Religião-Filosofia-História



O ismaelismo reformado de Alamut surgiu no século XI graças à figura legendária de Hassan ibn Sabbah, conhecido no Ocidente como "o velho da montanha".

Na fortaleza de Alamut - o ninho da águia, em 1126, Hassan Sabbah estabeleceu a sede de uma seita que estendeu sua influência por amplas regiões do Oriente, e que só terminou com a conquista de Alamut pelos mongóis, em 1256.

O esoterismo islâmico apresenta duas correntes principais: o shiismo e o ismaelismo. E se "La doctrine ismaéliène" é "la forme par excellence de la gnose en Islam" ["A doutrina ismaelita é a forma por excelência da gnose no Islam"] (Henry Corbin, Histoire de la Philosophie islamique, vol. I, p. 118 - Gallimard, Paris, 1964), a seita de Alamut, um dos ramos do islamismo, é, talvez, a mais tipicamente gnóstica do ismaelismo.

A tomada da fortaleza de Alamut pelos mongóis de Houlagou acarretou a destruição da biblioteca e dos escritos de Hassan Sabbah, por ordem do historiador Djouénny, a serviço de Houlagou. Desde então, só restou a lenda de Alamut que cercou a figura de Hassan Sabbah de um anedotário rocambolesco, misterioso, que dificultou o conhecimento histórico real de sua doutrina.

As recentes descobertas de textos de Hassan Sabbah, entre remanescentes do ismaelismo na Índia, permitiram um conhecimento mais definido do pensamento gnóstico do Velho da Montanha. Deve-se isto aos trabalhos de Ivanow e de Henry Corbin; este último, um adepto ocidental do shiismo.

Ainda assim, os danos produzidos pela destruição mongólica foram tais, que muitos pontos da doutrina e da história de Hassan Sabbah continuarão para sempre indecifráveis, contribuindo, desse modo, para que as brumas da lenda e do mistério continuem envolvendo a fortaleza de Alamut e a figura enigmática do Velho da Montanha.

 

Para se entender o problema do esoterismo islâmico é preciso considerar duas coisas:

1- um problema interno e fundamental do Islam, que é o da exegese corânica.
2- as influências externas que contribuíram para a formação da gnose maometana.

1 - O problema da exegese corânica

O Islam é uma religião que tem por base um livro sagrado, que teria sido revelado por Allah a Maomé.

Maomé era analfabeto, e ditou a revelação a seus discípulos ao longo de muitos anos. Das notas de seus discípulos é que ter-se-ia elaborado o Corão.

O Islamismo é uma religião profética, e ele não se constitui como uma sociedade religiosa eclesial. O Islam não é uma Igreja. Ele não possui nem clero, nem uma hierarquia docente, como a que existe na Igreja Católica; e, principalmente, no Islam não há um papa que detenha a autoridade magisterial suprema.

Isto cria para o Islam um problema doutrinário, semelhante ao que existe entre os protestantes, a respeito do qual seja o verdadeiro sentido do Livro. Era fatal surgir o problema da busca do sentido verdadeiro e oculto do Livro, visto que a linguagem humana, necessariamente, utiliza termos unívocos, análogos e equívocos.

Como determinar, então, num texto, qualquer que ele seja, o sentido de uma palavra? Não havendo autoridade magisterial para definir o sentido da Revelação, torna-se fatal, também, a multiplicação de interpretações e, principalmente, a distinção de dois sentidos fundamentais: um, literal ou exotérico, para o vulgo; e outro, mais profundo e esotérico, para os mais sábios.

Desta distinção surgirão, evidentemente, dois tipos de fiéis: os comuns, que se contentam com a "casca" da Revelação; e os "eleitos", que se alimentam do núcleo da Revelação e que formarão uma elite ou seita de escolhidos.

No Islam, se distinguem então: a Shariat, ou religião positiva, exotérica e literalista; e a Hagiqat, religião esotérica que possuiria o verdadeiro sentido do Corão.

A Shariat, religião positiva, é o símbolo que contém a Hagiqat, ou simbolizado.

Para conhecer o sentido verdadeiro e esotérico do Corão seria preciso: ou ter uma iluminação divina pessoal, ou receber a iluminação de um guia, por meio de uma iniciação.

Em geral, aceita-se que há quatro sentidos fundamentais do texto corânico. Segundo o Imam Jafar Sadiq, esses quatro sentidos são:

1) a expressão pronunciada ou literal - ibarat, que é destinada aos homens comuns;
2) o sentido alusivo - isharat, destinado a uma elite;
3) o sentido oculto - lataif, relativo ao mundo supra-sensível, para os "amigos de Deus";
4) e o sentido ou doutrina espiritual - haqaiq, para os profetas.

