Religião-Filosofia-História



7 - Utopia e Metafísica

a. A utopia rejeita a noção de ser. Ela é anti-metafísica

Vimos que Jerzi Szachi diz que na utopia há oposição entre "o que é" e "o que deveria ser". Ora, esta constatação, parece-nos, deixa entre-aberta uma fresta por onde um raio de luz penetra e ilumina o mais profundo do mistério utópico. A utopia seria então a doutrina daqueles que não aceitam "o que é" e que pretendem construir não só uma nova sociedade, mas até mesmo uma nova "ordem" ontológica. Melhor seria dizer então uma anti-ordem, uma anti-metafísica. É pois a própria noção de ser que a utopia rejeita. A utopia não é portanto um mero fenômeno político ou social, e, muito menos, um problema econômico. Ela é muito mais. Seu caráter é religioso e anti-metafísico, e por isso mesmo ela é contra todo o real.

b. A utopia é dualista

Esta oposição ao ser, este ódio ao real, teria que conduzir a utopia necessariamente a um posicionamento dualista em que o ser seria o mal, e em que o bem seria a negação dele.

Servier nota o "vazio metafísico" da cidade utópica (op. cit., pg. 227) e Szachi mostra nela um verdadeiro maniqueísmo, embora ele não use esse qualificativo:

"O desacordo dos utopistas com o mundo existente é total. Não vê coisas boas e coisas más, vê somente o bem e o mal. Sua visão do mundo é inevitavelmente dualista" (J. Szachi - op. cit., pg. 13).

Também Mannheim, falando de Landauer, nota a mesma atitude de espírito, embora ele também não use a palavra maniqueísmo, é impossível esquivar-se a esse termo "o anarquista G. Landauer (Die Revolution, pp. 7 e segs.) (...) considera a ordem existente um todo indiferenciado, e (...) somente atribuindo valor à revolução e à utopia, vê, em toda topia (a ordem existente) o próprio mal" (K. Mannheim - op. cit., pg. 221).

Há um impulso destrutivo no quiliasma que, paradoxalmente, se julga criador, pois que a verdadeira criação consistiria na destruição da ordem natural e ontológica.

"A vontade de destruir é uma vontade criadora", dizia Bakunin, devido ao demônio que o possuia, o Satã de que gostava de dizer que trabalhava por contágio. Que ele não estivesse fundamentalmente interessado na realização de um mundo racionalmente concebido é o que se depreende desta afirmação: "Não acredito em constituições ou leis. A melhor constituição me deixaria insatisfeito. Precisamos de algo diverso. De tempestade e de vitalidade e de um novo mundo sem leis e conseqüentemente livre". (Karl Mannheim - op. cit., pp. 241-242).

c. A utopia é dialética

O dualismo da utopia possui sempre um caráter dialético, isto é, afirma a identidade dos contrários.

"On nous explique que le luxe et l’opulence de la république font le bonheur du citoyen, ou selon d’autres, son malheur; que la propriété est la base de la société, ou peut être sa ruine; que la femme est la compagne et l’égale de l’homme, ou l’automate Qui produit des enfants pour le compte de l’Etat; que le bien commun vient des lois ou de l’absence des lois, de la religion ou de l’absence de religion" (A. Cioranescu - op. cit., pg. 185).
["Explicam-nos que o luxo e a opulência da república fazem a felicidade do cidadão, ou segundo outros, sua desgraça; que a propriedade é a base da sociedade, ou o autômato que produz filhos para a contabilidade do Estado; que o bem comum vem das leis ou da sua ausência da religião, ou da sua asência."]

Todas essas contradições dos sistemas utópicos se explicam por sua mentalidade dialética. É também por causa deste espírito dialético que o utopista toma uma atitude de contradição sistemática ao real e ao costumeiro, a que Alexandre Cioranescu dá o nome de atitude de "contrapé".

"Le contre-pied est le procédé qui conseille à l’utopiste l’adoption d’une solution ou d’une formule, pour la seule raison qu’elle répresént le contrarie de la réalité que nous connaissons" (A. Cioranescu - op. cit., pg. 44).
["O contrapé é o método que recomenda ao utopista a adoção de uma solução ou de uma fórmula, pela única razão que ela representa o contrário da realidade que nós conhecemos."]

Cioranescu cita como exemplos de "contrapé" a inversão dos papéis nas relações sexuais, na utopia de Bulwer-Lytton, em que as mulheres usavam um pequeno bigode; a obediência dos pais aos filhos na utopia de Cyrano de Bergerac; o fato de os patagões de Pestiff de Bretonne usarem os sapatos na cabeça e os chapéus nos pés.

(...) "o ouro e a prata são destinados aos usos mais vis, tanto nas residências comuns, como nas casas particulares; são feitos com eles até os vasos noturnos. Forjam-se cadeias para os escravos e marcas de opróbrios para os condenados que cometeram crimes infames. Estes últimos trazem argolas de ouro nas orelhas e nos dedos, um colar de ouro no pescoço, um freio de ouro na cabeça" (Thomas Morus - Utopia, Abril Cultural. São Paulo, 1972, II, pg. 245).

É como se o utopista visse o universo através de um espelho, que inverte as imagens. A visão dialética é uma visão pelo espelho e ela é típica da utopia como também do milenarismo e do maniqueísmo.

"Ces zigzags et de telles infortunes sont ordinaires en utopie: de même qu’elles oscilent entre l’historie et son défi, et comme elles détruisent cette liberté qui forme pourtant le sol de leur naissance, il est constant que les utopies reaniment le "sacré" qu’elles abolissent" (G. Lapouge - op. cit., pg. 51).
["Estes zigzags e tais infortúnios são comuns na utopia: assim elas oscilam entre a história e seu desafio, e como elas destroem esta liberdade que forma no entanto o solo de seu nascimento, constata-se que as utopias reanimam o 'sagrado' que elas abolem")].

São inúmeros os pontos em que se manifesta a contradição dialética. De um lado, a utopia quer reorganizar o cosmos de modo racionalista. Ela sonha com os organogramas, com as cidades-tabuleiros de Hipodemos. Por outro lado, ela odeia a razão e quer o retorno à natureza. Ora deifica o Estado, ora prega a anarquia. Uma vez, defende o totalitarismo aniquilando o indivíduo. Outra vez, com argumentos semelhantes, liquida o Estado para tornar o indivíduo um pequeno Júpiter, selvagem e independente. Prega, às vezes, o desprezo de todos os bens materiais e prazeres do corpo, enquanto noutras promete a vida na "Cocagne". Quando promete a fartura, estabelece o cartão de racionamento. Quando recomenda a ascese, estabelece o banquete milenarista e orgiástico, o amor livre e o nudismo. Ela ora se revolta contra toda a lei, e, quando triunfa, regulamenta os menores atos da vida humana; ora exige rigorosa obediência à lei, e, triunfando, faz o homem senhor da lei, e portanto o liberta de qualquer obediência. É moralista e antinomista. Cultua o trabalho e a ociosidade.

