Religião-Filosofia-História



Os ismaelitas, em seu ódio contra a shariat maometana, eram aliados potenciais dos cruzados. Estes logo procuraram manter contatos diplomáticos com os assassinos e souberam explorar a ameaça que o esoterismo ismaelita representava para o Islam sunita.

"Les ismailiens ou 'assassins' constituaient aussi pour l'Islam iranien et syrien un fléau intérieur toujours menaçant. Tandis que les Musulmans étaient tout à la défense du pays contre les entreprises des croisés, ils risquaient toujours d'être poignardés dans le dos par la redoutable secte. En temps de paix même les communautés mussulmantes n'étaient jamais en sécurité" (R. Grousset, op. cit., vol. I, p. 520). ["Os ismaelinos ou 'assassinos' constituiam também para o Islam iraniano e sírio um flagelo interior sempre ameaçador. Enquanto que os Muçulmanos estavam totalmente dedicados à defesa do país contra os ataques dos cruzados, eles sempre corriam o risco de serem apulhalados pelas costas pela temível seita. Mesmo em tempos de paz as comunidades muçulmanas nunca estavam em segurança."]

O reino franco de Jerusalém soube explorar bem o apoio dos ismaelitas de Alamut, para dividir a resistência islâmica no Oriente Médio. Contatos mais especiais foram mantidos entre as Ordens de Cavalaria cristãs e os ismaelitas. Vários pontos tendiam a aproximar as ordens cristãs do Ismaelismo: a dedicação total à fé, renunciando a tudo; o voto de obediência; o espírito de ordem monástico-guerreira; o fato de serem uma cavalaria espiritual, etc. Os templários usavam até as mesmas cores que os ismaelitas: o branco e o vermelho. Muitos cavaleiros foram iludidos pelas alusões que assassinos faziam a Jesus e ao Evangelho de S. João, como por seus rituais eucarísticos e sua simbologia da cruz. Ignoravam os cristãos - pelos menos boa parte deles - os significados esotéricos e gnósticos da simbologia ismaelita.

O dominicano Yves le Breton, intérprete da embaixada que S. Luís enviou a Nosairi, se mostrou estupefato diante de certas idéias ismaelitas. Este espanto de um dominicano do século XIII é extremamente interessante, porque mostra até que ponto a Idade Média ignorava o gnosticismo e sua simbologia. E os dominicanos eram os encarregados do combate pela fé...

"Yves le Breton fut frappé de l'opposition absolue entre le shiisme extremiste de la secte et l'islamisme officiel. 'Yves le Breton, nous confesse Joinville, trouve qui li Viex de la Montaingne ne cré oit pas en Mahommet, ainçois creoit en la loy de Haali'. L'antagonisme du Sunnisme et du Shiisme est fortement souligné par notre chroniqueur: 'Tuit cil qui croient en la loy (de) Mahommet sont mescréant; et aussi tuit cil qui croient en la loy (de Mahommet) dient que cil qui croient en la loy (de Mahommet) dient que cil qui croient en la loy (de) Haali sont mescréant'. Joinville parlant toujours d'après Yves le Breton mentionne ensuite chez les Ismailliens la croyance à la métempsicose, avec réencarnations particuliérement heureuses pour les Fidais morts en exécutant les ordres donnés par leur sheikh. 'Quand un hom se fait tuer pour le commandement (de) son signour, l'âme de li en va enplus aisié cors qu'elle n'estoit devant'. Puis une alusion non moins interessante au syncrétisme philosophique et religieux qui était à la base des croyances ismailiennes. Yves le Breton ne fut pas médiocrement étonné de découvrir dans la bibliothèque du "Vieux de la Montagne" un soi-disant discours du Christ à Saint-Pierre, plus surpris encore lorsque le sheikh lui expliqua que dans la doctrine ismaelienne, Saint-Pierre était une réencarnations d'Abel, de Noé et d'Abraham" (R. Grousset, op. cit., vol. III, pp. 517-518). ["Yves le Breton ficou chocado com a oposição absoluta entre o shiismo extremista da seita e o islamismo oficial. 'Yves le Breton' nos confessa Joinville, acha que o Velho da Montanha não crê mais em Maomé, mas sim na lei de Haaly'. O antagonismo do Sunismo e do Shiismo é fortement salientado pelo nosso cronista: ' Todos os que crêm na lei de Ali dizem que os que creem na lei de Maomé são incrédulos; e tambem todos os que crêm na lei de Maomé dizem que aqueles que crêm na lei de Haali são incrédulos'. Joinville falando sempre conforme Yves le Breton, menciona, em seguida, a crença na metempsicose entre os Ismaelianos, com reencarnações especialmente felizes para os Fidawis mortos cumprindo ordens dadas por seu sheikh. 'Quando um homem se faz matar por ordem do seu senhor, sua alma vai para um corpo mais perfeito do que aquele em que estava antes.' Depois uma alusão não menos interessante quanto ao sincretismo filosófico e religioso que estava na base das crenças ismaelianas. Yves le Breton não ficou mediocremente admirado em descobrir na biblioteca do 'Velho da Montanha' um suposto discurso de Cristo a S. Pedro, e mais surpreso ainda, quando o sheikh lhe explicou que, na doutrina ismaelina, S. Pedro era uma reencarnação de Abel, de Noé, e de Abraão."] Evidentemente, o tal discurso de Jesus a Pedro devia ser um tratado gnóstico apocrifo, talvez o "Apocalipse de Pedro" ou os "Atos de Pedro", recentemente descobertos em Nag Hamadi (cf. Jean Doresse, Les livres secrets des gnostiques d'Égypte, pp. 251-252, Plon, Paris, 1958).