Doutrina semelhante teria sido ensinada pelo 1º Imam, isto é, o primo e genro de Maomé, Ali ibn Abu -Talib:

"Il n'est point de verset corânique qui n'ait quatre sens: l'éxotérique (Zahir), l'ésotérique (batin), la limite (hadd), le projet divin (mottala). L'éxotérique est pour la récitation orale; l'ésotérique est pour la compréhension intérieure; la limite, ce sont les énoncés statuant le licite et l'illicite, le projet divin, c'est ce que Dieu se propose de réaliser dans l'homme par chaque verset" (Henry Corbin, op. cit., p. 20). ["Não há verso corânico que não tenha quatro sentidos: o exotérico (Zahir), o esotérico (batin), o limite (hadd), o projeto divino (mottala). O exotérico é para recitação oral; o esotérico, para a compreensão interior; o limite, são os enunciados que estabelecem o lícito e o ilícito; o projeto divino é o que Deus se propõe realizar no homem por cada verso."]

E o próprio Corbin reconhece que estes quatro sentidos correspondem aos quatro sentidos clássicos dos exegetas cristãos:

"Littera (sensus historicus) gesta docet, quid credas (allegoria); moralis, quid agas; quid speras, anagogia" (H. Corbin, op. cit., p. 15). [A letra (sentido histórico) os fatos ensinam, o que deves crer (alegoria); sentido moral, o que deves fazer; o que deves esperar, anagogia].

Os doutores cristãos viam nos 3 sentidos mais profundos, dependentes do primeiro sentido (histórico ou literal), uma imagem da Trindade na unidade (cf. S. Boaventura - Brevilóquio, Prólogo IV, 2 in Obras completas de S. Boaventura, vol. I, BAC; Edgar de Bruynes - "Estudios", vol. II, p. 327).

Esta teoria cristã dos quatro sentidos exegéticos parece que foi adotada também pelos cabalistas judeus, conforme tende a reconhecer Scholem.

"Este aspecto quádruplo da Torá possui uma similaridade marcante com os conceitos de certos autores da antiga Idade Média, como Beda (século VIII)... Famosos, neste contexto, são os versos de origem desconhecida citados por Nicolhas de Lyra, no século XIV:

'Littera gesta docet, quid credas allegoria,

Moralis quid agas, quod tendas anagogia.'

Derivaram os cabalistas este conceito dos cristãos? A pergunta tem sido respondida de várias maneiras... Wilhelm Bacher admite a existência de uma tal conexão histórica, enquanto Perez Sandler, recentemente, tentou provar que a doutrina cabalística do 'pardès' foi desenvolvida de maneira independente. Ainda que seja por certo possível que os cabalistas tenham chegado à teoria dos quatro níveis sem influência externa, simplesmente dividindo a interpretação alegórica em seus dois aspectos, um filosófico e outro teosófico-místico, estou inclinado a concordar com Bacher. O aparecimento simultâneo da idéia em três autores cabalísticos, todos eles vivendo na Espanha cristã, e todos eles trabalhando com a mesma teoria dos quatro níveis, embora divergindo na respectiva classificação, sugere que tenham deparado em algum lugar com esta idéia dos quatro significados e a tenham adotado. Somos quase forçados a concluir que foram influenciados por hermeneutas cristãos. O relato do Zohar sobre os quatro níveis denota uma semelhança marcante com a concepção cristã" (Gershom G. Scholem, A cabala e seu simbolismo, Ed. Perspectiva, S.Paulo, 1978, p. pp. 76-77).

Não interessa aqui examinar se a teoria cristã dos quatro sentidos influenciou também a hermenêutica corânica. Corbin reconhece a importância que os quatro sentidos cristãos desempenham na hermenêutica do Corão (cf. H.C. en Islam Sr, vol. I, pp. 151 e 152). Pode ter influenciado ou não.

Os islamitas, assim como os cabalistas, poderiam ter chegado de per si à mesma solução do problema exegético.

Entretanto, Corbin salienta que no cristianismo o sentido literal ou histórico é a base para os outros três sentidos, conforme o ensina S. Boaventura, e que, no Islam shiita, como nas correntes gnósticas cristãs e judaicas, o fundamental é o sentido analógico (H. Corbin, op. cit., vol. I, p. 16). Mais ainda, ele reconhece que há algo de comum entre a exegese shiita ou soufi, os chamados gnósticos cristãos e judeus, e certos esotéricos, como Boehme e Swedenborg. Este algo comum a todas essas correntes e elementos é a gnose.