Essa mesma atitude dialética diante do ser leva o utopista a olhar com simpatia a desintegração do que é composto pela polarização de seus elementos, ou a integração do que existe em separado, formando um ser sintético. É o amor pela desintegração que leva a querer separar e opor matéria e espírito no homem. Na utopia quer se fazer do homem um autômato; no milenarismo, nega-se todo valor à matéria, querendo a absorção de todos num espírito coletivo. Daí a tendência mecanicista nas leis e nas estruturas da utopia. Daí o amor à fabricação de autômatos e o ódio a tudo que é natural.

"L’automate combine de l’inanimé pour fabriquer du vivant. Il usine de l’être avec du néant voilà sa noirceur; parce qu’il donne l’être au néant. Dans ses gestes saccadés, la mort revêt les oripeaux de la vie. L’automate enseigne que la vie et la mort échangent leurs places. C’est pourquoi l’horreur de ses traits ne fait qu’augmenter une horreur plus intime (...) Le mal ne naît pas des allures de l’automate. Il est son être. L’automate est toujours dangereux et toujours angoissant. La laideur de ses traits plutôt en dissimule le venin. C’est quand il est agréable qu’il désigne en transparance, et sans masque, la figure de la vérité: celle du néant."
"Ces considérations exaltent le créateur d’automates, elles le hissent d’un dégré. Il devient personnage faustien. Il a volé le feu. Docteur em malice, son pouvoir est de rivaliser avec Dieu ou avec la nature. Il affirme que la logique peut fomenter la vie. Il trace des grimoires d’un monde second. Il produit des parodies brillantes, ironiques et méphitiques des choses que le monde contient. Il est le singe de la création. De sa bouche innomable il assure que la vie est un leurre. Elle est absence et irréalité. La vie s’épanouit sur l’inanimé. Un siècle avant que se répande la nouvelle que Dieu est mort, l’automate nous fait savoir que l’homme n’existe pas." (G. Lapouge, op. cit., pp. 241-242).

["O autômato combina o inanimado para produzir o vivo. Ele produz o ser com o nada eis seu horror; porque ele dá o ser ao nada. Nos seus movimentos bruscos, a morte veste as excentricidades da vida. O autômato ensina que a vida e a morte mudam seus lugares. Eis porque o horror dos seus traços aumentam um horror mais íntimo (...) O mal não nasce dos devaneios do autômato. Ele é seu ser. O autômato é sempre perigoso e sempre angustiante. A infâmia de seus traços mais dissimula o veneno. Quando ele é agradável ele mostra em transparência, e sem máscara, a figura da verdade: o nada."
"Estas considerações exaltam o criador de atômatos, elas o elevam a um grau superior. Ele torna-se um personagem faustiano. Ele roubou o fogo. Doutor em malícia, seu poder rivalisa-se com Deus ou com a natureza. Ele afirma que a lógica pode fomentar a vida. Ele traça garranchos de um segundo mundo Elabora paródias brilhantes, irônicas e mefíticas das coisas que o mundo contém. Ele é o macaco plagiador da criação. Com sua boca inominável ele assegura que a vida é um logro. Ela é ausência e irrealidade. A vida desabrocha sobre o inanimada. Um século antes que se espalhasse a notícia de que Deus morreu, o autômato nos faz saber que o homem não existe."]

Alvin Tofler fala com entusiasmo das possibilidades atuais e futuras da ciência para produzir animais mecânicos ou para mecanizar o homem. Ele cita Lederberg, que fala da possibilidade de substituir partes do corpo por peças mecânicas. Fala das tartarugas mecânicas "que se comportam como se estivessem psicologicamente condicionadas". Especula sobre a possibilidade de relacionamentos sentimentais e sexuais entre o homem e a máquina. Ele conta a experiência feita pelo professor Robert White, de Cleveland, que teria provado a possibilidade de manter o cérebro vivo e separado do corpo e cita então o doutor Leo Massopust: "A atividade do cérebro é amplamente melhor do que quando tinha um corpo... Não há nenhuma dúvida a esse respeito. Chego até a suspeitar que, sem sua sensibilidade, o cérebro poderia pensar mais rapidamente (...)". (Alvin Tofler - O choque do futuro, Artenova, São Paulo, 1972, pp. 168-173, 175-177).

Também na arquitetura moderna se nota esta polarização dialética e ódio ao natural oposto ao ecológico, que, por sua vez, odeia a vida urbana.

Hans Sedlmayr comentando a obra de Ledoux mostra bem seu caráter utópico e milenarista: "Il suo fine ultimo è quello di costruire la "città nuova", la città del mondo tecnico, come una Gerusalemme celeste transportata in terra: "La metropoli, la contra-natura, in cui la tirania della natura (!) dove a essere superata da un’armonia eretta solo dall’uomo." (Hans Sedlmayr - La Rivoluzione dell’Arte Moderna - Garganti, Milano, 1958, pg. 92).
[Seu fim último é a construção da "Cidade Nova", a Cidade do mundo técnico, como uma Jerusalém celeste transportada sobre a terra: a metrópole, a contra natureza, na qual a tirania da natureza deveria ser superada por uma harmonia erigida somente pelo homem"]

Dispensamo-nos de citar textos de caráter ecológico ou estruturalista que revelam o lado oposto dessa polarização dialética, isto é, a idolatria da natureza e o ódio sem restrição à ciência e à técnica. O hippismo é um exemplo vivo dessa atitude.

Por outro lado, dissemos, a atitude dialética se manifesta também no amor ao ser híbrido e sintético que reúne elementos normalmente distintos e separados da natureza.

"Fourier est un adorateur de le chimère, cette formation qui, chevauchant deux ordres ou deux classes, crêve les isolements, met en relation ce qui est separé. Ces objets-échangeurs jouent le rôle des pivots bien huillés. Citons-en quelques uns: le brugnon entre la pêche et la prune; le mulet, entre l’âne et le cheval; le coing, entre la pomme et la poire; l’albinos, le péderaste, la saphienne, etc." (Lapouge - op. cit., pg. 275-276).
["Fourrier é um adorador da quimera, esta formação que, sobrepondo duas ordens ou duas classes, quebra isolamentos, coloca em relacão o que está separado. Estes objetos-mudantes desempenham o papel de eixos bem lubrificados. Citamos alguns: a nectarina entre o pêssego e a prunha; a mula, entre o asno e o cavalo; o marmelo, entre a maçã e a pêra; o albino, o pederasta, a sáfica, etc."]

