont leur visage, leur plein sens et leur pure beauté à l'heure où elles naissent, nous tenons là l'idée maurrassienne a l'état pur. Elle a quelque chose de religieux puis qu'elle se propose une éternisation de l'homme (...) (JF, 113).

No lugar da eternidade e da imortalidade, M. coloca então a duração, a permanência. "Telle est... la première situation intérieure de M. devant la mort et qui va créer en lui l`obsession de ce qui peut susciter la durée" (JF,383)."Le monde peut durer, il y a une permanence, celle des lois de l'univers, de l'ordre du monde. Pour la Grèce, "la Mort doit elle être elle-même avertie que le monde s'est enfin senti et connu sous la forme d'éternité, dans ses rapports invariables, dans ce lois qui ne branlent point" (M. apud JF,381).

Para M. então, não foi Cristo que venceu a Morte (com M maiúsculo) e nos deu a vida eterna. Foi a Grécia que nos deu a "eternidade" humana, que é mera permanência, simples duração.

"Qui entre dans l'ordre de l'être, échappe à la mort. C'est en ce sens que le fini est précisement ce qui est refusé à la destruction" (JF,389). "Ce qui dure n'est pas seulement participation à la vie mais participation à l'essence de l'univers" (JF,381).

"Mais entre cette permanence de l'être ou des êtres et l'amoureuse puissance d'un Dieu créateur quel abîme encore! comment ne pas voir que tout se distingue à peine d'un panthéisme que pourtant, Maurras refuse" (JF,391).

M. podia dizer que recusava o panteísmo, e mesmo afirmar que admirava o valor de São Tomás, de Santo Agostinho e de Bossuet, enquanto defensores de verdades duradouras. Isto não era suficiente para impedir que seus leitores ou seguidores tirassem conclusões panteístas do que ele escrevia.

Em vez do Infinito, o definido; em lugar da Eternidade, a permanência, em lugar da Metafísica, a Física Social construtora da Cidade. "Ce que la métaphysique, ce que l'ontologie ne lui donnaient pas, il l'a cherché dans la transmission sociale, dans la tradition des richesses de l'esprit. De là que la vie sociale est, pour lui, devenue majeure: elle lui a, en quelque sorte, tenu lieu d'ontologie, de métaphysique" (JF,118). "Faute d'avoir trouvé la source métaphysique, Maurras en a cherché les conditions dans la vie des hommes en groupe, dans la cité" (JF,389).

A cidade aspirada por M. seria construída pela aplicação da experiência social consubstanciada na tradição. Vê-se então que o próprio conceito de tradição maurrassiano é mais próximo do positivismo de Comte do que do catolicismo.

Assim como M. não conseguia compreender o problema do mal, nem aceitar o Deus que permite a tentação, assim também sua noção de Cidade era utópica, no sentido em que a Utopia é eliminação de todo o mal social.

"Il a desiré un monde où le beau ne serait pas marqué de péché, où le temps s'outrepasserait lui-même par des créations perdurables, où le beau, le vrai, le bien comporteraient des cités harmonieuses dans lesquelles "les meilleurs" communiqueraient leurs biens à tous parce que ce Beau, ce Vrai, ce Bien seraient la Loi totalement connue. Oui, c'est de cet univers humain et social sans péché qu'à rêvé Maurras" (JF,396).

Esta busca da Cidade Ideal acabaria por ser um absoluto para M.: "Est-ce donc que, comme son maître Comte, Maurras pense que la société est la fin dernière, l'absolu, puisqu`il n'en est plus d'autre? C'est bien que paraît dire la Déclaration de la Ligue d'Action Française quand elle demande qu'un "vrai nationaliste place la patrie avant tout" (JF,401).

É de espantar, então, que esse anti-metafísico tivesse afirmado que:

"TOUT EST RELATIF, VOILÀ LE SEUL PRINCIPE ABSOLU" (C. Maurras, Romantisme et révolution, pp 92-93, apud PRP, 68).

Não, esse relativismo radical e contraditório, por mais absurdo que seja, não é de causar espanto em quem recusava a Metafísica. O que é de espantar, o que é incompreensível, isto sim, é que esse homem , até hoje, engane tantos católicos franceses e até alguns sacerdotes.

 

Nascido de família católica, M. muito cedo perdeu a fé. Depois, a admiração pelo mundo grego levou-o ao paganismo e ao agnosticismo. Frutos dessa decadência espiritual foram suas frases laudatórias do "Pater-Chaos" assim como suas blasfêmias contra o Cristo hebreu.Vimos já que sua posição anti-metafísica o levou a exprimir pensamentos de nítida inclinação gnóstica, como, por exemplo, a identificação do ser com o nada, e do nada com o tudo.