2 - As influências externas do Islã

Reconhece-se que o Islam sofreu a influência cultural, quer do oriente quer do ocidente, em sua estruturação religiosa.

Corbin enumera as seguintes influências:

a) grega;
b) zoroastriana;
c) bizantina;
d) gnóstica.

A influência grega se faz sentir, no Islam, quer por meio dos textos dos grandes filósofos gregos, quer por tratados de medicina e alquimia.

Um papel importante, nesse sentido, deve ser destacado aos filósofos neo-platônicos, e particularmente a Proclo. Causa disto foi o fechamento da escola de Atenas, em 529, por ordem de Justiniano, que levou muitos filósofos neo-platônicos a se refugiarem no Iran (Corbin, p. 32).

A influência iraniana se manifesta especialmente no shiismo. Nos raros textos ismaelitas que nos restaram, são nítidos os elementos teosóficos tomados ao zoroastrismo.

Os bizantinos influíram muito na cultura islâmica não só pelo contato natural das duas civilizações, como pela presença de elementos heterodoxos expulsos de Bizâncio, e que se refugiaram em regiões de língua árabe e persa.

Os nestorianos foram responsáveis pela tradução de muitas obras gregas para o siríaco e para o árabe. Foram eles que levaram para a cultura islâmica textos neo-platônicos, tratados de medicina e de alquimia.

Cremos dever salientar a existência de traduções do pseudo Dionísio e de Orígenes que influíram na exegese e nas doutrinas shiitas sobre a divindade e sobre a natureza do Imam.

De todas as influências externas no islamismo shiita, nenhuma talvez supere a da gnose.

"Il faut ajouter ce qui est designé sous le nom de Gnose. Il y a quelque chose de commun entre gnose chrétienne de langue grecque, gnose juive, gnose islamique, celle du shiisme et de l'ismaelisme. Plus encore, nous connaissons maintenant des traces précises de gnose chrétienne et de gnose manichéenne dans la gnose islamique" (H. Corbin, op. cit., vol. I, p. 39). ["É preciso acrescentar o que é designado sob o nome Gnose. Há algo comum entre gnose cristã de língua grega, gnose judaica, gnose islâmica, a do shiismo e a do ismaelismo. Mais ainda, nós conhecemos agora traços precisos da gnose cristã e da gnose maniquéia na gnose islâmica."]

Todavia a influência gnóstica foi tal, no Islam, que Corbin não hesita em qualificar o shiismo e o ismaelismo como movimentos típicos e essencialmente gnósticos.

"Bien des textes remontant aux Imames révelent certaines affinités et certains recroisements avec la gnose antique." (H. Corbin, op. cit., vol. I, p. 47). ["Muitos textos remontando aos Imames revelam certas afinidades e certos cruzamentos com a gnose antiga."]

"De cette fermentation spirituelle du II/VIII siècle il ne nous reste que peu des textes; ils suffisent à nous faire pressentir le lien entre la gnose antique et la gnose ismaélienne." ["Desta fermentação espiritual do II/VIII séculos restam-nos poucos textos; eles bastam para nos fazer pressentir o elo entre a gnose antiga e a gnose ismaeliana."]

No livro Omm al-Kitab (O Arquétipo do Livro) há "... une reminiscence très nette des Evangiles de l'Enfance (faisant déjà comprendre comment l'imamologie sera l'homologue d'une christologie gnostique). Autres motifs dominants: la science mystique des lettres (le j'afr), particulièrement goutée déjà dans l'école de Marc, le Gnostique..." (H. Corbin, op. cit., vol. I, p. 111). ["... uma reminiscência muito nítida dos Evangelhos da Infância (permitindo já compreender como a imamologia será a homóloga de uma cristologia gnóstica). Outros motivos dominantes: a ciência mística das letras (o j'afr), especialmente estimada já na escola de Marcos, o Gnóstico...".]

Tudo isso leva Corbin a definir: "le shiisme est bien la gnose de l'Islam", e, "forme par excellence de la gnose en Islam" (H. Corbin, op. cit., vol. I, pp. 46 e 118). ["o shiismo é bem a gnose do Islã", e "forma por excelência da gnose no Islã."]

 

O termo shiismo vem da palavra árabe shi'a, que significa grupo de adeptos.

Originalmente, ela designou os adeptos, que formavam o partido ou a comunidade de Ali: "Shiat Ali".

Ali ibn Abu Talib era primo e genro de Mohammed (Maomé), pois se casou com sua filha, Fátima.