Dois exemplos ousados poderiam ainda ser citados de fascínio pelo ser dialético: o evolucionismo e o unissex. Que é o evolucionismo senão o dogma da possibilidade de existirem seres intermediários e sintéticos? Que faz ele senão procurar constantemente o elo perdido, essa quimera dos séculos XIX e XX?

d. A utopia é contra o "aqui" e o "agora"

A revolta da mentalidade utópica contra as imperfeições e limitações do homem são na verdade, como já dissemos, uma revolta contra a contingência do ser. Daí o caráter anti-metafísico da utopia.

As limitações mais importantes do ser humano podem ser divididas em dois grupos:

A) limitações espirituais;

B) limitações materiais.

As limitações espirituais do ser humano podem ser relativas à inteligência ou relativas à vontade. A utopia não aceita as limitações ao poder intelectual do homem e responde a essa limitação ou divinizando a razão, ou colocando o mistério divino ao nível da "intuição" humana, como ocorre com o milenarismo místico.

A recusa de toda limitação de vontade conduz a negar toda lei, como se dá no "antinomismo" escatológico e com o dialético "slogan" da Sorbonne em 1968, "é proibido proibir"; ou ainda negando-se toda lei divina e natural, e fazendo do próprio homem o supremo legislador de si mesmo, como acontece nas utopias totalitárias.

Do ponto de vista material, a revolta contra a contingência se manifesta na fuga do aqui e do agora, isto é, na não aceitação de que o espaço e o tempo limitam a ação humana e a fixam num lugar e num curto instante.

Já examinamos, ao tratar dos aspectos dialéticos da utopia, a questão do racionalismo, do irracionalismo, da idolatria da lei e do "antinomismo" dos utopistas. Trataremos, pois, agora apenas das limitações do tempo e do espaço.

A utopia, sendo contra o real, procura fugir dele através de sonhos, viagens para terras fabulosas distantes. Fazendo isto ela reconhece implicitamente seu caráter de evasão.

Na antiguidade, já se procurava localizar a sociedade ideal em terras bem longínquas. É o caso da Atlântida de Platão (República, Timeu, etc.) a ilha de Panchaia de que fala Evêmero, as ilhas dos Bem-Aventurados, etc.

Thomas Morus cristalizou para sempre essa lição da utopia com a ilha, ao situar sua sociedade ideal em "algum" lugar (em nenhum lugar) da América. A Nova Atlântida de Bacon também está numa ilha perdida na imensidão do Pacífico (Francis Bacon, A Nova Atlântida, Abril Cultural, São Paulo, 1973).

Campanela, por sua vez, isola a sua Cidade do Sol num oceano de florestas, numa terra próxima a Taprobana (Tomas Campanela, A cidade do Sol, Abril Cultural, São Paulo, 1973).

Nos séculos XVII e XVIII escreveram-se muitas obras utópicas que deram continuidade às utopias do Protestantismo do século XVI e prepararam a Revolução Francesa.

"On lit Hobbes, l’Utopie de Thomas Morus et surtout un certain nombre d’utopies romanesques: La terre australe connue de Gabriel de Foigny (1676), l’Histoire des Sévarambes de Denis Veitas (1677), l’Histoire de Calejava ou l’île des hommes raisonnables de Claude Gilbert (1700), l’Idée d’un règne heureux ou relation d’un voyage du prince de Montberand dans l’île de Naudely de Lesconvel (1703), Les Voyages et aventures de Jacques Massé de Tyssot (1710) (...). Or tous ces États imaginaires sontgouvernés par les politiques les plus audacieuses. Elles dévancent les doctrines lesplus hardies de Rousseau ou de Morelly. La propriété y est inconnue; tout est à tous." (Daniel Marnet, Les origines intelectuelles de la Revolution Française, Collin, Paris, 1947).

["Lê-se Hobbes, a Utopia de Thomas Morus e principalmente um certo número de utopias romanescas: A terre austral conhecida de Gabriel de Foigny (1676), a História das Sevarambas de Denis Veitas (1677), a História de Clajava ou ilha dos homens razoáveis, de Claude Gilbert (1700), a Idéia de um reino feliz ou relação de uma viagem do príncipe de Montberand na ilha de Naudely de Lescovel (1703), As viagens e aventuras de Jacques Massé de Tyssot (1710)(...). Ora todos esses Estados imaginários são governados por políticas as mais audaciosas.Elas ultrapassam as doutrinas mais ousadas de Rousseau ou de morelly. A propriedade nelas é desconhecida; tudo é de todos."]

À medida que o mundo foi ficando conhecido, o ecúmeno foi empurrando a utopia cada vez mais "além do horizonte azul". No livro Horizonte perdido, a utopia se refugia num vale misterioso do Himalaia, o Shangri-lá, lugar de felicidade e de longa e pacífica vida (James Hilton, Horizonte Perdido, Ed. Record, Rio de Janeiro).

Hoje, estando toda a terra conhecida, vasculhada e bisbilhotada pelos satélites-espiões e pelo olho vítreo da televisão, o remédio foi transferir a utopia para as estrelas, coisa de que se incumbe com presteza e facilidade eletrônicas a Science-Fiction.

Com o auxílio dos foguetes modernos ou dos poéticos veleiros antigos, através do sonho ou de projeção planificada, a utopia é sempre uma fuga de homens em crise, que não vêem ou não querem enfrentar os problemas do seu tempo.

Além de situar a cidade ideal nos antípodas do real, nos "u-topos", ou no "no where", os utopistas a isolam. Não lhes é suficiente a distância: eles querem garantir a ascepsia da utopia escondendo-á atrás de oceanos, florestas, desertos ou montanhas. Os felizes membros da utopia são enclausurados e emparedados no Shangri-lá ou na cidade hipodâmica.

"Le pays utopique se caractérise aussi par son isolement que à prémière vue, n’est qu’un simple artifice littéraire: il s’explique assez par le besoin de découvrir une terre totalement différente de la notre, et dont on n’a jamais entendu parler (...). Cependant l’isolement n’est pas seulement géographique, il est imposé par la structure même de l’utopie. Celle-ci a la phobie de la contamination, car le contact avec des systèmes différents serait une nouvelle infraction au principe d’uniformité et pourrait fournir à l’individu des prétextes pour la résurgence d’idées telles que liberté ou choix." (A. Cioranescu, op. cit., pg. 330).
["O país utópico se caracteriza também pelo seu isolamento que à primeira vista, não é senão artifício literário: ele se explica muito pela necessidade de descobrir uma terra totalmente diferente da nossa, da qual jamais se ouviu falar(...). Entretanto o isolamento não é somente geográfico, ele é imposto pela própria estrutura da utopia. Esta tem a fobia da contaminação, porque o contato com sistemas diferentes seria uma nova infração ao princípio da uniformidade e poderia fornecer ao indivíduo pretestos para o ressurgimento de idéias tais como liberdade ou opção."]

