Igreja

Ao Deus que alegra a minha juventude!
Francis Mauro Rocha
 
Certa vez, um velho professor contou-me a história de um padre ancião que, começando a celebração da sua Missa matinal, pronunciou aquelas santas palavras: “introibo ad altare Dei, ad Deum qui laetificat juventutem meam” e, bastando pronunciá-las, esse mesmo padre caiu desfalecido ao pé do altar. Ele propriamente subiu ao altar do Senhor (se Deus quiser!) e a ocasião pareceu muito propícia a isso. Ele subiu ao altar celestial. “Que beleza, filho!”, exclamou aquele velho professor, “que beleza!”. O padre ancião teria entregado sua alma, sua juventude, a juventude da alma, que é a graça de Deus, ao Senhor dos senhores, ao Deus que alegra a verdadeira juventude!

Comumente, os liturgistas justificam a insistência destas palavras iniciais de preparação para o Santo Sacrifício: introibo ad altare Dei, ad Deum qui laetificat juventutem meam”, dizendo que a sua causa se deve pela referência direta à palavra “altar”, “introibo ad altare Dei”. É claro, pois que se trata de um salmo de preparação para de fato entrar ou subir no altar de Deus, e nada mais justo do que falar dos meios tendo em mente o fim. Porém, São Tomás de Aquino, no seu comentário aos salmos, ao comentar o salmo 42 (Super Psalmo 42), parece nos trazer outros motivos que enriquecem ainda mais o sentido da insistência nesse refrão. Comenta o Aquinate:

 

“Et hunc Psalmum dicunt presbyteri cum accedunt ad altare: quia haec duo, scilicet laetitia et renovatio, sunt necessaria illis qui ad caeleste altare accedere volunt”

E os sacerdotes dizem este salmo quando vão ao altar; pois essas duas coisas, ou seja, alegria (laetitia) e renovatio (juventutem), são necessárias para aqueles que desejam ascender ao altar celestial.

 Então, para o Aquinate, os sacerdotes recitam esse salmo em preparação para o Santo sacrifício, sobretudo por causa dessas duas palavras que, ainda segundo o Aquinate, não podem faltar para quem deseja ascender ao altar celestial, ao altar que une o céu à terra, são elas:  alegria (laetitia) e renovatio (juventutem).

São Tomás, em outras ocasiões, explica o sentido do termo “renovatio” como, por exemplo, quando comenta o cântico novo recitado pelo salmista (Super Psalmo 32):

“Secundum spiritualem intellectum, de duobus debet homo exultare: scilicet de bonis gratiae susceptis, et de bonis gloriae expectatis. Per prima bona innovamur. Ephes. 4: renovamini spiritu mentis vestrae: Rom. 6: in novitate vitae ambulemus. Ille ergo cantat canticum novum, qui exultat in Deo de renovatione gratiae: Apoc. 14: cantabant sancti canticum novum.”

De acordo com o sentido espiritual, o homem deve exultar a Deus por duas razões: pelos bens da graça recebidos e pelos bens da glória esperados. Pelos primeiros bens, somos renovados: “renova-te no espírito da tua alma”. “Para que também nós possamos caminhar em uma nova vida”. Portanto, quem canta um cântico novo exulta em Deus pela renovação da graça: "os santos cantam um cântico novo."

 Parece claro o sentido que dá São Tomás aos termos “renovatio” e “juventutem”, pois que o Aquinate identifica esses dois vocábulos. “Renovatio” está ligado à graça de Deus na alma do justo, e seria essa a juventude (juventutem) de que fala o padre se preparando para a Santa Missa, a verdadeira juventude, que não se corrompe como a juventude física do corpo material, efêmera, mas permanece incólume diante dos assaltos do tempo. Impenetrável, basta-lhe a fidelidade a Deus, aos seus mandamentos, à própria graça. Essa juventude resplandece na face do justo, ainda que subjugado pela decadência do corpo físico, como o padre ancião que desfalece diante do altar, mas brilha a sua alma ao subir ao altar celeste.

O segundo termo (laetitia) usado pelo sacerdote ao repetir o famigerado refrão parece mais grandioso ainda nos lábios do Aquinate (ainda em seu comentário ao Salmo 32):

“Ille vero bene psallit in vociferatione, qui de bonis gloriae cantat, et canticum quod homo corde concipit, exprimit verbis. Vel in jubilatione, seu in jubilo, secundum Hieronymum. Est autem jubilus laetitia ineffabilis, quae verbis exprimi non potest; sed voce datur intelligi gaudiorum latitudo immensa. Illa autem quae non possunt exprimi, sunt bona gloriae: 1 Cor. 2: oculus non vidit, nec auris audivit et cetera. Et ideo dicit, bene psallite ei in jubilatione, quia cantu exprimi non valente.”