Ali, além de amigo de infância de Mohammed, foi dos primeiros a aceitar a revelação islâmica. Entretanto,

"Il manquait de finesse d'esprit, d'intelligence politique et de fermeté de caractère, Mohammed s'en était bien rendu compte, qui l'avait toujours placé après Abu Bekr et Omar, et même quelques autres, et ne lui reconnaissait que des qualités de bravoure militaire. Du vivant de Mohammed il n'avait été chargé que de tâches secondaires" (R. Mantran, L'expansion musulmane [VII-XI siècles], p. 166, PUF, Paris, 1969). ["Faltava-lhe fineza de espírito, inteligência política e firmeza de caráter, Maomé tinha bem percebido isso, que o tinha sempre colocado depois de Abu Beckr e Omar, e mesmo de alguns outros, e não lhe reconhecia senão qualidades de bravura militar. Enquanto Maomé esteve vivo, ele foi encarregado apenas de funções secundárias."]

Quando Maomé faleceu, em 632, ele mesmo havia designado Abu Bekr como seu substituto, na tarefa de dirigir as orações, enquanto esteve doente. Isso, aliado às qualidades naturais de Abu Bekr, facilitou o acordo para sua designação como Califa. O próprio Omar apoiou a escolha, que sofreu a oposição dos parente de Maomé, Ali e Abbas.

O califado de Abu Bekr durou de 632 a 634, e ele foi sucedido por Omar ibn al-Khattab, também ele dos primeiros convertidos ao islamismo.

Omar foi califa durante 10 anos (634 a 644), e, em seu governo, foram conquistados a Síria, a Mesopotâmia, o Egito e a Armênia, e ele foi considerado o modelo dos califas (R. Mantran, op. cit., p. 111).

Ele foi assassinado por um escravo descontente por não ter sido atendido, num pedido (644).

Segundo uma tradição, Omar, antes de morrer, teve tempo de designar um conselho de 6 membros, para escolher o novo califa, entre os melhores companheiros de Mohammed.

Entre os principais candidatos estavam Ali e Othman ibn Affân. Este último foi o escolhido, apesar de não se destacar, quer pela energia, quer pelo caráter, e sequer pelo prestígio. É certo que foi dos primeiros mekenses a se converter mas, durante a vida de Maomé, recebeu apenas a incumbência de dirigir um grupo de islamitas que fugiu para a Abissínia.

A escolha de Othman representava a vitória da aristocracia de Meka, e particularmente do clã Banou Omeyda, que se opusera durante muito tempo a Maomé, em detrimento de Ali.

Othman governou de 644 a 656, favorecendo sua família - os Omeidas - de modo decisivo. Conquistou a Pérsia e estabeleceu o texto oficial do Corão, embora o tenham acusado de ter supresso passagens contrárias aos Omeidas.

A oposição a Othman se fundava especialmente no argumento de que só poderiam ser Califas os descendentes ou parentes de Maomé, idéia que vinha favorecer Ali. Tal propaganda teve penetração na Pérsia.

A demissão do conquistador do Egito, Amr, deu aos opositores a força de que necessitavam. Em meio aos tumultos surgidos, Othman foi assassinado por soldados revoltados, enquanto lia o Corão (17 de junho de 656). No mesmo dia, Ali ibin Abu Talib foi proclamado Califa em Medina, o que despertou as suspeitas de que ele seria o mandante do crime.

O governador de Damasco, Moawia ibn Abi Soyan, da família Omeida, reclamou a punição dos culpados, e Ali não o pôde atender. Coraishitas e medinenses abandonaram Ali, que venceu seus oponentes na "batalha do camelo" (656).

Moawia, porém, resistia-lhe na Síria. A batalha de Ciffin não decidiu a questão, pois foi interrompida por negociações, já que Ali aceitara que uma arbitragem resolvesse quem seria o califa.

Em Edhroh (658), os árbitros condenaram a Ali como culpado pelo assassinato de Othman, e o depuseram do califado. Moawia, porém, só foi proclamado califa em 660, e no ano seguinte Ali foi assassinado.

Com Moawia firmou-se a dinastia Omeida, e começou o drama dos Álidas que daria base ao desenvolvimento do shiismo.

A princípio, o primogênito de Ali, Hassan, reconheceu Moawia como Califa, mas, depois, ele teria sido envenenado por Moawia.

Quando Yazit I sucedeu a seu pai, Moawia, em 680, Hussein, segundo filho de Ali, se revoltou, mas foi vencido e morto em Kerbela, sendo massacrados os seus partidários (10 de outubro de 680). Desde então, a data da morte de Hussein - 10 de mouharren - é o grande dia de luto dos shiitas.