Além disso há a fuga do tempo. São comuns as utopias que se situam no futuro ou no longínquo passado. "Este tipo de utopia deveria ser chamado de ucronia pois ele fala não do lugar mas do tempo que não existe. O mundo é mau. As relações ideais ainda não existem ou já não existem. O correspondente das ilhas comentadas (...) é aqui colocado, não no espaço, mas no tempo.

(...) "A relação dela com o tempo histórico é parecida com a Utopia de lugar com o espaço geográfico. "Em algum tempo" não significa "nunca", mas tampouco denota uma época bem conhecida. Ao contrário, o conhecimento histórico rigoroso pode ser mortal para a utopia de tempo, pois ela precisa não da verdade mas da perfeição. Importante para ela é que o tempo privilegiado, aquele "quando" feliz, diga não ao tempo presente" (Jerzy Szachi - op. cit., pg. 49).

"Todas las utopias son ucronias (...) una manera de conjurar el tiempo (...) un modo de negar la muerte situada também al final del tiempo.

"La utopia se presenta ante nosotros como la describen viajeros o soñadores: estática en un eterno presente. (...) "Asi la utopia expresssa esa noción del tiempo opuesto al Ser, relativo al Devenir, a la imperfeccion, al mal - a la muerte" (J. Servier, op. cit., pg. 235).

Estas palavras do Servier mostram bem o caráter anti-metafísico da ucronia, pois ela visa eternizar o presente, deter o fluxo do tempo, imobilizar o agora. Ora, isto é próprio da eternidade, que é o presente fixado. Mas a eternidade só é possível ao Ser Absoluto, e não ao ser contingente. E de novo se manifesta aqui a rebelião contra o estado de imperfeição e o desejo de ser Absoluto, ou procurando forçar Deus a entrar na História (escatologia milenarista e messiânica), ou paralizando o tempo.

Mannheim cita um texto de Mestre Eckhart que comprova bem essa rebelião anti-metafísica: "Nada afasta mais a alma do conhecimento de Deus que o tempo e o espaço." (Meister Eckhart - Schriftenund Predigten, apud K. Mannheim, op. cit., pg. 239).

Lapouge observa uma curiosa contradição dialética nessa fuga do tempo.

"Une pente sécrète conduit de l’utopie au nihilisme. Nouveau paradoxe de la doctrine. Celle-ci nait de l'horreur du devenir. Elle se forge contre les hantises du déclin. Préferer l’éternité à histoire, c’est nier que les choses passent et que les hommes se remplacent. Or, tout fonctionne comme si la mort, expulsée par l’utopie de ses repaires favoris (tombes, vieillissement, douler, mal), réintroduisait en contaminant l’ensemble de l’appareil" (Gilles Lapouge, op. cit., pg. 102).
["Uma inclinação secreta conduz a utopia ao nihilismo. Novo paradóxo da doutrina. Esta nasce do horror ao devir. Ela se forja contra as obsessões do declínio. Preferir a eternidade à história, é negar que as coisas passam e que os homens se substituem. Ora, tudo funciona como se a morte, expulsada pela utopia dos seus refúgios favoritos ( túmulos, envelhecimento, dor, mal), reintroduzida contaminaria o conjunto do aparelho."]

e. A utopia e as causas

O isolamento geográfico das utopias e sua cristalização no tempo tem relação com outro aspecto da recusa de contingência e da pretensão de transformar o ser relativo em Absoluto; que é típico das utopias: a negação das causas.

Todo ser contingente necessita de uma causa extrínseca si mesmo, o que conduz à necessidade de uma causa Absoluta inicial, sob pena de se transformar a própria série indefinida de contingentes em Absoluto, o que seria uma contradição nos termos. Ora, a pretensão utópica de "absolutizar" o contingente tem que negar qualquer causa eficiente ou final extrínseca a este tipo de ser.

Conseqüentemente, a utopia é apresentada já realizada no tempo. Descreve-se como os utopianos vivem, mas não se conta como eles chagaram à utopia. Nunca nenhum utopista narrou a História da sua cidade utópica. Ela é apresentada já feita, como produto de um ato mágico, embora se possa fazer menção de que nem sempre foi assim.

"Ce qui manque à l’utopie c’est l’histoire. Les utopistes le sentent les premiers, et ils donnent presque toujours quelques détails sur l’instauration du nouveau régime utopique. Ils savent dire que les habitants de ce pays n’on pas vécu ainsi depuis toujours; ils expliquent quand et comment les choses ont changé, mais leur récit n’est qu’une précision chronologique, sans rapport causal et sans indication des moyens (...) c’est aussi surtout parce que, l’utopie étant une description, le voyageur Qui la traverse ne dit que ce qu’il voit et il ne voit que des surfaces. La synchronie et la coupe horizontale impliquent l’absence de profondeur, et l’histoire, qui est la profondeur du présent, reste interdite à l’utopiste" (A. Cioranescu - op. cit., pg. 35).
["O que falta à utopia é a história. Os utopistas são os primeiros a sentí-la, e eles dão quase sempre alguns detalhes sobre a instauração de novo regime utópico. Eles sabem dizer que os habitantes de tal país não viveram sempre assim; eles explicam quando e como as coisas mudaram, mas sua narrativa não passa de uma precisão cronológica, sem relação causal e sem indicação dos meios(...) é assim principalmente porque, sendo a utopia uma descrição, o viajante que a percorre não diz além do que vê e ele só vê superficialmente. A sincronia e o corte horizontal implicam ausência de profundidade, e a história, que é a profundidade do presente, fica proibida para o utopista."]

Aparentemente o marxismo teria uma posição semelhante a esta ao criticar a posição anti-histórica da utopia. O marxismo sublinha a importância essencial do processo histórico para o advento da sociedade comunista. A utopia desconhece esse processo. O marxismo dá essencial importância à análise das causas econômicas no processo histórico. A utopia omite as causas que a geraram. Mais ainda: ela não tem geração e pretende ser eterna detendo o fluxo da História.

Se isto é verdade, entretanto, é preciso não esquecer, o marxismo põe a causa e a finalidade do processo como imanentes ao próprio processo, e neste ponto ele se encontra com a utopia, que nega as causas extrínsecas.

"Para o marxismo a revolução é um resultado regular do processo histórico; o mundo velho contém em si os germes do novo, o revolucionário é mais um parteiro do que um demiurgo. O marxismo concentra-se no problema do caminho que leva ao mundo novo; elabora uma concepção do período intermediário que faz a ponte entre o velho e o novo. A utopia foi sempre uma ilha; o comunismo é um ponto distante do mesmo continente em que se faz a história humana. Os comunistas acreditam na história, os utopistas não." (J. Szachi, op. cit., pg. 17).