Outro ponto que devia aproximar os ismaelitas das ordens de cavalaria era que eles nada podiam contra elas. "Li Viex de la Montaingne n'i puet riens gaignier, se il fesoit tuer le maistre dou Temple ou de l'Ospital, car il savoit bien que, se il en fesit un tuer, l'en y remeist tantost (=aussitôt) un autre aussi bon" (Joinville, 453, apud R. Grousset, op. cit., vol. III, p. 517). ["O Velho da Montanha não podia ganharr nada se ele mandasse matar o mestre do Templo ou do Hospital, porque ele sabia bem que, se ele os fizesse matar, logo enviariam outro tão bomquanto o anterior."]

Quando os cruzados dominaram a Palestina e parte da Síria, os ismaelitas de Alamut, durante bom tempo, pagaram tributos às ordens de cavalaria cristãs, para que elas garantissem a segurança das comunicações entre os castelos dos Assassinos. Os contatos entre os Assassinos e os Templários foram tão longe que estes foram acusados de se terem contaminado com a gnose ismaelita. Frederico II trouxe do Oriente muitos ismaelitas que viviam livremente em sua corte. Aliás, ele também foi acusado de ter aceitado as idéias gnósticas dos Fidawis. Curiosamente, os poetas italianos do "Dolce Stil Nuovo" formavam um grupo secreto - os "Fedeli d'Amore" - que lembra o livro de mística shiita de Ruzbehan, o "Jasmim dos Fiéis de Amor" (cf. Henry Corbin, En Islam, Vol. III, p. 66). E Frederico II, tanto quanto Dante, foram poetas do Dolce Stil Nuovo e membros dos "Fedeli d'Amore" (cf. Luigi Valli, Il linguagio segreto di Dante e dei "Fedeli d'Amore, Biblioteca di Filosofia e Scienze, nº 10, Roma, 1928).

O próprio S. Luís recebeu os embaixadores do Velho da Montanha, e retribuiu a visita, mandando seus representantes até um castelo dos ismaelitas. Os ismaelitas temiam então a revolta mameluca no Egito.