"L'éviction ou l'élimination du califat de Ali et de ses descendants, l'assassinat de certains d'entre eux ont provoqué chez les partisans des Alides plus qu'un sentiment de frustration: un désir de vengeance, une volonté de conquérir ce califat qui leur échappait. De là est née une sorte de mystique messianique qui a pris parfois des formes ésoteriques quand elle s'est refugiée dans la spéculation intellectuelle et théologique..." (R. Mantran, op. cit., p. 182). ["A supressão ou eliminação do califado de Ali e dos seus descendentes, o assassinato de alguns deles, provocaram entre os partidários dos Alidas mais que um sentimento de frustração: um desejo de vingança, uma vontade de conquistar este califado que se lhes escapava. Disso nasceu um tipo de mística messiânica que às vezes tomou formas esotéricas, quando refugiou-se na especulação intelectual e teológica..."]

Henry Corbin não concorda com esse posicionamento. Diz ele:

"Il importe encore de dire plus, pour dissiper l'équivoque crée en Occident par l'emploi abusif d'une terminologie parlant du "légitimisme shiite", ou du shiisme comme de la cause des "légitimistes" en Islam. Non pas, la cause des Imams ne représente nullement un légitimisme dynastique en simple compétition avec quelque dynastie rivale de ce monde, pas plus, avons-nous dit déjà que la dynastie du Graal n'est en rivalité avec une dynastie de ce monde ou avec la succession du Siège apostolique. Il l'est dérisoire de ramener la question à ces termes de rivalité. Il n'y a de rivalité possible qu'entre deux mondes situés sur le même plan. Or nous avons ici deux mondes différent: le monde du malakut domine de trop haut le monde de nos compétitions, pour avoir à rivaliser avec lui" (Henry Corbin, En Islam Iranien, vol. I, p. 79, Gallimard, Paris, 1971). [" É preciso ainda dizer mais, para dissipar o equívoco nascido no Ocidente pelo emprego abusivo de uma terminologia que fala de 'legitimismo shiita', ou do shiismo como causa dos 'legitimistas' no Islam. Nada disso, a causa dos Imames absolutamente não representa um legitimismo dinástico em simples competição com alguma dinastia rival deste mundo, nem mesmo, como já dissemos, da dinastia do Graal, que não rivaliza com uma dinastia deste mundo ou com a sucessão da Sé apostólica. É ridículo reconduzir a questão a estes termos de rivalidade. Não há rivalidade possível senão entre dois mundos situados no mesmo plano. Ora, nós temos aqui dois mundos diferentes: o mundo do malakut domina de muito alto o mundo das nossas competições, para ter que rivalizar com ele."]

Parece-nos que esse trecho de Corbin revela um temor excessivo com relação às impressões que o termo legitimismo poderia produzir no espírito de um francês que estivesse estudando o Islam. Consideramos válido o argumento de Corbin quanto à inexistência de um espírito de disputa dinástica nos adeptos de um sistema gnóstico plenamente elaborado e desabrochado, como o do Graal ou o do Shiismo.

Contudo, não se pode negar - cremos - que tenha havido influência legitimista na mente de Ali e de seus primeiros seguidores. Aliás, a fundação de uma dinastia fatimita no Egito revela a persistência de um legitimismo político, pelo menos em certas áreas do Shiismo.

Deste modo, julgamos dever concluir que dois tipos de causas, principalmente, geraram a gnose particular do Shiismo:

1) Causas doutrinárias, relacionadas com o sentido verdadeiro do Corão.

2) Causas históricas, relacionadas com a eliminação dos Alidas de suas pretensões ao califado.

 

O Shiismo nasceu da confluência da exegese esotérica do Corão com a tragédia de Ali e de seus filhos.

Rapidamente se formou um paralelismo entre o sentido exotérico do Corão, atribuído a Maomé, e o sentido esotérico - único verdadeiro - atribuído a Ali.

Distinguiu-se entre Shariat (religião positiva) e o Walaiat (interpretação escatológica do Imam); falou-se de Zahir (envelope) e de Bâtin (envolvido, sentido oculto).

Assim como o pneuma divino está aprisionado no corpo, assim também o sentido secreto (Bâtin) está preso no literal (Zahir). E já que, nas condições atuais, o Bâtin exige o Zahir, assim também a Walayat exige o Shariat, e o profeta exige um Imam.