"Le néant signifie peut-être le tout" (PB,118). E o "peut-être" inserido na frase é típico do espírito ambiguamente resvaladio de M.. Mais tarde, ele se aproximou politicamente do catolicismo, o que não trouxe mudanças em sua posição diante do problema da existência de Deus.

"Mon amour du catholicisme n'est point aussi extérieur que vous le définissiez. J`en aime l'ordre intellectuel et moral. Mais, dans la sphère du vrai, nulle considération ne peut diminuer dans mon esprit le repos, la satisfaction que me donne l'image du Pater - Chaos d'où s'élancent les hommes et les dieux. Le Beau, la vertu, la grâce, l'ordre me semblent des effets accidentels (et d'autant plus précieux) plutôt que des causes ou des fins" (PB, 322).

"Dès les premiers mots de la Merveille du Monde, le Dieu unique est rejeté" (PB,124). Apesar desta afirmação, Pierre Boutang garante que M. "ne fut jamais déiste, c'est-à-dire, athée sans franchise" (PB,124). Entretanto, sua posição face ao problema da existência de Deus era, quando muito pragmática, pois, no máximo, interessava-lhe saber se a idéia de Deus era ou não benfazeja do ponto de vista político-social. "En dépit du grand préjugé que l'autorité de Voltaire a fait régner en France, c'est une question de savoir si l'idée de Dieu, du Dieu unique et présent à la conscience, est toujours une idée bienfaisante et politique" (C. Maurras. Romantisme et Révolution, p.273, apud PRP, 122). M. não era deísta, isto é, ateu sem franqueza, nos diz Boutang. Quererá ele nos dizer que M. foi francamente ateu? Isto explicaria porque ele discutia ou duvidava de que a idéia de Deus fosse realmente benfazeja e política... Ateísmo ou monoteísmo, para M. não era então um problema teológico e sim político..."Politique d'abord!"

Nem teísta, nem deísta. Recusando tanto o Deus único quanto o Deus, Sumo Bem, que permite o mal e a tentação, M. simpatizava com a idéia do Pater-Chaos, tudo-nada, tão parecido com o conceito gnóstico da divindade sem nome. Tendo em mente esses pressupostos, tornam-se muito curiosas as seguintes afirmações do maior discípulo de M. a respeito das idéias de seu mestre sobre Deus:

"Encore au-delà, et cette fois du dehors, en transcendance absolue, il ne peut plus y avoir, comme paradigme de tous les sacrifices, que la Kénose de Dieu, le vide que Dieu fait en lui-même dans l'Incarnation et la passion Fils" (PB,129).

Que vazio fez Deus em si mesmo na Encarnação e na Paixão? Pode o ser divino estabelecer em si mesmo o vazio, isto é, o não-ser? Se o ser é o bem, este vazio é o mal? Haveria então o mal no próprio ser de Deus? Que estranho e conhecido cheiro de Gnose há nestas frases. Com efeito, é na doutrina cabalista de Isaac Lúria de Safed que se fala de um vazio que a divindade teria feito em si mesma, a fim de poder aí criar o universo (Cfr. G.G.Scholem, A mística judaica,- Major trends in Jewish mysticism - Perspectiva, São Paulo, 1972, 263 e s.). Não queremos afirmar que Pierre Boutang aceitava a doutrina luriânica. Apenas constatamos, em seu pensamento, um ponto de semelhança com a doutrina cabalista de Isaac Luria de Safed.

As frases blasfemas de M. sobre o Cristo hebreu foram dos tempos de sua juventude agnóstica e pagã.

"Il paraît bien que là soit [a defesa das hierarquias sociais que permanecem] la sagesse dernière de Maurras du Chemin de Paradis. Le sage Criton s'insurge d'apprendre qu'un Christ hébreu viendra au monde, rachetera l'esclave, et, déposant le fort du thrône, placera les premiers plus bas que les derniers, pour que sa gloire soit chantée dans la vie éternelle" (JF,38).

Esta citação de JF nos parece benévola demais se for comparada com o texto completo da passagem da qual foi tirada: o sábio Criton leu consternado, nas portas do inferno, as letras prenunciando que:

"Un Christ hébreu viendra au monde, rachêtera l'esclave et déposant le fort du trône, placera les premiers plus bas que les derniers pour que sa gloire soit chantée dans la vie éternelle".

Criton interroga então o deus Mercúrio:

— "Ce Christ hébreu... est-il venu?"

— "Il est venu, Criton".