"Le 'Vieux de la Montagne' envoya à Louis IX sa chemise et son anneau, avec divers cadeaux et curiosités, un élephant et une giraffe en cristal, un jeu d'échecs de cristal et d'ambre. Louis IX répondit par d'autres cadeaux, grant foison de joiaus, escarlates, coupes d'or et frains d'argent". C'était une véritable alliance qui se nouait. Luis IX la scella en envoyant aux ismailiens, en leurs chateaux du Jebel Nosairi une ambassade, dont fit partie, comme interprète le dominicain Yves le Breton, qui connaissait bien l'arabe" (cf. R. Grousset, op. cit., vol. III, p. 517). ["O ' Velho da Montanha ' enviou a Luis IX sua camisa e seu anel, com diversos presentes e curiosidades, um elefante e uma girafa em cristal, um jogo de xadrez de cristal e de âmbar. Luis IX respondeu por outros presentes, jóias em profusão, escarlates, taças de ouro e "frains" de prata'. Era uma verdadeira aliança que se estabelecia. Luis IX a selou enviando aos ismaelinos, nos seus castelos de Jebel Nosairi, uma embaixada, da qual fez parte, como intérprete, o dominicano Yves le Breton, que sabia bem o árabe."]

 

1 - O problema do messianismo

O messianismo ismaelita de Alamut, cristalizado na proclamação da Grande Ressurreição "Qiyamat al Qiyamat" de 1166, põe problemas especiais. Antes de analisar suas características particulares, queremos indicar algumas observações genéricas sobre o messianismo. Julga-se, em geral, que a idéia de um messias salvador é tipicamente judaico-cristã. Entretanto, não se deve supor, de modo algum, que em outras religiões tal fenômeno não exista. Pelo contrário, o messianismo é um fenômeno universal, embora ele tenha tido maior desenvolvimento na tradição judaico-cristã. Isso deve levar a supor que as causas do messianismo não estão radicadas numa revelação positiva, mas que deitam suas raízes na própria natureza humana.

É comum encontrar-se uma certa confusão entre messianismo, milenarismo e utopia. Podemos considerar o messianismo como a manifestação religiosa visando a libertação dos males que ora afligem a natureza humana. Quando essa libertação afeta apenas os problemas político-sociais, através de uma ação racional e naturalista, temos a utopia. Quando visa-se uma redenção moral, tem-se o messianismo cristão. Quando afirma-se que a redenção messiânica liberta o homem dos entraves da lei moral e da própria contingência de ser criado, temos o messianismo ontológico, antinomista e gnóstico.

Podemos, então, dizer que a utopia é uma forma laicizada do messianismo, e que o messianismo milenarista é uma utopia sacralizada. O milenarismo seria a realização da redenção gnóstica efetuada, aqui e agora, na História, por uma irrupção no espírito divino no mundo contingencial criado. Gershon G. Scholem faz uma distinção fundamental entre utopia e messianismo milenarista, no livro em que analisa o conceito judaico do Messias.

"The Bible and the apocalyptic writers know of no progress in history leading to the redemption. The redemption is not the product of immanent developments such as we find it in modern Western reinterpretations of Messianism since the Enlightenment where, secularized as the belief in progress, Messianism still displayed unbroken and immense vigor. It is rather transcendence breaking in upon history an intrusion in which history itself perishes, transformed in its ruin because it is struck by a beam of light shining into it from an outside source... The apocalyptists have always cherished a pessimistic view of the world. Their optimism, their hope, is not directed to what history will bring forth, but so that which arise in its ruin, free at last and undisguised" (G. Scholem, The Messianic Idea in Judaism, p. 10, Schoken Books, New York, 1971). ["Os escritores da Bíblia e do Apocalipse sabem que não há progresso na história que leva à redenção. A redenção não é o produto de desenvolvimentos imanentes, tais como os encontramos em modernas interpretações ocidentais do Messianismo, desde o Iluminismo em que, secularizado como crença no progresso, o Messianismo desenvolve ainda inquebrantável e imenso vigor. É, antes, a transcendência irrompendo na História, como uma intrusão na qual a própria História perece, transformada em suas ruínas porque ela é atingida por um raio de luz brilhando sobre ela desde uma fonte exterior a ela. Os apocalípticos sempre acalentaram uma visão pessimista do mundo. Seu otimismo, sua esperança, não é direcionada para o que a história trará adiante, mas somente aquilo que surgir de suas ruínas, livre, pelo menos, e sem disfarce."]