Deste modo, distinguiram-se as funções do Profeta e a do Imam. O profeta teria a missão de revelar aos homens certas verdades, por ordem de Deus. Porém, suas palavras deveriam ser interpretadas por um Imam, que explicaria o verdadeiro sentido oculto do que o profeta dissera, e assim guiaria a comunidade dos crentes para a salvação. Esta só se alcançaria conhecendo o verdadeiro sentido da Revelação. Mais ainda, bastaria ter o conhecimento esotérico para se alcançar a salvação. O conhecimento do sentido esotérico era, por si, salvífico. Ora, esta é uma característica essencial da Gnose, que se define como um conhecimento salvífico.

"Sous cet aspect le Shiisme est bien la gnose de l'Islam", diz Corbin (H. Corbin, op. cit., vol. I, p. 46). ["Sob este aspecto, o Shiismo é bem a gnose do Islam."]

O maometismo aceitava a existência de profetas anteriores. No decorrer da História, Deus ir-Se-ia revelando progressivamente. A cada dia da criação teria correspondido um profeta: Adão, Noé, Abraão, Moisés, (Davi), Jesus e Maomé, teriam sido os 7 grandes profetas. Cada um deles, aprofundando e superando a revelação anterior, de modo que Maomé seria o sétimo e o maior de todos os profetas.

Para o Shiismo, cada um destes profetas teria tido seu Imam, e que teriam sido, respectivamente: Set, Sem, Ismael, Aarão, (Jônatas), Pedro e Ali.

Sempre, a cada profeta sucederia um Imam, pois que ao Shariat (religião positiva) deveria suceder a Hagikat (religião esotérica verdadeira).

A doutrina shiita diz ainda que cada um dos profetas teve 12 imames. Os imames sucessores de Maomé seriam:

Maomé (632)
Fátima Ali (661)
Hassan (669)           Hussein (680)
Ali Zaymol (711)
Mohammed Bakir (733)
Jafar Sadiq (765)
Ismail Musa al Kazim (799)
7º Mohammed ibn Ismail Ali Reza (818)
Mohammed Javad(835)
Ali al Naqui (868)
Hassan al Askari (874)
12º Mohammed al Mahdi (874)

Os seis primeiros Imames (até Jafar Sadiq) são aceitos quer pelos ismaelitas ou shiitas septimanos, quer pelos shiitas duodecimanos.

O primogênito de Jafar Sadiq (Ismail, o 6º Imam) faleceu antes que seu pai. Este, então, designou como Imam seu segundo filho, Mussa al Kazem. Com isso não concordaram alguns shiitas, que afirmavam que o imamato devia ser reconhecido no filho de Ismail, Mohammed ibn Ismail. Este desapareceu após a morte de seu pai, e os seus adeptos o consideram o Imam escondido, o Mahdi, que voltará um dia, na parusia final, para realizar o reino messiânico e a apocatastase. Este grupo ficou conhecido com o nome de Ismaelitas (do nome de Ismail ibn Jafar).

Os ismaelitas aceitam, pois, 7 Imames e julgam que o imamato deve ser reconhecido na linha direta da descendência de Ali, de primogênito em primogênito.

Os shiitas duodecimanos consideram que o Imam, além de ser descendente do profeta, tem que ser designado pelo Imam antecessor que, pela designação, reconhece nele a condição de impecabilidade e de infalibilidade, própria aos Imames.

Outra diferença importante entre shiismo duodecimano e o Ismaelismo está em que os duodecimanos fazem questão de manter o equilíbrio entre o Zahir e o Batin, isto é, entre o sentido literal e o sentido esotérico do Corão. Para eles, a eliminação do Zahir acarretaria a destruição da Shariat, com todas as suas implicações legais e morais, e levaria ao antinomismo. Por outro lado, a eliminação do Batin conduziria à idolatria da letra, ao puro legalismo "farisaico". Os shiitas duodecimanos se opõem assim, quer aos radicais ismaelitas, que querem destruir todo o Zahir - isto é, a casca de noz, para comer só o conteúdo, o Batin - quer aos literalistas do Corão, isto é, os sunitas.

Tanto os duodecimanos quanto os ismaelitas procuram justificar suas crenças relacionando o número dos Imames (12 ou 7) com toda uma série de analogias cósmicas e antropológicas. Assim, os duodecimanos lembram que há 12 signos no zodíaco; 12 falanges nos dedos da mão (14 falanges considerando também os polegares, correspondendo aos Imames, além de Maomé e Fátima, isto é, os 14 impecáveis); 12 vértebras dorsais, etc. Os ismaelitas lembram que as vértebras cervicais são 7, como são 7 os planetas, 7 as cores do arco-íris. Ambas as correntes shiitas entregam-se assim a especulações numerológicas que revelam influência neo-platônica e cabalista. E Corbin lembra a relação desses números com as especulações gnósticas (En Islam, vol. I, p. 55).