A utopia é uma ilha, o comunismo é um continente, porém, é preciso não esquecer, que todo continente é de fato uma grande ilha. Por isto, o próprio Szachi lembra que "não se deve abrir um abismo de separação entre o marxismo e a utopia. De um certo ponto de vista, Marx aproximou-se desta última (...). O marxismo não quer fugir para a ilha da Utopia, mas tampouco quer prender-se ao presente (...) (J. Szachi, op. cit., pg. 17).

Ele quer apenas alargar a ilha da utopia para dimensões continentais, mas sem repelir a imanência, sem admitir transcendências.

Também com relação à finalidade, a utopia e o marxismo se aproximam. A utopia não tem processo com relação ao futuro. Ela é perfeita e não admite retoques, nem mudanças. Ela não tem objetivos e por isso não tem amanhã.

Ora, o marxismo também se coloca nessa posição quando afirma o encerramento absoluto do processo dialético da história, no momento em que se alcança a sociedade comunista. Nessa hora, inexplicavelmente, cessa o processo dialético que é o cerne da doutrina marxista.

"(...) cet espace unidimensionel (da utopia) souffre naturellement d’une imobilisme qui le garantit contre toutes les tentations de l’histoire. Tout comme il manque des racines dans le passé, il n’a aucune projection d’avenir, à moins qu’on ne veuille entendre par avenir l’art d’être éternellement la même chose. Privé d’antécédents cet espace est aussi privé de la possibilité d’évoluer. La situation utopique, telle qu’elle est censée d’exister au moment de la description, est éternelle et exclut l’altérité, l’avenir y est pratiquement suprimé, puisqu’il sera identique au présent dans toutes ses parties" (A. Cioranescu - op. cit., pg. 36).
["este espaço unidimensional (da utopia) sofre naturalmente de um imobilismo que o garante contra todas as tentações da história. Como absolutamente lhe faltam raízes no passado, ele não tem nenhuma projeção no futuro, a menos que não se queira entender por futuro a arte de ser eternamente a mesma coisa. Privado de antecedentes este espaço é tambem privado da possibilidade de evoluir. A situação utópica, tal como ela é considerada existir no momento da descrição, é eterna e exclui alteridades; o porvir aí está praticamente suprimido, pois ele será idêntico ao presente em todas as suas partes."]

Na utopia não há futuro pois nela se supõe existir a perfeição absoluta e esta perfeição absoluta exige a eternidade. Perfeição absoluta, ausência de tempo são negações da contingência do ser. A utopia pretende, pois, negar a contingência e afirmar que tudo é absoluto e por isto não pode admitir causas extrínsecas ao universo, que tem fim em si mesmo.

f. A utopia e a igualdade

A evidência nos mostra que as coisas são desigualmente perfeitas. Ora, as coisas são seres na medida em que tenham perfeições. Se há uma hierarquia de perfeições, há também uma hierarquia dos seres.

É a desigualdade que permite que haja ordem no universo, que ele seja um cosmos, pois é impossível ordenar entre si elementos iguais.

Ora, como a utopia é contra o ser, esta posição anti-metafísica faz com que ela veja o real como o mal. O ser é o mal. Se quanto maior é a perfeição, maior é o grau de ser, para a utopia, maior é a perfeição, maior é o mal. Entretanto, ela quer transformar tudo em ser absoluto e portanto em absoluto mal, no entender dela. Mas o desejo utópico de tornar absoluto o que é contingente, de colocar o eterno no tempo, ou de eternizar o presente eqüivale a querer atingir a perfeição absoluta, o que elimina qualquer gradação e desigualdade.

Por isso a utopia sonha com a igualdade completa e não quer admitir a ordem do universo. Ela é anti-cósmica, na medida que cosmos é conjunto ordenado.

Nenhuma utopia admite graus de perfeição entre os homens. Todos seriam igualmente perfeitos, igualmente capazes, igualmente bons. O próprio mundo mineral, através da evolução, seria capaz de atingir o grau de racionalidade do homem, ser que resume o universo.

Essa tese de que todos os homens são iguais e naturalmente bons é que leva a nivelar o selvagem e o civilizado. Mais ainda, leva a colocar o selvagem acima do civilizado, na medida em que a chamada civilização cria instituições que hierarquizam os homens. Os selvagens viveriam na plena igualdade e na plena liberdade, conforme diz Rousseau, daí sua felicidade.

"Si nous suivons le progrés de l’inégalité dans ces différentes révolutions, nous trouverons que l’établissement de la Loi et du Droit de propriété fut son premier terme, l’institution de la Magistrature, le second; que le troisième et dernier fut le changement du pouvoir légitime en pouvoir arbitraire" (J. J. Rousseau - Discours sur l’origine et le fondement de l’inégalité parmi les hommes, Gallimard, Paris, 1965, pg. 118).
["Se nós seguirmos o progresso da desigualdade nestas diferentes revoluções, veremos que o estabelecimento da Lei e do Direito de propriedade foi seu primeiro termo, a instituição da Magistratura, o segundo; que o terceiro e último foi a mudança do poder legítimo em poder arbitrário."]

A própria racionalidade seria um mal, para Rousseau, porque cria uma desigualdade.

"(...) j’ose presque assurer que l’état de réflexion est un état contre Nature, et que l’homme Qui médite est un animal dépravé" (op. cit., pg. 53).
["eu quase ouso assegurar que o estado de reflexão é um estado contra a Natureza, e que o homem que medita é um animal depravado."]

É fácil observar a tendência a negar os diferentes graus de perfeição entre os homens nos utopistas e mesmo em seus admiradores, como confessa sê-lo Jerzy Szachi.

Por exemplo, esse autor considera o monaquismo como sendo uma forma de utopia heróica e julga que, se possível, as ordens monásticas pretendiam difundir seu modo de vida à toda a sociedade. Ora, tal nunca ocorreu.

A vida monástica se funda na prática dos "conselhos de perfeição". "Se queres ser perfeito"..., disse Jesus. Szachi cita esse texto evangélico mas não o analisa. Ele não considera o condicional "se queres...".

Aliás, se os votos monásticos fossem estendidos à toda a sociedade, ela logo desapareceria, pois que um dos votos é o de castidade completa. No afã de provar sua tese igualitária, Szachi traduz mal um texto de Lactâncio que ele tem de segunda mão (tradução de Paul Janet) e dá uma interpretação a esse texto, citando Janet, mas omitindo que esse autor dá uma interpretação diferente da sua (Cfr. J. Szachi, op. cit., pg. 72 / Paul Janet - Histoire de la Science Politique dans ses rapports avec la Morale, Paris, Felix Alcon Ed., 1887, vol. I, pg. 297 / Lactanti, Divinæ Instituitiones, Lib. V, 14-15, I, pp. 446-447, Vindabonae, F. F. Tempski, 1890).

