Religião-Filosofia-História



III - Pontos doutrinários fundamentais da Gnose

III - 1. Pressupostos

O sr. Olavo de Carvalho me apresenta quatro itens fundamentais da doutrina gnóstica, lançando-me um repto para que eu prove, se for possível, que sua doutrina contém esses quatro pontos.

Ele me diz ainda que não basta ter uma ou outra idéia gnóstica, para que se considere uma filosofia como enquadrada no sistema herético.

Ora, isso é completamente falso.

Se um autor tem apenas um ponto gnóstico em sua doutrina, ele é um gnóstico, tanto quanto quem tenha um só órgão com câncer é canceroso. Não adianta afirmar que ele tem 99% dos seus órgãos sadios: havendo um órgão com câncer, o indivíduo é canceroso. Do mesmo modo, se há um só ponto da Fé negado por uma idéia herética, o sistema é herético. Isto porque, sendo a Gnose um pecado gravíssimo contra a Fé, e considerando que a Fé exige absoluta integridade, basta um princípio herético para destruir totalmente a Fé em alguém.

A Fé é como a virgindade: ou é integra, ou não existe.

E a Heresia - como se denominava a Gnose na Idade Média - é como o câncer: basta ter o princípio dela para ser herege.

E a Gnose é a mãe de todas heresias.

Olavo de Carvalho se declara admirador, e doutrinariamente devedor, tanto como seguidor de vários dos autores da seita guénoniana. Ora, o sistema doutrinário desse grupo sectário é gnóstico. Logo, na medida em que ele aceita as idéias desse sistema sectário - e Olavo as aceita em bem larga medida, senão completamente - nessa medida, Olavo de Carvalho é gnóstico.

O fato de que ele declare discordar de alguns pontos da doutrina guénoniana, para aderir ao sistema gnóstico de Schuon, - ao qual ele também faz restrições acidentais, - não o exime da culpa de Gnose, porque o próprio Schuon é gnóstico confesso.

A doutrina de Guénon, como a de Olavo, não tem apenas alguns pontos gnósticos isolados, mas os princípios gnósticos que eles adotam formam uma sistema coerente, que exige chamá-los de gnósticos, ainda que eles não explicitem alguns pontos próprios da Gnose completa. Essa falta de explicitação de alguns pontos da totalidade do sistema gnóstico se nota especialmente em Olavo, que tem uma Gnose menos elaborada pela sua inferioridade em relação a Guénon, quer quanto à inteligência, quer quanto à cultura, quer ainda quanto ao valor de seus livros.

Alguns dos autores gnósticos guénonianos costumam dizer que sua Gnose é distinta da Gnose dos primeiros séculos. Mas, como já dissemos, quando se examinam os dois sistemas, constata-se que eles praticamente coincidem.

Veremos isso de mais perto, quando examinarmos os quatro itens apresentados por O de C. como característicos da Gnose clássica, e demonstraremos que o sistema guénoniano e o de Olavo de Carvalho se encaixam na Gnose clássica, e que não a contrariam. As pequenas diferenças entre os membros do grupo guénoniano não são suficientemente importantes para excluí-los do sistema geral gnóstico. É natural que o erro seja múltiplo. Só a verdade é una. Só a verdade unifica.

Outro ponto a considerar é que toda seita esotérica procura velar sua doutrina. O esoterismo, por natureza, é velado, e usa códigos secretos e anfibologias para mascarar seu verdadeiro pensamento.

René Guénon, tratando desse problema da dissimulação do pensamento esotérico, e de sua adaptação à linguagem religiosa dominante num lugar, escreveu:

"Que, em certos casos, a prudência imponha efetivamente uma espécie de dissimulação, ou o que pode passar por tal, isso não se pode negar, e se poderia encontrar muitos exemplos disso em outros lugares tanto quanto no Oriente; a linguagem de Dante e de outros escritores da Idade Média daria exemplos em abundância disso; mas há também, para fatos desse gênero uma outra razão totalmente diferente, de uma ordem muito mais profunda, e que parece escapar completamente aos ocidentais modernos. A verdade é que este desapego das formas exteriores implica sempre, pelo menos em algum grau, a consciência da unidade essencial que se dissimula sob a diversidade dessas formas (...) passar de uma forma a outra não tem então quase mais importância do que trocar de roupa, conforme os tempos e os lugares, ou de falar línguas diferentes conforme os interlocutores com os quais tratamos" (René Guénon, artigo - relatório Les Religions et les Philosophies de l ‘Asie Centrale - 1928, apud Marie France James, op. cit. p. 294)