E Scholem afirma que a vitalidade particular do messianismo judaico reside na tensão dialética entre uma tendência racionalista utópica e uma segunda tendência mística e apocalíptica, que detesta a razão e o mundo criado (cf. G. Scholem, The Messianic Idea in Judaism, pp. 26-27). Estas duas tendências se repetem em todos os fenômenos messiânicos. Para certos observadores superficiais, o messianismo seria um fenômeno causado apenas e tão somente pela economia.

A miséria geraria o apelo ao messias redentor. Contra essa análise superficial se coloca Norman Cohn: "Compte tenu de la complexité de ces différents facteurs il demeure que si le dénuement, la misère et l'opression qu'accompagnaient souvent cette depéndence, pouvait suffire à faire naître un milénarisme révolutionaire, celui-ci aurait connu un essor considérable dans les rangs de la paysannerie médiévale. Ce ne fut que très rarement le cas" (Norman Cohn, Les fanatiques de l'Apocalypse, p. 35, Julliard, Paris, 1968). ["Levando-se em conta a devida complexidade destes diferentes fatores resta que, se o despojamento, a miséria e a opressão que freqüentemente acompanham esta dependência, pudessem bastar para fazer nascer um milenarismo revolucionário, este teria conhecido um impulso considerável nas fileiras do campesinato medieval. Este caso só ocorreu muito raramente"]

E o mesmo Norman Cohn mostra que, pelo contrário, o milenarismo messiânico teve um grande êxito entre os camponeses alemães abastados, no século XVI. "Le bien être des paysans allemands était plus grand que jamais: en particulier, les paysans qui prirent partout l'initiative de l'insurrection, loin d'y être poussés par la misère ou le désespoir, appartenaient à une classe montante et sûre d'elle même. C'étaient des hommes dont la position s'améliorait socialement et economiquement et qui, pour cette raison même s'irritaient des obstacles mis à leur ascension" (N. Cohn, op. cit., p. 254). ["O bem estar dos camponeses alemães era maior que nunca: principalmente, os camponeses que tomaram em todos lugares a iniciativa da insurreição, longe de serem levados a isso pela miséria ou pelo desespero, pertenciam a uma classe ascendente e segura de si própria. Eram homens cuja posição melhorava social e economicamente e que, por esse mesmo motivo, se irritavam com obstáculos colocados à sua ascenção."]

O próprio Gramsci, um teórico marxista muito citado hoje, afirma: "On peut exclure que, par elles mêmes, les crises économiques imédiates produisent des évenements fondamentaux; elles ne peuvent que créer un terrain plus favorable à la diffusion de certains modes de penser, de poser et de résoudre les questions qui embrassent tout le développement ultérieur de la vie de l'État" (Antonio Gramsci - Notes sur Machiavel, in Gramsci dans le texte, Ed. Sociales, Paris, 1977, p. 562). ["Pode-se excluir que, por si próprias, as crises econômicas imediatas produzam acontecimentos fundamentais; elas podem criar somente um terreno favorável à difusão de certos modos de pensar, de colocar e de resolver as questões que englobam todo o desenvolvimento ulterior da vida do Estado."] Pierre Gaxotte disse que "a miséria pode suscitar motins, mas não origina revoluções" (P. Gaxotte, A Revolução Francesa, p. 23, Ed. Tavares Martins, Porto, 1945).

Nós podemos parodiá-lo dizendo que a miséria pode favorecer o messianismo, mas não causá-lo. Norman Cohn defende a tese de que os messianismos milenaristas surgem nas regiões em que se dá um desenraizamento estrutural da população, que a leva a sentir-se estrangeira, no meio em que vive. Quando uma certa camada da população abandona o ambiente ou as estruturas sociais que a originaram, para viver noutra situação diversa, é comum dar-se uma erupção messiânica.