A utopia e o milenarismo sonham em transformar a sociedade num imenso convento com os três votos de pobreza, obediência e castidade.

O voto de pobreza obrigatório para todos se realizaria pelo estabelecimento do comunismo de bens, idéias mais do que comum entre os utopistas.

O voto de obediência se realizaria não só pela igualdade absoluta dos homens, como também pela criação de um Estado onipotente que agiria como Prior Universal. É interessante notar que o grande senhor do estado utópico de Georges Orwell em sua famosa obra 1984 é chamado de Grande Irmão. O supremo ditador utópico é o Grande Abade.

No milenarismo, como na utopia de Rabelais - a anárquica Abadia de Thelème - a única regra é fazer o que se quiser.

"Leur règle n’estoit que cette clause: ‘Fay-ce que voudras’" (Apud A. Cioranescu, op. cit., pg. 123).
["Sua regra era somente esta cláusula: 'faze o que quiseres'".]

O movimento anárquico da Sorbonne, em 1968, proclamou a mesma coisa numa fórmula flamejante e contraditória: "É proibido proibir". Os homens que vivessem no reino milenarista - os "eleitos" - estariam acima da lei, pela identificação de seu querer com a própria vontade divina, autora da lei e não sujeita a ela. Não seriam como "Moisè - legista e obediente" (Dante, Divina Comédia, I, 4, 57), mas fazendo o que quisessem, estariam, na verdade, obedecendo o "Grande Irmão", que é como eles vêem a Deus, e não como Pai ou Criador, o que indicaria superioridade e desigualdade essenciais, e não um ser de igual natureza.

Quer na tirania absoluta das utopias, quer na anarquia antinomista do milenarismo, o que se visa é a anulação do livre arbítrio. Deseja-se rejeitar a responsabilidade moral e a angústia da opção pessoal, ou tornando a vontade autômata (nos Estados Unidos se fornecem "muletas eletrônicas" implantando eletrodos no cérebro para produzir estímulos "voluntários" artificialmente), ou arrasando os diques da lei.

O voto de castidade monástico é caricaturado pela utopia no sentido em que o utopista despoja as relações sexuais de qualquer sentimento ou paixão. Tanto nas utopias quanto nos movimentos milenaristas, o problema da geração é tratado como se a ele não estivesse ligado nenhum possível desregramento. Instaura-se o amor-livre, o incesto, o nudismo, e, entretanto, não se prevêem quase desordens. Ou se há alguma desordem é tão excepcional, tão aberrante da ordem normal da utopia que é como que uma monstruosidade incompreensível para os utopianos, que a castigam então severissimamente.

Mesmo nas tentativas históricas de realizar a utopia se nota uma tendência a negar, ou recusa a aceitar, qualquer problema sexual. Robespierre, na época do Terror tentou abolir a prostituição e, ao que consta, ele mesmo viveu castamente.

Concluindo esta parte, e tendo em vista as características da utopia acima mencionadas, queremos sugerir que a utopia é a sócio-política que nega a contingência do ser. É esta uma conceituação negativa da utopia, mas que, pensamos, poderia ser expressa também de modo positivo: A utopia é a sócio-política do Absoluto.

 

8.Utopia e Religião do Homem

Vimos até aqui, neste capítulo, que as utopias e os movimentos milenaristas surgem nas épocas em que se registra uma profunda crise metafísica e religiosa. Quando se perdem as certezas ontológicas, sonha-se em transformar a própria ordem do ser a fim de eliminar o "mal" do mundo. Busca-se tornar o contingente absoluto e eternizar o presente. A essência da utopia é a tentativa de absolutizar o contingente.

Ora, isto redunda numa cosmovisão anti-metafísica que é uma verdadeira religião. Tornar absoluto aquilo que é contingente significa por o homem no lugar de Deus. E a utopia é, assim no fundo, a Religião do Homem.

(...) "no lugar do amor de Deus devemos reconhecer o amor ao homem como a única religião verdadeira; no lugar da fé em Deus devemos difundir a fé do homem em si mesmo, em sua própria força, a fé em que a sorte da humanidade não depende de um ser, que se encontra além ou acima dela, mas depende dela mesma; que o único diabo do homem é o próprio homem: o homem primitivo, supersticioso, egoísta e mau; mas também o único deus do homem é o próprio homem" (Feurbach - A essência da religião, Varsóvia, PWM, 1953, pg. 318, apud J. Szachi, op. cit., pp. 79 e 80).

Esse texto de Feurbach é extremamente revelador. Ele mostra que:

a) há uma religião do homem;
b) a situação atual da humanidade, cheia de dificuldades, pode ser solucionada;
c) a causa dos males está na invenção, pelo próprio homem, de um ser transcendente e absoluto, Deus;
d) a solução dos males também está no próprio homem. Enquanto ele ignora suas forças reais, ele cria um inferno para si. Mas quando ele conhece sua própria natureza e sua própria força, ele mesmo se salva.

Ora, essa Religião do Homem, salvador de si mesmo quando possui o conhecimento (gnosis), nós já vimos qual é no primeiro capítulo deste trabalho: a religião gnóstica e panteísta.

Com efeito, todas as características das utopias e do quiliasma se encaixam perfeitamente no esquema gnóstico-panteísta: negação da transcendência ou repulsa ao cosmos; recusa da ordem metafísica (ódio ao ser, dualismo dialético, negação dos princípios do ser, negação das causas ontológicas, ódio à desigualdade, tentativa de tornar o ser contingente, quer na ordem do conhecimento (racionalismo absoluto ou intuição teosófica), quer na ordem da vontade (ascese anti-material ou antinomismo radical); crença em que o homem é o "salvador que se salva" a si mesmo.

Eric Voegelin, reconhecendo a grande dificuldade de definir um fenômeno proteiforme como a gnose, faz um elenco de seis características que, no seu conjunto, permitem enquadrar a essência da atitude gnóstica. Estas seis características da gnose seriam:

a) o gnóstico é um insatisfeito;
b) ele julga que o mundo tem uma estrutura intrinsecamente deficiente. A ordem do ser seria má. O cosmos, em si mesmo, seria perverso;
c) é possível salvar-se desse mal do mundo;
d) a ordem do ser deve ser mudada no decurso da História;
e) esta mudança da ordem do ser está no âmbito da ação humana. O ato salvítico é possível graças aos esforços pessoais do homem;
f) o conhecimento - a gnose - do método para realizar tal transformação da ordem ontológica deve ser a grande preocupação do homem.
(Cfr. Eric Voegelin, op. cit., pp. 20-21).

Algumas dessas notas, tomadas isoladamente, não são suficientes para definir a essência da gnose. Voegelin observa que se deve tomá-las no seu conjunto para que seja possível identificar a essência da atitude gnóstica.

Ora, estas notas características existem na utopia e no milenarismo. Logo, utopia e milenarismo são fenômenos resultantes de um pensamento gnóstico-panteísta.