A mesma coisa Guénon vai dizer, com outras palavras, e em outro lugar, chamando a dissimulação de "dom das línguas" :

"Sob este ponto de vista, pode-se dizer que quem possui verdadeiramente o "dom das línguas’, é aquele que fala, a cada um, segundo sua própria linguagem, nesse sentido que ele se exprime sempre sob uma forma apropriada ao modo de pensar dos homens aos quais ele se dirige"(...)"o mesmo ensinamento se encontra no esoterismo islâmico: Mohyiddin Ibn Arabi diz que "o verdadeiro sábio não se liga a nenhuma crença", porque ele está além de todas as crenças particulares, tendo obtido o conhecimento daquilo que é o seu princípio comum; mas é precisamente por isso que ele pode, conforme as circunstâncias, falar a língua própria de cada crença. Não há nisso, o que quer possam pensar os profanos, nem "oportunismo", nem dissimulação de nenhum tipo; ao contrário, é a conseqüência necessária de um conhecimento que é superior a todas as formas, mas que não se pode comunicar senão (na medida em que é comunicável)"(René Guénon, Aperçus sur l ‘ Initiation, Ed. Traditionnelles, paris, 1951, pp. 236-237).

O próprio Ibn Arabi, tido como o gnóstico típico do sufismo, afirma a mesma ambigüidade religiosa:

"A mais esplêndida fórmula, a da unidade, foi dada sob uma forma prática pelo grande Mouyidin-din ibn -Arabi quando disse: "Meu coração pode adquirir todas as formas. É o mosteiro do cristão, o templo dos ídolos, a pradaria das gazelas, a Ka‘aba do peregrino, as tábuas da Lei mosaica, o Corão dos fiéis. Amor é meu credo e minha fé." (Luc Benoist, El Esoterismo, p. 34).

O ex frei Boff assinaria em baixo.

Aliás, essa dissimulação do próprio pensamento era costumeira prática dos sufis, que a denominavam Ketman.

Comentando a prática do ketman, Mariani escreveu: "O Ketman está indissoluvelmente ligado a todo esoterismo" (G. Mariani, Les Poisons d’Orient,. Revista Internacional das Sociedades Secretas (Ocultismo), fevereiro de 1932, p. 29, apud, Marie France James, op. cit. p. 350, nota 170).

Schuon defende a "conversão" apenas exterior, por "conveniência":

"É apóstata quem muda de forma tradicional sem razão válida. (...) Podemos passar de uma a outra forma tradicional sem nos termos propriamente 'convertido', apenas por razões de oportunidade esotérica ou espiritual. Nesse caso, as razões que determinarão a passagem serão objetiva e subjetivamente válidas (...)" (Frithjof Schuon, A Unidade Transcendente das Religiões, Trad. Pedro de Freitas Leal, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991, p. 86. O negrito é meu).

Poderia haver declaração mais cínica?

E esse é que Olavo apresenta como um dos homens mais representativos do "tradicionalismo" espiritual, no século XX.

De fato, Schuon representa muito bem o século XX.

O Próprio O de C., em sua biografiazinha de Guénon, disse:

"... se há algo que caracteriza o esforço guénoniano como um todo é a defesa de uma Tradição, de uma Verdade única que, no plano da doutrina metafísica, estabelece a unidade de todas as manifestações espirituais particulares, de todas as épocas e culturas. Nesse sentido ele pôde, por exemplo, tornar-se muçulmano enquanto declarava ser hinduísta (Mais próxima, segundo ele, da Tradição primordial) e defender as doutrinas orientais, enquanto propunha que, para o Ocidente, só havia um caminho legítimo, o retorno à Igreja Católica.

"Note-se que essa possibilidade de transitar livremente de uma Tradição a outra é, hoje como sempre, apanágio exclusivo dos grandes Mestres espirituais(...) " (Olavo de Carvalho, O Homem e sua Lanterna. René Guénon, O Mestre da Tradição contra o Reino da Deturpação. In Planeta, n* 107, Agosto de 1981, p. 14-15).

E é por isso que Olavo pode se dizer, sem cerimônia, ao mesmo tempo, católico- judeu- maometano. Fazendo isso, ele está praticando o Ketman sufi, ainda que ele não tenha efetivamente se tornado sufi. Estará então imitando seu mestre espiritual, Guénon.

E ainda há católicos, que se dizem tradicionalistas, que acreditam nele! Para um ingênuo tradicionalista católico, nada melhor do que ser "encantado" por um "Tradicionalista" esotérico-gnóstico, praticando o ketman sufi, ou o "dom das línguas", à la Guénon...