"Des promesses millenaristes et illimitées, exprimées avec une conviction illimitée et prophétique devant un certain nombre d'hommes déracinés et désespérés dans le cadre d'une societé dont les normes et les liens traditionels sont en voie de desintégration telle est semble-t-il, l'origine de ce fanatisme souterrain qui constituait une menace perpétuelle pour la societé médievale. Il n'est pas interdit de suggerer que telle est également l'origine des gigantesques mouvements fanatiques qui, à notre époque, ont sécoué le monde entier" (N. Cohn, op. cit., p. 305). ["Promessas milenaristas e ilimitadas, expressas com uma convicção ilimitada e profética diante de uma certa quantidade de homens desenraizados e desesperados, no quadro geral de uma sociedade, cujas normas e laços tradicionais estejam em via de desintegração, tal é, parece, a origem deste fanatismo subterrâneo que constituía uma ameaça perpétua para a sociedade medieval. Não é proibido sugerir que tal é igualmente a origem dos gigantescos movimentos fanáticos que, na nossa época, sacudiram o mundo todo."]

Portanto, o messianismo surge sempre numa sociedade que sofre uma crise estrutural, e não meramente econômica, e que põe em cheque a cosmovisão de um grupo social. A crise faz com que um grupo, desenraizado de suas estruturas naturais, se sinta estrangeiro em seu próprio meio. Quando a crise se aprofunda, o homem que a sofre se sente estrangeiro no próprio universo. E esta é uma situação típica da mentalidade gnóstica, conforme sublinham Hans Jonas e Henri Charles Puech. Podemos dizer que a mentalidade gnóstica tem sempre as seguintes características:

1º) Uma insatisfação profunda contra a situação do homem não só do ponto de vista político, econômico e social, mas principalmente do ponto de vista metafísico.
A gnose é uma revolta antimetafísica.

2º) Por isso, o mundo criado é visto como sendo algo ontologicamente mau.

3º) Que a situação atual do homem é fruto de um drama no próprio evolver da divindade, e que, por causa deste drama, o homem foi aprisionado no mundo real, contingente. Porém, o homem é um estrangeiro no Universo.

4º) Esta situação pode e deve ser mudada, e o próprio homem tem os meios para libertar-se de todo o mal.

5º) O meio para realizar isso acha-se no próprio conhecimento (gnose) do que é o homem, do que é o Universo e do que é a Divindade.

O conhecimento, por si, salvaria o homem.

A gnose é, pois, um conhecimento salvífico (cf. Eric Voegelin, Il Mito del Mondo Nuovo, Rusconi, Milano, 1976, pp 20-21).

O messianismo gnóstico consiste na expectativa de uma libertação pessoal e universal, patrocinada por uma intrusão mágica do espírito divino na História. Tal intrusão não seria fruto do progresso social, e sim de uma transmutação de tipo alquímico de todo o universo, que passaria bruscamente do estado atual para o estado imaginal, na "oitava" metafísica superior, para usar a feliz expressão de Henry Corbin.

Tal intrusão mágico-espiritual transformaria a História, fazendo desaparecer todo o mal. Realizar-se-ia, então, o milênio.

Características do messianismo quiliástico seriam:

1º) A irracionalidade. A lógica racional se funda numa ilusão causada pelo universo material.

2º) Dialética. À lógica racional, que afirma os princípios de identidade, de contradição, de causalidade e de finalidade, a gnose opõe a lógica dialética, para a qual "o ser é o que não é, e não é o que é", em que os contrários são iguais, e na qual não se aceitam os princípios de causa ou de finalidade.

3º) Mentalidade analógica e mágica, e não científica. A gnose, repudiando a lógica normal, defende o princípio das analogias entre Deus, o universo e o homem, no sentido que qualquer mudança em um deles acarreta necessariamente mudanças nos outros. Daí o espírito mágico. É o que Corbin chama de lei das correspondências (cf. H.C., En Islam Iranien, vol. I, p. 168).

4º) Organicismo e não mecanicismo. Para a gnose o universo é um grande ser vivo regido, não pelas leis da mecânica, mas sim pelas biológicas. Daí o culto da natureza.

5º) Escatologismo. Toda religião gnóstica vive na expectativa de um messianismo escatológico que transformará o homem, a sociedade, a História e o Universo.

6º) Igualitarismo anárquico. O messianismo milenarista gnóstico, afirmando que todo homem é divino, recusa que haja qualquer superioridade. Ele tende sempre ao anarquismo.