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Quais as atitudes assumidas pelo panteísmo e pela gnose - estas duas formas gêmeas do Antropoteísmo - diante dos problemas político-sociais?

O panteísta, crendo na divindade da matéria cósmica e na divindade da razão, procura eliminar com suas próprias forças os males do mundo. Todavia, ele não se preocupa tanto com o mal e o sofrimento individuais, mas com o mal social, coletivo. Ele é anti-individualista e tende para a realização de um estado utópico coletivista em que a ordem seria mecânica como a ordem astronômica. Ele é "altruista filantropicamente" mas não caridoso.

"Voici le dernier lieu de partage entre la sagesse et le mysticisme. C’est un devoir pour le sage, quand il a contemplé l’ordre du monde, d’imiter cet ordre ici-bas, non seulement dans sa conduite privée mais dans son attitude envers les autres hommes. Contemplation et action depuis Platon, sont liées(...)"

"(...) S’il n’est qu’une vie, celle de la terre, et si le propre du sage doit être, durant cette vie, de réaliser ici-bas l’ordre general du monde, c’est une conséquence logique que la vertu prémière sot éminemment d’espèce sociale, qu’elle consiste par dessus tout à faire régner la justice, une justice tempérée de bienvaillance et de philanthropie. C’est par la que le sage se rapproche de son modèle, la Raison divine, l’ordre des cieux!" (Festugière - "Hermetisme et gnose paienne" in Histoire Gen. Des Religions, pg. 65, 2o. col.).
["Eis o último ponto de divisão entre a sabedoria e o misticismo. É um dever do sábio, quando ele contemplou a ordem do mundo, imitar esta ordem aqui em baixo, não somente na sua conduta privada mas na sua atitude voltada aos outros homens. Contemplação e ação segundo Platão, estão ligadas. "(...) Se há somente uma vida, a da terra, e se o próprio do sábio deve ser, durante esta vida, de realizar aqui a ordem geral do mundo, é uma conseqüência lógica que a virtude primeira seja eminentemente de caráter social, consistindo acima de tudo fazer reinar a justiça, uma justiça temperada de benevolência e de filantropia. É dessa forma que o sábio se reaproxima do seu modelo, a Razão divina, a ordem dos céus!"]

A gnose, por sua vez, tem posição oposta. Sendo o universo mal, condena-se qualquer ação visando o bem estar natural. O gnóstico odeia o ser, quer fugir do espaço e do tempo, considera o agir fonte do mal que é o existir. A felicidade advirá da destruição da ordem cósmica através da irrupção do espírito divino. O milênio e não a utopia, trata a felicidade divina. Mas o milênio é fruto da Parúsia, é efeito da libertação das centelhas divinas da prisão da carne e do cárcere da individualidade.

"L’attitude morale du gnostique est diamétralement contraire. Comme ce monde est mauvais, comme la vie qu’on y mène n’est qu’une épreuve passagère avant de remonter auprès de dieu, il est absolument vain de travailler à une meilleure organisation de la société humaine sur la terre. Le gnostique vit à l’écart, dans ce petit cercle de privilégiés comme lui, dont l’ocuppation principale est leur salut. Est-ce à dire que le gnostique puisse oublier totalement le vulgaire? Non, il lui reste un devoir. S’il n’a pas à prendre soin du sort temporel des hommes, il doit veiller à leur destin spirituel. Comme il a reçu lui-même la vérité, ainsi lui faut-il répandre le don de Dieu. Le gnostique est apôtre: avec la priére et le culte, la prédication fait partie intégrante de la vertu suprême, la piété" (Festugière - op. cit., pg. 65).
["A atitude moral do gnonóstico é diametralmente oposta. Como este mundo é mau, como a vida que nele se leva não é senão um prova passageira antes de subir perto de Deus, é absolutamente em vão trabalhar para uma melhor organização da sociedade humana na terra. O gnóstico afastado, neste pequeno círculo de privilegiados como ele, cuja principal ocupação é sua salvação. Seria dizer que o gnóstico possa esquecer totalmente o vulgar? Não, lhe resta um dever. Se ele não precisa cuidar da sorte temporal dos homens, ele deve se preocupar com seu destino espiritual.Como ele próprio recebeu a verdade, assim ele precisa expandir o dom de Deus. O gnóstico é um apóstolo: com a oração e o culto, o pregação faz parte integrante da suprema virtude, a piedade"]

Engajamento político social, determinismo otimista, fé no futuro humano são notas típicas do panteísta utópico. Alienação mística, individualismo anárquico, pessimismo, esperança na Parúsia distinguem o gnóstico milenarista.

"Si j’imagine aujourdhui dans la France de 1970, un homme comme Basilide, Valentin ou Carpocrate, (...) je le vois ou totalement dégagé de toute reflexion politique ou au contraire totalement impliqué dans la lutte révolutionnaire de notre temps (ces deux attitudes étant pour lui deux formes identiques d’une même ascèse (...)." (J. Lacarrière - op. cit., pg. 31).
["Se eu imagino hoje na França de 1970, um homem como Basilide, Valentin ou Carpocrate, (...) eu o vejo totalmente desvinculado de toda reflexão política ou pelo contrário totalmente implicado na luta revolucionária do nosso tempo ( estas duas atitudes sendo para ele duas formas idênticas de uma mesma ascése(...)."]

Em termos brasileiros, seria preciso imaginar o cultuador do Antropoteísmo ou como militante da UNE ou como membro de uma comunidade hippie do Embu...

Concluindo esta parte de nosso estudo afirmamos que, querendo negar e anular a contingência do ser, isto é, as imperfeições relativas do ser criado, a utopia e o milenarismo procuram resolver o problema do mal elaborado uma sócio-política conseqüente com suas posições de princípio. Utopia e Milenarismo são a sócio-política da Religião do Homem, respectivamente correspondentes ao Panteísmo e à Gnose.

 

Também nesta questão da classificação das utopias reina certa confusão. Propõem-se as classificações mais diversas, o que não é de surpreender, pois se não se conhece claramente o que é utopia, como se poderá fazer uma clara classificação de seus tipos?

Jerzy Szachi, por exemplo, classifica as utopias em escapistas e heróicas. Escapistas seriam aquelas que, embora condenando a realidade presente, recusam-se a combatê-la, e fogem dela através de sonhos. Heróicas seriam as utopias que se voltam para a ação contra a realidade. Szachi faz a ressalva de que seu esquema classificatório, como todo esquema, é simplificador (Cfr. J. Szachi, op. cit., cap. II).

A nosso ver, o critério classificatório utilizado por Szachi é falho, pois que ele leva, na verdade, a classificar os utopistas e não as utopias.