Mas este acompanha o salmo com seus gritos de alegria, que canta por causa dos bens da glória, e o cântico que o homem concebe em seu coração, ele o expressa em palavras. Ou in jubilatione, ou in jubilo (com gritos de alegria), segundo Jerônimo. Ora, o júbilo é uma alegria inefável que não pode ser expressa em palavras; mas a voz captura a imensa plenitude das alegrias. E os bens que não podem ser expressos são os da glória: "coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou (Is 64, 4), tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que o amam”. E é por isso que diz: “salmodiai em sua honra com clamores de alegria”, porque não podem ser expressos pelo canto.

 Parece claro que, para o Doctor Communis, essa alegria, essa laetitia de que fala o salmista, é exprimida no sentido de júbilo pelos bens da glória celeste: “que canta por causa dos bens da glória”, “in jubilo (com gritos de alegria), segundo Jerônimo”, “e os bens que não podem ser expressos são os da glória”. A alma habitada pela Graça de Deus clama, com júbilos de alegria, pelos bens da Glória, os bens do Céu.

Podemos ainda, de forma bem aproximativa, fazer uma outra relação muito relevante para perscrutarmos o sentido profundo dessas palavras da liturgia da Missa. Lembremo-nos dos belíssimos versos de Dante, na sua Divina Comédia, no Paradiso, com comentários do Professor Orlando Fedeli:

“Luce intellettual, piena d'amore;

amor di vero ben, pien di letizia;

letizia che trascende ogni dolzore"

                                  (Par. XXX, 40-42)

 

[Luz intelectual, cheia de amor;

amor do verdadeiro bem, cheio de letícia;

letícia que transcende toda doçura].

Nesses versos, está afirmado que a grande felicidade do céu é uma felicidade da alma, que lá é plenamente satisfeita em todas as suas potências. Assim, a inteligência é lá plenamente feliz, porque tem a posse da Verdade absoluta, isto é, da luz intelectual.

Entretanto, alguém poderia conhecer a verdade e não ter alegria por isso, porque isto lhe traz obrigações e responsabilidades. No céu, essa situação é impossível, porque lá se conhece a verdade e se a ama perfeitamente. A vontade não está lá nunca em divórcio com a inteligência, e a verdade é conhecida e possuída amorosamente. "Luce intellettual, piena d'amore" (Orlando Fedeli, O Paraíso de Dante).

 Também o poeta italiano em seu Paradiso canta a verdadeira letizia, uma letizia que transcende toda doçura (letizia che trascende ogni dolzore), porque toda outra doçura, todas pálidas diante de tanto fulgor, são apenas uma participação imperfeita da doçura celeste, o néctar das almas. O contestado poeta italiano canta a Glória celestial como uma letizia, ou poderíamos dizer, laetitia, uma letizia intelectual, toda plena de amor, uma união indissolúvel da inteligência e da vontade em Deus. Isso é a glória, a causa suprema de toda doçura, de todo júbilo, laetitia laetitiarum (a alegria das alegrias)!

Assim, em preparação para o Santo Sacrifício do altar, todo sacerdote nunca deve perder de vista estas duas coisas para se aproximar do altar celestial (sunt necessaria illis qui ad caeleste altare accedere volunt): a juventude que deriva da graça de Deus infundida na alma (renovatio ou juventutem) e o júbilo (laetitia) pelas coisas próprias da Glória no céu, a letizia que transcende toda pálida doçura desse mundo, a alegria que aspira a união indissolúvel com Deus.

«É assim que a vou seduzir: ao deserto conduzirei a minha amada, para lhe falar ao coração [literalmente: sobre o seu coração] (...) Aí, ela responderá como no tempo da sua juventude» (Oseias 2, 16-17). A Missa é propriamente esse deserto para o qual Cristo, o amado das almas, conduz a sua amada, a Igreja, para aí lhe falar das coisas próprias do seu amor, lhe recordar a verdadeira juventude da Graça e lhe guardar os bens próprios dos justos, os bens da Glória: “ali, eu devolverei a ela as suas plantações de uvas e transformarei o vale da Desgraça em uma porta de esperança” (Oseias 2, 15).

“Não digo que deixeis o mundo, e que vos vades meter em um deserto; só digo que façais o deserto dentro no mesmo mundo, e dentro de vós mesmos, tomando cada dia um espaço de solidão só por só com Cristo, e vereis quanto vos aproveita. Ali se mede a eternidade, que há de durar para sempre; ali fala Cristo à alma eficazmente” (Padre Antônio Vieira, Sermão De S. João Batista).

Assim, aquele padre ancião, com a alma toda nova, toda jovem, abandona as alegrias volúveis desse mundo para repousar na doçura imperecível de Deus, ao Deus que alegra a minha juventude!

In báculo Cruce et in virga Virgine,

Francis Mauro Rocha.
15/10/2020.
 

    Para citar este texto:
"Ao Deus que alegra a minha juventude!"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/deusquealegra/
Online, 23/04/2024 às 11:03:30h