7º) Antinomismo. A lei que limita o homem teria sido obra do deus mau, o demiurgo criador da prisão cósmica. Toda lei, portanto, terá que ser anulada e destruída, no tempo de Redenção. Daí a tendência ao deboche. Curiosamente, porém, e de modo paradoxal, o gnóstico se prepara para o reino da liberdade moral absoluta, pela observância de mil preceitos ascéticos. Dialeticamente, é a ascese que levará ao antinomismo.

8º) Divinização e aniquilamento do eu. Dialeticamente também, leva-se a pessoa a considerar divino o seu eu superior, e ao mesmo tempo em que se o exalta, visa-se a sua aniquilação no mar da divindade.

9º) Sectarismo ecumênico. Dialeticamente ainda, dá-se a coexistência de duas tendências opostas nos movimentos milenaristas gnósticos: a) um ecumenismo largo, tolerante, que busca congregar todas as religiões pelo seu conteúdo mais profundo e secreto; b) um sectarismo intolerante contra toda religião positiva que se interponha a esse ecumenismo.

10º) Sacralização da utopia. Desprezando o mundo, o tempo e a História, o gnóstico sonha, porém, em realizar na História, aqui e agora, a divinização de todas as coisas. Milenarismo messiânico é a sacralização gnóstica das utopias.

 

Aplicando esses princípios ao caso concreto do messianismo de Alamut, veremos que nele dão-se todas as características de um movimento messiânico gnóstico. Vimos que as doutrinas shiita e ismaelita são consideradas por Henry Corbin como gnoses por excelência do Islam.

No caso histórico do Ismaelismo, podemos verificar que nele dão-se exatamente as condições apontadas por Norman Cohn como causadoras do fenômeno milenarista: o desenraizamento estrutural de uma população. Com efeito, o Irã do século X há tempos sofria a opressão de povos estrangeiros. Árabes e turcos tiranizavam a etnia persa há quatro séculos. A essa situação de opressão política se acrescentava a imposição do Islam.

Contudo, as tradições religiosas persas não haviam morrido. Mazdeísmo e Maniqueísmo mantinham as cosmovisões gnósticas no fundo da alma popular. O antigo Saoshyant transformava-se agora também em libertador da tirania política e da tirania da letra da Shariat. Não há dúvida que foi essa situação dos persas, estrangeiros em sua própria pátria pela dominação árabe islamita, que os impelia a preferir o shiismo ao sunismo. Ali era o rejeitado e o estrangeiro no Islam.

No século X, a intrusão dos turcos seldjúcidas abalou o império dos Califas árabes, abrindo a possibilidade de uma real libertação persa. É essa sensação de estar dominado, tiranizado e estrangeiro em seu próprio meio natural que fará o persa inclinar-se para o Batin, o sentido esotérico tiranizado pela letra do Shariat. Libertar o Batin é libertar-se a si mesmo. Libertar-se do poder do profeta, seguindo o Imam Mahdi, e com ele se identificando, é libertar-se do próprio cosmos e da própria contingência, alcançando a "ilha verde", a terra prometida, o mundo sem males da Ressurreição da Ressurreição. O Shiismo é a religião "des expatriés de l'Islam" (dos expatriados do Islam) (H. Corbin, En Islam Iranien, vol. I, p. 90).

O Shiismo e o Ismaelismo sentiam "la blessure de l'être, comme le resultat d'une emprise satanique et destructice qu'il faut combattre pour que l'être soit restauré dans son integrité. Dans ce dernier cas, ce qui domine c'est l'idée de l'apokatastasis, de toutes choses en leur pureté et plenitudes originelles. C'est cette idée qui a dressé la conscience zoroastrienne contre les puissances ahrimaniennes: c'est elle que l'on retrouve dans l'éthos shiite. Haydar Âmoli identifiait le XII Imam avec le Paraclet de l'Évangile; Qotboddin Ashkevari l'identifiait avec le dernier des trois Saoshyant du zoroastrisme. Millenaire du dernier Saoshyant et millenaire du dernier Imam sont le lieu de ce combat" (H.C., En Islam, vol. IV, p. 458). ["a chaga do ser, como resultado de um empreendimento satânico e destrutivo que é preciso combater, para que o ser seja restaurado na sua integridade. Neste último caso, o que domina é a idéia da apocatastase de todas as coisas na sua pureza e plenitude originais. É esta idéia que levantou a consciência zoroastriana contra as potências ahrimanianas: é ela que se reencontra no ethos shiita. Haydar Ämoli identificava o XII Imam com o Paráclito do Evangelho; Qotboddin Ashkevari identificava-o com o último dos três Saoshyant do zoroastrismo.O milenário do último Saoshyant e o milenário do último Imam são os lugares deste combate."]