Szachi é marxista e se preocupa especialmente com a praxis, por isto ele vê a utopia pelo ângulo da ação. Isto leva a focalizar a atutude fundamental do utopista: se foge da realidade ou se visa combatê-la. É um critério psicológico-prático, que resulta, como dissemos, em classificar os utopistas e não as utopias, já que não se fundamenta na análise intrínseca das utopias.

Lenin dividiu as utopias em dois tipos: as reacionárias, que afastam as massas da luta; e as progressistas, que estimulam para a luta (Cfr. Lenin - Duas utopias, apud Jerzy Szachi, op. cit., pg. 22).

Embora Lenin se preocupe mais com o aspecto político-ideológico, não há dúvida que há relação entre a classificação de Szachi e a sua.

Tratando da classificação do messianismo utópico, queremos recorrer ao maior especialista em problemas messiânicos e de mística judaica, Gershom Scholem:

"Our immediate and more limited aim is an understanding of the messianic idea as it affected medieval Judaism existing as it did in conditios of exile. To this end we must distinguish two main tendencies in which messianic longing of geenerations had crystallized. These were the popular-mythological and the philosophical racionalist tradition. They existed side by side. They often converged an even merged. Nevertheless, we are entitled to treat them as basically distinct. (...) Traditional popular messianism was characterized by catastrophe and utopianism, and both elements play an important role in the dynamics of the messianic faith" (Gershom Scholem - Sabatai Sevi, the mystical Messiah, Princeton University Press, New Jersey, 1973, pg. 8).
["Nosso desejo mais imediato e objetivo é entender como a idéia messiânica afetou o Judaismo medieval nas condições de exílio, como então existiu. Para esta finalidade nós precisamos distinguir duas principais tedências nas quais o messiânico se cristalizou ao longo das gerações. Foram elas a popular-mitológica e a filosofia racionalista tradicional. Elas existiam lado a lado. Muitas vezes convergiam ou até mesmo se fundiam. Entretanto, nós as trataremos, basicamente, como distintas (...) O messinismo tradicional caracterizou-se pela catástrofe e utopismo, e ambos elementos tiveram importante papel na dinâmica da fé messiânica."]

Scholem distingue, pois, duas correntes messiânicas: a primeira racionalista e a segunda popular-mitológica, ou, diremos, mística. Ora, esta classificação dos tipos de milenarismo tem correspondência lógica com a classificação que fizemos dos tipos de Religião do Homem.

Vimos que esta Religião consiste na divinização do homem, que é considerado salvador de si mesmo. Ela pretende fornecer o conhecimento das forças que existem na própria natureza humana, e que permitiriam superar toda contingência e fazer o homem se identificar ao Absoluto Transcendente. Isto poderia ser feito de dois modos:

a) negando qualquer transcendência, como faz Feuerbach no texto anteriormente citado, e fazendo da razão humana, fim último da evolução material, a ferramenta da redenção (corrente naturalista);

b) negando toda a contingência, como o fizeram muitos místicos, como por exemplo Mestre Eckhart, os Irmãos do Livre Espírito e os movimentos anabatistas. Tais místicos negam a realidade contingente, negam a matéria e afirmam um monismo espiritual. Seria, pela destruição da matéria e da individualidade que se alcançaria libertação total e o Absoluto transcendente. Desta forma superar-se-iam todos os males e a lei poderia ser abolida. A experiência mística seria o meio para alcançar isto no plano individual.

A Religião do Homem possui uma "Weltanschauung" própria, ainda que seja negativa, e é lógico que dela decorra uma visão sócio-política. A esta visão sócio-política da Religião do Homem chamaremos "Cidade do Homem".

À sócio-política de uma cosmovisão monoteísta e transcendente S. Agostinho deu o nome de "Civitas Dei" e a ela opôs uma sócio-política que se poderia chamar de "Civitas Hominis", na medida em que põe o homem no lugar de Deus.

"Assim é que, dois amores fundaram duas cidades, a saber: a terrena, o amor próprio até chegar ao desprezo de Deus; e a celestial, o amor de Deus até chegar ao desprezo de si mesmo" (S. Agostinho - Cidade de Deus, XIV, 28).

Assim como a Religião do Homem tem dois ramos - o panteísmo e a gnose - assim também a Cidade do Homem tenta se realizar por duas formas:

a) através da utopia - que corresponde ao panteísmo;
b) através do milenarismo - que corresponde à gnose.

As utopias racionalistas afirmam a eternidade e a infinitude da matéria, porque se não fizerem isto terão que admitir um Deus transcendente, como disse Engels no "Anti-Dhuring".

O racionalismo crê na evolução da matéria e no progresso contínuo. A razão, a ciência e a técnica corrigirão a natureza e criarão o paraíso terrestre a esquadro, compasso e computador. Haverá então uma felicidade perfeita numa sociedade pré-fabricada - como um organograma. Dialeticamente estas utopias negam qualquer religião e divinizam o homem, como vimos no texto de Feurbach.

O milenarismo místico e messiânico sonha com o paraíso terrestre ou com a parusia. Ele quer deter o fluxo histórico por um esforço ascético-místico que odeia toda a realidade concreta. Ele vê na História, embora a negue, um processo crescente de espiritualização da matéria, que atingirá o seu clímax no "Reino de Deus" na terra.

A corrente utópica naturalista e a corrente milenarista apresentam, entre si, a mesma oposição dialética que é a marca característica essencial da Religião do Homem e que se encontra no seio de cada uma delas. E essa oposição dialética de elementos contrários e iguais que explica tantos pontos comuns, como também a luta, que muitas vezes se nota entre utópicos e milenaristas. Ambas as correntes procuram realizar, de modo dialético, a conhecida fórmula gnóstico-panteísta: "Tudo é um, um é tudo".

A corrente naturalista tem sua atenção voltada inicialmente para o indivíduo, para o particular. Ela esquematiza e divide o todo em elementos individuais mínimos para facilitar sua reunião numa massa coletiva. Ela analisa para chegar à síntese totalitária. Ela parte do individualismo e chega ao coletivismo. É o que faz, por exemplo, o comunismo.

A corrente "espiritualista" ou "mística" tem sua grande preocupação voltada inicialmente para o todo. Para atingi-lo ela recomenda destruir o eu individual. Ela pretende que é possível destruir o próprio ser individual pela introversão absoluta que arrebentaria os limites do finito, tornando possível alcançar e fundir-se no Todo infinito. Ela parte da ânsia de coletivização e chega ao individualismo mais anárquico. É o que faz, por exemplo, o hippismo.

Entretanto, estas correntes, que se opõe dialeticamente, são iguais e contrárias, como um mesmo "slide" visto de lados opostos e no qual se lê, de um lado: um é tudo; e do outro: tudo é um.

 

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    Para citar este texto:
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MONTFORT Associação Cultural
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Online, 03/05/2024 às 05:20:44h