— "A-t-il chassé les forts du trône, ainsi qu'il le promettait?"

—"Il l'a fait", dit Mercure.

Mais les échos élyséens répetèrent en gémissant:

— "Il l'a fait, il l'a fait !"

— "Il a mis les premiers au-dessous des derniers? Il a rendu Cléon l'égal du fils de Sophronisque?"

— "Mon Criton, ces rêveries s'accomplissent."

—"Et cela a réussit?"

— "Tout arrive, Criton."

Le sage Criton soupira. Il comprennait peu que l'absurde eût ainsi triomphé.

— "Hélas! Mercure, reprit-il, je sais aussi que les esclaves au nom du même Christ doivent un jour être affranchis. Est-il temps de s'y opposer?"

—"Voilà près de trois cents soixante-treize olympiades que l'Hébreu criait sur sa croix : "Cela est consommé".

Oui, depuis ce moment, les esclaves ont reçu le gouvernement de leur âme. Ils ne sentent plus d'autres jougs que ceux de vivre et de mourir. Ils disposent de tout leur coeur. La servitude est abolie, chères ombres!" (C. Maurras, Chemin de Paradis, p. 202-203, apud PRP, 85-86)

Ao lado da blasfêmia, o absurdo: M. despreza a Cristo e lamenta que o Cristianismo tenha abolido a escravatura. Os atuais admiradores de M. defenderão também essa blasfêmia e esse absurdo de seu mestre intocável?

Para o jovem M., a vida de Jesus foi contada nos "évangiles de quatre juifs obscurs" (JF,392). "Le catholicisme traditionel (...) soumetant les visions juives et le sentiment chrétien à la discipline reçue du monde hellénique et romain, porte avec soi l'ordre naturel de l'humanité" (JF,67). "Le mérite et l'honneur du catholicisme furent d'organiser l'idée de Dieu - écrit Maurras - et de lui ôter ce venin" (du déisme sans dogme et sans Église (JF , 393).

No final de sua vida, M. mudou um tanto sua posição nessa questão. Mas, até mesmo Pierre Boutang, seu mais fiel discípulo, reconheceu que "(...) l'idée d'un catholicisme sauvant le monde du "Christ hébreu" est la pire, la moins défendable, qu'ait connu Maurras. Pourquoi nier qu'il l'ait effectivement conçue? Le Christ dans la nature humaine était hébreu, et même un patriote juif" (PB,328). Só que, quando M. faz o deus Mercúrio chamar Cristo de "hébreu" , ele não estava constatando apenas sua origem nacional. Era em tom anti-semita e depreciativo que o adjetivo era colocado. Entretanto, não é apenas a blasfêmia que se deve condenar nesse texto de M. citado acima. Deve-se condenar também a defesa da escravidão.

Em carta a Maurice Barrès, em junho de 1891, o jovem M. afirmou que era preciso inverter o Magnificat para que houvesse verdadeira ordem social:

"Le premier postulat de la Vie, c'est l'organisation et l'organisation suppose un ordre, et l'ordre suppose le mépris des inférieurs, l'exaltation des supérieurs, ceci systématisé, cristalisé par la Tradition, la Coutume, l'Hérédité. Le Magnificat retourné, voilà, à mon gout, la véritable doctrine sociale, je l'ait dit à la Réforme Sociale" (JF,66).

Evidentemente, essa interpretação do Magnificat é falsa. Repare-se que M. pede, além da defesa da ordem - o que é legítimo - a exaltação dos superiores e o desprezo dos inferiores, tal como o fará o Nazismo com sua idéia de raça superior. E esta exaltação dos superiores, e este desprezo dos inferiores não são católicos. Considerar que a ordem, selo da Sabedoria de Deus no universo, implica no desprezo dos inferiores, é anticristianismo. Esse erro de M. era a conseqüência natural de sua incompreensão do problema do mal, que logicamente, devê-lo-ia conduzir ao culto da força, a uma sociedade cristalizada em castas e até à admissão da escravidão.

M. faz o escravo Andrócles dizer palavras absurdas a seu amo, em defesa da escravidão, considerando-a de acordo com a lei natural, ao ponto de justificar como um bem até as injúrias e as pancadas dadas pelo senhor a seu escravo.

"Mais, ô cher maître, le visage de la fortune sourit dans ta venue. Dis, ne nous quitte plus, car nous avons besoin d'un père, d'une mère et d'un ami fidèle. Tout de toi nous sera léger, les injures, les coups. Car cela fait partie de notre condition, et les pires maux appliqués aux places convenables deviennent les présents du ciel. Il n'est point de bonheur pareil à celui de remplir le message que Jupiter inscrivit en lettres divines, sur les épaules de chacun" (C. Maurras, Chemin de Paradis, p. 215, apud PRP, 94).