Era essa visão antimetafísica que levava o Shiismo e o Ismaelismo a terem uma mentalidade anti-racionalista e antilógica. Para o Shiismo, foi Iblis quem inventou o silogismo. Mais que a razão, valia o sonho; mais que o cérebro, valia o coração, o qual não utiliza uma dialética racional ou conceitual (cf. Henry Corbin, En Islam Iranien, vol. I, pp. 228-229).

Também vimos que, para as doutrinas shiita e ismaelita, dava-se uma espiritualização da matéria através da geração do corpo do Imam. De certa forma, pois, toda a matéria espiritualizar-se-ia através do Imam, passando para um Universo superior espiritual e vivo. O espírito escatológico é, por assim dizer, a própria alma do Shiismo e do Ismaelismo. O shiita e o ismaelita vivem na expectativa contínua da Parusia do Imam da Ressurreição. Foi essa mentalidade escatológica que reuniu os Fidawis em Alamut, em torno de Hassan Sabbah, e que explodiu na proclamação da Grande Ressurreição de 1166 feita por Hassan II.

Na Parusia ismaelita, isto é, no 7º dia, que é o dia do Imam Mahdy, "nulle âme ne commandera à une autre âme", e então "l'ordre n'apartiendra qu'à Dieu" (H. Corbin, En Islam, vol. IV, p. 298). ["nenhuma alma mandará em outra alma", e então... "a ordem pertencerá somente a Deus."]

Em Alamut, a ascese rigorosa e antimetafísica, própria das seitas gnósticas, acabou conduzindo ao terrorismo e ao antinomismo extremo, em que toda prescrição legal foi abolida. A Qiyamat al Qiyamat pôs fim ao reino da Shariat. Cada Fidawi, identificando-se misticamente ao Imam, podia afirmar que era o próprio Deus. A mística ismaelita, como a de toda gnose, exaltava o eu superior até aniquilá-lo no abismo do Nada divino. O Ismaelismo levou o ecletismo ao ponto mais extremo.

Se a Pérsia foi, na História, a encruzilhada de muitas crenças, o Ismaelismo foi, doutrinariamente, o ponto de convergência de muitas religiões diversas. Nele se acham elementos mazdeanos, zoroastrianos, maniqueus, cristãos, judaicos, gnósticos, hindus e ismaelitas. Esse largo ecumenismo esotérico contrastava, porém, com a intolerância mais rigorosa contra as religiões positivas, especialmente contra o Islam sunita.

Os assassinos, como vimos, não hesitaram em aliar-se aos cruzados, para destruir o Islam do Zahir. Finalmente, deve dizer-se que o Ismaelismo de Alamut sucumbiu à grande tentação shiita, que é a de tentar realizar já na História o que só se poderia dar no além. Henry Corbin pergunta-se "si le paradoxe le plus périlleux, dramatique aussi, par lequel puisse passer une religion ésotérique n'est pas l'épreuve d'un triomphe temporel. Son triomphe ne pourrait être qu'eschatologique sinon lorsqu'une religion eschatolgique doit s'adapter aux conditions de l'histoire extérieure, est-il bésoin de se demander si le triomphe politique ne s'accompagnera pas d'une crise profonde de la doctrine spirituelle?" (H. Corbin, En Islam, vol. I, p. 77). ["se o paradoxo, o mais perigoso, o mais dramático também, pelo qual possa passar uma religião esotérica não é a prova de um triunfo temporal. Seu triunfo não poderá ser senão escatológico, se não, quando uma religião escatológica deva adaptar-se às condições da história externa, é preciso perguntar-se se o triunfo político não será acompanhado de uma crise profunda da doutrina espiritual?"]