Cada Imam seria impecável, infalível, e mesmo divino, pois que em sua alma haveria uma partícula de divindade. Os 12 Imames teriam uma essência única em 12 hipostases. Essa essência única seria um "Imam éternel qui représente le plérome théophanique des Douze." (H. Corbin, En Iran IV, 188). ["Imam eterno que representa o pleroma teofânico dos Doze."]

Segundo Haydar Amoli:

"...que Mohammed et ses descendants (les douze Imams ) soient une Âme unique et une Essence unique, que par conséquent ils méritent tous même créance que Mohammed lui même, c'est une vérite manifeste n'échappant à personne et qui répose sur un triple fondement philosophique théosophique, comme tu l'apprendras au cours du présent livre" (H. Corbin, En Islam III, 183). ["...que Maomé e seus descendentes - os doze Imames - sejam uma Alma única e uma Essência única, que, por conseqüência, eles mereçam todos a mesma crença que o próprio Maomé, é uma verdade manifesta, não escapando a ninguém, e que se baseia sobre um triplo fundamento filosófico teosófico, como tu o saberás no decorrer deste livro."]

Os 12 Imames, junto com Maomé e Fátima, formariam o pleroma shiita dos 14 imaculados. Essas 14 pessoas na terra seriam mero reflexo de 14 entidades supra-terrestres, que Corbin compara com os pares de éons da gnose valentiniana:

"Médités ainsi dans leur essence et personne pré-éternelles les 'Quatorze Immaculés' assument un rôle d'être et une position qui son comparables, en un certain sens, avec les Aions de la gnose valentinienne, et s'il est vrai de dire que l'imamologie assume en théologie shiite un rôle qui est homologue au rôle qu'assume la christologie en théologie chrétienne, il faut l'entendre plutôt d'une christologie de type gnostique, voire d'une christosophie" (H.C., En Islam, vol. IV, pp. 207-208). ["Meditados assim na sua essência e pessoa pré-eternas, os 'Quatorze Imaculados' assumem um papel de ser, e uma posição que são comparáveis, num certo sentido, com os Aions da gnose valentiniana, e se é certo dizer que a imamologia assume na teologia shiita um papel homólogo ao papel que assume a cristologia na teologia cristã, é preciso entendê-lo mais como uma cristologia do tipo gnóstico, portanto de uma cristosofia."] Curiosamente, ao Imam se dão epítetos de "segundo Cristo" e de Elias (cf. H. Corbin, En Islam, vol. I, pp. 19 e 255).

Os shiitas afirmam costumeiramente:

"Le Qoran est l'Imam muet. L'Imam est le Qoran parlant" (H. Corbin, En Islam, vol. I, 208). ["O Corão é o Imam mudo. O Imam é o Corão falante."]

Afirmação que recorda fortemente a distinção rabínica entre Torá escrita e Torá oral.

O Imam maometano vem explicitar o sentido esotérico do Corão. Mas como este é o selo de todas as revelações anteriores, "L' imâmat mohammadien est ainsi l'ésotérique de toutes les religions antérieures, mais la manifestation de cette gnose ne sera complète, à découvert et sans voile, que lors de la Parousie du Mahdi, le douzième et dernier Imam, comme Sceau de la Walayat mohammadienne, laquelle est comme telle le Sceau de la Walayat universelle" (H. Corbin, En Islam, vol. I, p. 255). ["O imamato moamediano é assim o esotérico de todas as religiões anteriores, mas a manifestação desta gnose não será completa, descoberta e sem véu, senão quando da Parusia do Mahdi, o décimo segundo e último Imam, como Selo da Walayat maometana, a qual é como o Selo da Walayat universal."]

Daí o "Prône de la grande Déclaration" (Sermão da Grande Declaração) Khotbat al Bayan, do 1º Imam declarar:

"Je suis le signe du très Puissant. Je suis la gnose des Mystères (...) Je suis le Premier et le Dernier (...) Je suis la Face de Dieu (...) Celui qui dans l'Évangile est appellé Élie..." (H. Corbin, Hist. de la Ph. I, vol. I, pp. 76-77). ["Eu sou o sinal do Todo- Poderoso. Eu sou a gnose dos mistérios (...) Eu sou o Primeiro e o Último (...) Eu sou a face de Deus (...) Aquele que no Evangelho é chamado Eli..."]