"Combien d'esclaves nés de notre connaissance retrouveraient la paix au fond des ergastules d'où l'histoire moderne les a follement exilés" (C. Maurras, Chemin de Paradis, LXXXVII, apud PRP, 97).

Esta absurda e louca defesa dos ergástulos como causadores da paz para os escravos, feita por M., explica porque - nós o veremos mais adiante - ele acabou por não repudiar a colaboração com o Nazismo, instaurador dos modernos ergástulos genocidas, tais como Auschwitz e Treblinka.

Como o reconhece JF, M. tinha uma concepção do universo oposta a do Cristianismo (Cfr. JF, 382).

"L'apologie du Magnificat retourné, la colère contre le Christ exaltant les derniers ont pu s'effacer ou disparaître, il n'en reste pas moins qu'elles avaient nourri les premières passions du jeune Maurras" (JF,402).

De novo, a citação de M. feita por JF esconde o que há de pior no texto original.

"Ce fut un des honneurs philosophiques de l'Église, comme aussi d'avoir mis aux versets du Magnificat une musique qui en atténue le venin" (C. Maurras, Chemin de Paradis, XXVIII-XXIX, 2a. ed., apud PRP, 81).

Mérito e honra da Igreja teria sido então o de "atenuar o veneno" do hino composto por Nossa Senhora, por meio da música gregoriana. E ainda se quer defender M. como pensador, cuja doutrina deveria ser estudada e seguida - e seguida! - pelos católicos, sem nenhuma crítica! Pois, qualquer crítica a M.é tida, por certos católicos franceses, como indício de heterodoxia!

Nem mesmo o "elogio" muito relativo e muito humano - e falso - de ter o Catolicismo submetido as visões judaicas à ordem racional grega é feito sem ressalvas por Maurras.

"On ne peut douter qu'il y eût un temps - et peut être un longtemps - où la venue "du Nazaréen" signifia pour Maurras l'avènement d'une ère où, à cause du Christ, "tout l'ancien monde s'écroula", qui était celui de l'harmonie des choses parce qu'il avait ordonné la pensée dans la saisie du monde "fini" (Anthinéa). [Texto supresso por M. nas edições posteriores] (JF,403).

Um dia, M. escreveu uma poesia, na forma bem bela, bem enganadora por sua ambiguidade, bem reveladora em seu conteúdo.

AU DIEU INCONNU

("Mentre che la speranza ha fior del verde"- Dante, Purgatorio)

"Seigneur, endormez - moi dans vôtre paix certaine
Entre les bras de l'Espérance et de l'Amour
Ce vieux coeur de soldat n'a point connu la haine
Et pour vos seuls vrais biens a battu sans retour.

Le combat qu'il soutint fut pour une Patrie,
pour un Roi, les plus beaux qu'on ait vus sous le ciel
La France des Bourbons, des Mesdames Marie,
Jeanne d'Arc et Therèse et Monsieur Saint Michel.

Notre Paris jamais ne rompit avec Rome.
Rome d'Athène en fleur a recolté le fruit,
Beauté, raison, vertu, tous les honneurs de l'homme
Les visages divins qui sortent de ma nuit:

Car, Seigneur, je ne sais qui vous êtes. J'ignore
Quel est cet artisan du vivre et du mourir,
Au coeur appellé mien quelles ondes sonores
Ont dit ou contredit son éternel désir.

Et je ne comprens rien à l'être de mon être,
tant de Dieux ennemis se le sont disputé!
Mes os vont soulever la dalle des ancêtres,
Je cherche en y tombant la même vérité.

Écoutez ce besoin de comprendre pour croire!
Est-il un sens aux mots que je profère? Est-il
Outre le labyrinthe, une porte de gloire?
Ariane me manque et je n'ai pas son fil.

Comment croire, Seigneur, pour une âme qui traîne
son obscur apétit des lumières du jour?
Seigneur, endormez-la dans votre paix certaine
Entre les bras de l'Espérance et de l'Amour.

(C. Maurras, Clairvaux, Juin 1950, apud PB,709-710)

JF diz que essa derradeira poesia do último livro de poemas de M. - LA BALANCE INTÉRIEURE - foi sublinhada, no exemplar que ele entregou ao cônego Cormier, e que seu título original, "Au Dieu Inconnu", foi riscado pelo autor. E comenta Fabrègues: "En rayant ce titre, Maurras avait nommé son Dieu" (JF,413). É realmente ter muita boa vontade e contentar-se com bem pouco. Desde quando, um simples riscar de um título ambíguo, se torna uma confissão de fé?