Dizia Bismarck, que em todo acordo, alguém faz o papel de cavaleiro, e outro, o de cavalo...

O sr. Olavo de Carvalho, enquanto esotérico, não pode fugir dessa regra: o esoterismo, por definição, exige segredos que não podem ser revelados aos não iniciados.

Daí, se compreender que o sr. Olavo de Carvalho tenha que velar, pelo menos um tanto, o fundo gnóstico de suas doutrinas "tradicionais"...

No livro Astros e Símbolos, o sr. O de Carvalho afirma que:

1) Não usará, ao falar de astros e símbolos, de um sistema coerentemente lógico:

"Por outro lado, o mesmo liame orgânico que filia a astrologia a um complexo tão vasto de conhecimentos impede que adotemos, neste trabalho, um modo de exposição serial, que vá dos princípios às conseqüências em modo coerentemente lógico" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, ed. cit. p. 22).

2) que não exporá claramente os princípios que adotará:

Além disto, ele avisa que, nesse trabalho, deixará "apenas transparecer, ao fundo, os princípios superiores que enformam (sic!) e governam tais enfoques" (idem, p.23)

3) que o implícito supera o explicito, em seu trabalho:

"Pois o que aqui interessa não é só o conteúdo explícito deste último, mas sobretudo sua forma implícita, sua estrutura que procurará reproduzir, na condução do discurso, a estrutura cognoscitiva, o modus cognoscendi da própria astrologia e, por extensão, de todas as demais ciências tradicionais" (idem, p. 23).

Como então não concluir que o esotérico sr. Olavo de Carvalho não diz claramente tudo o que pensa?

E, no capítulo V, intitulado "Notas Para Uma Psicologia Astrológica" --- [Imagine-se o delírio: "Psicologia Astrológica"! ] - O de C. previne o leitor

1) que esse trabalho "não é para principiantes", mas "a pessoas que tenham bons conhecimentos do simbolismo e das doutrinas tradicionais";

2) que "são notas e sugestões esparsas, e não uma exposição coerente"(sic!).

3) que "A terminologia, por isso, é oscilante, incerta". (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, ed cit. p. 63).

É a primeira vez na vida que encontro um autor confessando tão claramente que usa terminologia incerta, em exposição não coerente e especialmente para pessoas que conheçam as doutrinas "tradicionais". Noutras palavras, ele escreveu esse texto para iniciados. Como, então, acreditar num autor que publica um texto com essas características?

É preciso querer ser enganado, para acreditar num autor que confessa que vai usar tais métodos esotéricos.

Desse modo. é preciso ter bem claro que o sr. Olavo de Carvalho - exatamente como Guénon e os demais membros de seu grupo sectário, a "elite" tradicionalista, - pratica o que Guénon chamava de o "dom das línguas": falar com cada grupo religioso, usando a linguagem própria dele, mas exprimindo sempre o "núcleo doutrinário esotérico de todas as religiões", isto é, a Gnose, como explicou Schuon.

 

III - 2. Esquema da Gnose

Parece-me, meu caro Felipe, que seria didático fazer, aqui, um breve resumo, ou esquema do sistema gnóstico, para que os leitores de nosso site saibam melhor do que se está tratando. Evidentemente, farei um esquema muito sucinto, apenas lembrando alguns pontos fundamentais da Gnose, que os quatro itens do sr. Olavo resumem mal.

 

1- A Gnose nasce de uma não solução do problema do mal.

"Unde malum"?

Esta é a pergunta inicial de toda Gnose, que produziu sistemas variadíssimos, desde o Maniqueísmo ao Romantismo, passando pela Cabala.

A Gnose se revolta não apenas contra o mal físico, mas vai mais longe: revolta-se contra a limitação do ser criado, julgando essa limitação um mal em si mesmo. O gnóstico sofre por não ser Deus. Daí ser contrário ao Deus Criador que criou os seres contingentes, análogos ao Ser divino.

A Gnose é uma revolta anti metafísica, tomado este termo no sentido tomista e não guénoniano, é claro.

 

2- Para Gnose, dever-se-ia distinguir Divindade e Deus.

A Divindade seria, ao mesmo tempo, Tudo e Nada, o único Ser e, ao mesmo tempo, o Não-Ser. Dela nada se conheceria realmente: seria o Deus desconhecido, a Divindade abscondita. Da Divindade teria provindo Deus, que se oporia à Divindade como o Ser ao Não Ser, a Luz às trevas. Deus seria conhecido, revelado, enquanto a Divindade seria absolutamente incognoscível.