O Ismaelismo triunfou historicamente graças à personalidade de Hassan ibn Sabbah, e foi esse próprio triunfo histórico em Alamut que criou as condições para o fracasso da seita dos Assassinos. O triunfo concreto, aqui e agora, punha em cheque a doutrina ismaelita, que mandava desprezar o mundo real. A contradição só seria vencida, ou pelo abandono das posições conquistadas, ou pela proclamação do advento do Imam. Renunciar às conquistas era impossível; negá-las era loucura. Hassan II sucumbiu à tentação e proclamou o Paraíso do Imam e a Ressurreição da Ressurreição. Mas o mundo real continuou tal e qual. Alamut ruiu.

 

1) Henry Corbin, En Islam Iranien, 4 vols., Gallimard, Paris, 1972.

2) Henri Corbin, Histoire de la Philosophie Islamique, 3 vols., Gallimard, Paris, 1964.

3) Jean During, Aux Origines du Sacré - Islam le combat mystique, R. Laffont, Paris, 1975.

4) J. Duchesne Guillemin, A religião iraniana, in As religiões do Antigo Oriente, Flamboyant, Paris.

5) Jean Claude Frère, L'Ordre des Assassins, Grasset, Paris, 1973.

6) René Grousset, Histoire des croisades et du Royaume Franc de Jerusalem, 3 vols., Plon, Paris, 1936.

7) Geo Windengren, Fenomenologia de la Religion, Cristiandad, Madrid, 1976.

8) Hanna Zakarias, De Moïse à Mohammed, chez l'auteur, Cahors, 1955.

9) Gershom Scholem, The messianic Idea in Judaism and other essays on jewish spirituality, Schoken Books, New York, 1971.

10) Gershom Scholem, Les origines de la Kabbale, Albin Michel, Paris, 1966.

11) Gershom Scholem, A Cabala e seu Simbolismo, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1978.

12) Robert Mantran, L'expansion Musulmane (VII-XI siècles), PUF, Nouvelle Clio, Paris, 1969.

13) Norman Cohn, Les fanatiques de l'Apocalipse, Julliard, Paris, 1962.

14) Jean Touchard, Historia de las Ideas Políticas, Editorial Tecnos, Madrid, 1975.

15) Karl Popper, A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Itatiaia, Edusp, B. Horizonte, São Paulo, 1977.

16) Maria Isabel P. Queiroz, O Messianismo no Brasil e no Mundo, Alfa-Ômega, São Paulo, 1977.

17) Hans Jonas, La Religion Gnostique, Flammarion, Paris, 1978.

18) H. Charles Puech, Enquête sur la Gnose, 2 vols., Gallimard, Paris, 1978.

19) H.C. Puech, Le Manichéisme, in Histoire Générale des Religions, sous la directionde M.M. Maxime Gorce et Raoul Mortier, 4 vols., Librairie Aristide Quillet, Paris, 1948.

20) Karl Manheim, Ideologia e Utopia, Zahar, Rio de Janeiro, 1976.

21) Antonio Gramsci, Notes sur Machiavel in "Gramsci dans le texte", Ed. Sociales, Paris, 1977.

22) Eric Voegelin, Il Mito del Mondo Nuovo", Rusconi, Milano, 1976.

23) Max Weber, Ancient Judaism, Free Press, Glencoe, 1952.

24) Luigi Valli, Il Linguaggio Segreto di Dante e dei Fedeli d'Amore, Biblioteca di Filosofia e Scienza, Roma, 1928.

25) Jean Doresse, Les Livres Secrets des Gnostiques d'Égypte, Plon, Paris, 1958.

26) Pierre Gaxotte, A Revolução Francesa, Ed. Tavares Martins, Porto, 1945.

27) S. Boaventura, Brevilóquio, in Obras Completas, BAC, 6 vols.

28) Edgar de Bruynes, Estudios de Estética Medieval, 3 vols., Editorial Gredos, Madrid, 1959.

 

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