Só que M. não denominou qual era o seu Deus. Na poesia - "d'ailleurs si belle" - a ambigüidade permaneceu. Até a morte, M. foi a permanência da ambigüidade. Ter riscado o título original é absolutamente insuficiente para se concluir que desse modo M. designou seu Deus. Só se seu Deus se chamava "Talvez". Supor que esse Deus fosse Cristo é pura suposição - para não dizer imaginação - de JF. Limitar-se a riscar o título é absolutamente insuficiente, especialmente para um autor como M. que foi agnóstico confesso e que havia publicamente blasfemado contra "o Cristo hebreu". Quem foi publicamente contra Cristo até a blasfêmia, convertendo-se, teria que manifestar-se pública e claramente a favor de Cristo até a proclamação de sua divindade. Como Tomé, M. deveria ter exclamado: "Meu Senhor e meu Deus" e não ter se limitado a riscar um título ambíguo sem por nada em seu lugar.

M. afirma, na poesia, que só lutou pelos verdadeiros bens deste Deus desconhecido. Como primeiro desses bens, ele não coloca nem a Redenção, nem a Revelação, nem a Igreja, nem os Sacramentos, mas apenas bens naturais: a "Pátria", a França, seus Reis e heróis, dando um lugar para "Tereza" e para "Monsieur" Saint Michel - quase uma figura folclórica francesa, e não o Arcanjo da teologia católica.

Ele se orgulha por Paris jamais ter rompido com Roma. Mas não com a Roma de Pedro. A Roma a que ele se refere é a Roma pagã, herdeira da cultura grega. Beleza, razão, virtude, as honras do homem, que M. chama de "os rostos divinos" de sua noite.

Na estrofe seguinte, M., o "chétien du dehors" - expressão muito parecida com a dos cristãos anônimos do progressismo e da Teologia da Libertação - confessa que ignora o nome e o que é o Deus que dá o viver e o morrer. É uma estrofe claramente deísta, impossível de ser aplicada a Cristo.

Aquele que fôra louvado por não ser deísta, isto é, ateu sem franqueza, escreveu, quando já envelhecido e quase na hora da morte e próximo de confessar-se, uma poesia deísta que se deseja apresentar como uma confissão de fé em Jesus Cristo. Francamente, isto é ter muita vontade de desculpar M..

Nessa poesia M. confessa ainda que "nada compreende ao ser de seu ser" e que, para crer, ele tem necessidade de compreender. O que é o oposto ao ato de fé. Ele mostra duvidar até mesmo de suas próprias palavras, e, como os antigos pagãos, ele se vê no labirinto do mundo e dos conceitos sem fio condutor, sem guia e sem caminho. Como pode então ser chamado de "cristão" mesmo "du dehors", aquele que não aceita que Cristo é o caminho, e que a Igreja é a Guia segura e a Mestra infalível dos homens? Como pode se sentir perdido no labirinto do mundo e dos conceitos quem aceitou a Fé Católica, confessando-se na hora da morte?

Não! Esta poesia - aliás, literariamente bela - não prova que M. se converteu. Deixa suspeitar o contrário. Em que pese ele ter riscado o título "Ao Deus desconhecido".

A maneira de M. referir-se ao "Cristo hebreu", ao "Nazareno", tinha sido depreciativa. Até mesmo o maior apologista e discípulo de M., Pierre Boutang, foi obrigado a reconhecê-lo:

"Or, l'idée d'un catholicisme sauvant le monde du "Christ hébreu"est la pire, la moins défendable, qu'ait conçue Maurras. Pourquoi nier qu'il l'ait effectivement conçue? Le Christ dans sa nature humaine était hébreu, et même un patriote juif" (PB,328).

Dir-se-nos-á que, entre todas as concepções de Deus, M. preferia a católica. Triste consolação para nós. Veja-se, porém, nesta última citação que faremos sobre este tema, que posição tomava M. face à noção católica de Deus:

"En conclusion, le catholicisme propose la seule idée de Dieu tólérable aujourd'hui dans un État bien policé" (C. Maurras, Romantisme et Révolution , apud PRP,124).

Considerem, pois, os atuais admiradores de M., que a idéia de Deus da Igreja Católica era, para ele, apenas "tolérable", num Estado bem organizado.

E como podem tolerar tal absurdo os que rezam com fé o "Credo in unum Deum"?

 

Anterior
Anterior


    Para citar este texto:
""
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/maurras2/
Online, 02/05/2024 às 03:07:01h