 

3- Dialética metafísica

É claro que essa contradição metafísica que equipara os contrários - Ser = Não Ser; Tudo = Nada; o Pleno = Vazio; destrói os princípios fundamentais do ser e do pensamento, pois nega quer o principio de identidade (O Ser é idêntico a si mesmo), quer o principio de não contradição [uma coisa não pode ser e deixar de ser, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto].

Do choque desses dois princípios internos do ser --(Yin e Yang, na Gnose taoísta) - é que provem a dialética gnóstica, que considera o ser possuindo dois princípios iguais e contrários em perpétua luta, o que provocaria a evolução contínua e faria das coisas apenas fluxo, um devir contínuo.

 

4- Evolução da Divindade.

A Divindade evoluiria, e, nessa evolução ela teria emanado inúmeros princípios divinos - cada seita gnóstica enumera emanações diferentes - e uma dessas emanações seria o Deus revelado, o Ser, o Deus conhecido, o Demiurgo criador do universo material, identificado em várias seitas gnósticas com Yahwé. Este seria o deus do mal, pois criando, aprisionou na matéria, na razão e na moral, partículas emanadas da Divindade.

 

5- A queda da Divindade no Cosmos.

A Divindade teria sofrido uma queda no mundo. Esse seria o grande pecado cósmico praticado pelo Demiurgo criador, aquele que a Escritura chama de Yahwé.

Enquanto para o Catolicismo existe apenas o mal moral, e não o mal enquanto ser, isto é, existem ações más e não coisas más em si mesmas - porque tudo o que Deus fez é bom - para a Gnose, o mal está na ordem do ser. O mal é ontológico.

Por outro lado, para o Catolicismo, a origem de todo o drama foi o pecado original de Adão e Eva no Éden, enquanto para a Gnose, a raiz do mal estaria na própria Divindade, responsável por um pecado ante original (Cfr. Michel Barat, Le Dualisme de la Gnose et L ‘Image Symboliquement Double de la Femme in Les Cahiers Jean Scot Ergène, no 1, Images de L’Homme et initiation, ed. Loje d’ Études et de Recherche Jean Scot Erigène, Paris, 1988, pp.33- 54)..

 

6- As partículas da Divindade nas coisas criadas

Conforme a Gnose, em cada coisa haveria uma partícula da Divindade. Essa partícula seria o "centro" de cada ser. Essas partículas seriam os âtmâs, os éons, a Fünkenlein (Chamazinha) de Mestre Eckhart, o "primum" de Ibn Arabi, o "Si" (Soi ou Self) de Guénon etc. Por essas partículas da Divindade existentes nas criaturas, as coisas do mundo seriam seres, enquanto a matéria, que as encarcera seria pura ilusão. Nos homens, além do corpo material, a própria alma racional seria um cárcere da partícula divina, pois a razão mostraria ao homem o mundo como inteligível e bom, enganando o homem que, entendendo o mundo, já não quereria sair dele. A capacidade abstrativa do homem o levaria a recortar o todo em conceitos, formando um imenso puzzle que o homem já não sabe reconstituir, criando a ilusão de que o Todo, a unidade não existe. Daí, alguns gnósticos dizerem que a abstração é o pecado da inteligência.

E, como veremos amais adiante, Olavo afirma que abstrair é, no fundo, uma coisa errada, um verdadeiro pecado que exigiria absolvição.

 

7- O homem segundo a Gnose

Para a Gnose, o homem seria, então, composto de corpo material, alma psíquica, e pneuma ou espírito divino. Tanto o corpo quanto a alma seriam cárceres do éon (atma ou centelha) divino.

Conforme a predominância de um desses componentes, os homens são classificados pela Gnose ou como Hylikoi [materiais], quando neles predomina o corpo; Psykikoi, ou psíquicos, quando predomina a alma; e finalmente, como pneumatikoi, ou espirituais, quando neles prepondera o espírito divino.

Por isso, uma sociedade gnóstica-- como a da Índia, por exemplo - aceita as castas. Para a Gnose, os homens são fundamentalmente, naturalmente desiguais. Daí as castas. E - seguindo Guénon também nisto --Olavo simpatiza com a existência de castas na sociedade. (Cfr. Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, p. 346-347 e nota 219. Cfr. René Guénon, A Crise do Mundo Moderno, pp. 69-70).

 

8- Soteriologia gnóstica: o Conhecimento Redentor.

A libertação das partículas divinas, aprisionadas nos cárceres da matéria, da razão e da moral criadas pelo Demiurgo, se realizaria pelo Conhecimento intuitivo ("Metafísico", na linguagem de Guénon, dos "perenialists", e de Olavo).