O conhecimento que o homem tem de si mesmo, o conhecimento do Imam, e o de Deus são um só conhecimento. E este seria um conhecimento salvífico. Está aí bem marcado o caráter gnóstico do Shiismo e do Ismaelismo.

A doutrina shiita sobre o Imam teve que enfrentar problemas análogos aos da Cristologia católica.

Realmente, assim como Cristo, o Imam teria duas naturezas: divina e humana. Mas, enquanto o cristianismo aceitou que na única pessoa de Cristo há duas naturezas integrais, perfeitas (Cristo é inteiramente Deus e inteiramente homem), o Shiismo repudia a noção de Encarnação. O Imam não é Deus encarnado num homem. No Imam, haveria uma teofania, e não uma encarnação. Ele não é Deus, mas uma manifestação de Deus. O Imam também não seria plenamente humano. Por exemplo, segundo os shiitas, o Imam não teria corpo como os demais homens. Seu corpo não produziria sombra. Dizem os ismaelitas que o corpo "glorioso" do Imam não tem as propriedades físicas naturais aos demais corpos, e seria produzido pela matéria astral mais sublime, precipitada na terra sob forma de orvalho.

"Lorsqu'ils parlent du nâsut ou humanité de l'Imam, le souci des auteurs ismaeliens est de sugerer que le corps de l'Imam n'est pas un corps de chair, constitué comme celui des autres humains. Ce corps résulte de toute une alchimie cosmique opérant sur les corps éthériques (nafs rihiya, l'âme d'éfluve'), des adeptes fidèles. Ces restes 'étheriques' s'élévent de ciel en ciel, puis redescendent purifiés invisibles à la perception optique, avec des irradiations lunaires, et se déposent comme une rosée celeste à la surface d'une eau pure ou de quelques fruits. Eau et fruis sont consommés par l'Imam du moment et par son épouse, et la rosée céleste devient le germe du corps subtil du nouvel Imam. Simple enveloppe ou gaine (ghilef), on le désigne comme jism Kafuri, corps qui a la subtilité et la blancheur du camphre, c'est ce corps qui constitue l'humanité (nasut) de l'Imam." (H. Corbin, Hist. de la Ph. pp. 132-133, vol. I). ["Quando eles falam do 'nâsut' ou humanidade do Imam, o cuidado dos autores ismaelitas é de sugerir que o corpo do Imam não é um corpo de carne, constituído como o dos demais humanos. Este corpo é o resultado de toda uma alquimia cósmica operando sobre os corpos etéreos - 'nafs rihiya', a alma do eflúvio - dos adeptos fiéis. Estes restos 'etéreos' se elevam de céu em céu, depois voltam a descer purificados e invisíveis à percepção ótica, com irradiações lunares, e se depositam como um orvalho celeste na superfície de uma água pura ou de alguns frutos. Água e frutos são consumidos imediatamente pelo Imam do momento e por sua esposa, e o orvalho celeste se torna o germe do corpo sutil do novo Imam. Simples envelope ou revestimento - 'ghilef' -, chamado de 'jism Kafuri', corpo que tem a sutileza e a brancura da cânfora, é este corpo que constitui a humanidade - 'nasut' - do Imam."]

Aliás, é interessante relatar que o primeiro homem, Adão, teria sido constituído, por Deus, de argila e de uma substância emanada pela divindade. Tal substância de luz, introduzida em Adão, teria passado de profeta em profeta até chegar em Abdel Mottalit, antepassado de Maomé e de Ali. Em Abdel Mottalib a substância de luz se dividiu em duas: a primeira se manifestou em Maomé, e a segunda em Ali (cf. H. Corbin, En Islam, vol. I, p. 100).

Esta crença é muito parecida com as doutrinas gnósticas sobre a natureza espiritual do primeiro homem antes de cair em pecado, e que se reencontram, por exemplo, nos textos do cabalista cristão do século XV, Petrus Galatinus, e nas românticas visões de Anna katharina Emmerick, tais como foram redigidas por Clemens Brentano, no século XIX.

Há, pois, um verdadeiro "docetismo" shiita quanto à pessoa do Imam, embora Corbin não aceite a expressão docetismo, aplicada em seu sentido comum, ao Imam.

Corbin considera que a união do 'nasut' (humanidade) com a 'lahut' (divindade), no Imam, não levou os shiitas, jamais, à idéia de união hipostática e de Encarnação. O Shiismo preferiu sempre as soluções gnósticas às soluções católicas, no que se refere à união de divindade e de corporalidade (cf. H. Corbin, Hist. de la Ph., vol. I, pp. 74 e 75 e p. 133).

 


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Online, 29/04/2024 às 04:00:28h