Que seria o conhecimento libertador? Seria a Gnose - o Conhecimento-- de que, no fundo de nosso ser, somos a própria Divindade. Esse Conhecimento --essa gnose-- não seria um conhecimento intelectual, nem racional, mas supra racional, que permitiria uma iluminação intuitiva de que toda distinção das coisas é ilusória. Por essa intuição, o homem veria que ele é o Universo, e que o universo é a própria Divindade. A intuição seria o Conhecimento de que, pela unidade dos âtmâs o Homem é o Universo, e é a própria Divindade.

Esse Conhecimento salvador libertaria o homem da ilusão da matéria, da ilusão da racionalidade e da abstração, da ilusão do valor da lei moral.

O homem seria seu próprio redentor, e redentor da Divindade. Cristo não seria, então, o Redentor dos homens. Cristo teria sido apenas um dos que se redimiu, um profeta - como pretende o Corão - mas não Deus encarnado. A Gnose recusa a Encarnação do Verbo: ou ela - como os arianos - afirma que Cristo foi apenas a primeira das criaturas, um homem apenas; ou, ela diz - com os eutiquianos - que Cristo foi um deus, mas sem corpo humano real

 

9- Gnose, Moral e Razão.

Se a redenção - Libertação - do homem se faz pelo Conhecimento ou "Sabedoria" Gnóstica, compreende-se que a prática da moral não tem lugar no processo salvífico dos éons.

Com efeito, para a Gnose a Lei moral foi estabelecida pelo Demiurgo a fim de manter as partículas divinas aprisionadas na matéria. Portanto, obedecer à Lei moral seria cooperar para manter o encarceramento dos âtmâs no mundo material. Daí, o antinomismo da Gnose. A libertação exige a violação da lei moral, o desprezo dos 10 mandamentos.

Esse desprezo da lei moral se realiza, quer pelo anarquismo moral que abusa das criaturas, quer pela prática de uma ascese antinatural que despreza a matéria como má em si, que recusa e nega todo bem às criaturas. Por isso, muitas seitas gnósticas condenam a mulher e a reprodução sexual. Outras, tratam a mulher como meio de libertação, considerando a união sexual como primeiro passo para a abolição da individualidade.

Outro meio de libertação seria o desprezo da ordem racional, da ciência e da metafísica (no sentido aristotélico - tomista), dando preferência à intuição sobre a razão, à magia e às ciências secretas sobre a inteligência e as ciências naturais. Por isso a Gnose considera as ciências esotéricas (Alquimia, Astrologia Numerologia, a Magia etc,) como as únicas corretas e salvíficas, por serem anti racionais.

 

10- Eclesiologia gnóstica.

Da mesma forma que a Gnose recusa a Encarnação do Verbo, ela repudia a idéia de uma Igreja estruturada, organizada, com uma hierarquia e com propriedades. A Gnose só aceita uma Igreja Espiritual - Ecclesia Spiritualis - sem dogmas e sem riquezas materiais, sem estruturas.

A Ecclesia Spiritualis da Gnose seria constituída por todos as pessoas que, dentro de cada religião organizada, possuíssem a "Tradição"-- como dizem Olavo e os "perenialists" - e tivessem o Conhecimento de que seu espírito é uma partícula da Divindade."(Cfr. Leszek Kolakowski, Chrétiens sans Église, Gallimard, Paris, 1969).

Repito: este é um esquema bem simplificado, para fins didáticos, e para não alongar por demais esta carta, que promete ser imensa. Hélas!

Demonstraremos que muitos desses pontos fundamentais da Gnose são professados por René Guénon e pelos pensadores que seguem a sua escola "tradicionalista", inclusive o sr. Olavo de Carvalho, embora cada um desses pensadores-- ou sonhadores --- possa divergir num ou noutro ponto da linha geral da escola, ou ainda que possam discordar, uns dos outros, em algum ponto concreto particular. O pesadelo é livre...

Os autores dessa escola se dizem Esotéricos, seguidores da Sophia Perennis = da Metafísica Tradicional = da Tradição primordial que, como já demonstramos, eles mesmos confessam que é a Gnose

Olavo de Carvalho se proclama esotérico, favorável à "Metafísica" guénoniana, elogia e recomenda continuamente esses autores "tradicionalistas" guénonianos. Mesmo que discorde deles em algum ponto, Olavo admite - grosso modo-- o seu sistema doutrinário. Por isso, Olavo é um gnóstico.

Vistos estes pressupostos, examinemos agora os quatro itens da doutrina da Gnose segundo Olavo, e vejamos se neles se enquadram, ou não a doutrina de Guénon e a de Olavo.

 

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Online, 03/05/2024 às 13:42:59h