Igreja

O Concílio, o Novus Ordo Missae e as inovações litúrgicas sem fim
Cardeal Alfons M. Stickler

O Cardeal Alfons Stickler é o Prefeito emérito da Biblioteca Vaticana e de seus arquivos. Atuou como especialista, como perito na Comissão de Liturgiado Concílio Vaticano II. Foi elevado ao Colégio Cardinalício pelo Papa João Paulo II em l985. Esteensaio apareceu originalmente em Die heilige Liturgie (Steyr, Áustria: Ennsthaler Verlag, 1997, Franz Breid ed). O presente documento é uma tradução da versão em inglês aparecida em Dezembro de 1998 na revista norte americana "Latin Mass", levada a cabo por Thomas E. Woods, Jr., a pedido do próprio Cardeal Stickler.
 
MINHA FUNÇÃO NO CONCÍLIO
 
            Peço perdão, se começo com algumas circunstâncias pessoais, porém considerei isso necessário para uma melhor compreensão do tema que devo abordar. Fui professor de Direito Canônico e História das leis da Igreja na Universidade Salesiana e, durante 8 anos, desde 1958 a 1966, fui seu Reitor. Como tal, atuei como consultor da Sagrada Congregação para os Seminários e Universidades e, desde as tarefas preparatórias para a implementação dos regulamentos conciliares, como membro da Comissão Conciliar dirigida por esse Dicastério. Ademais, fui nomeado perito da Comissão para o Clero.
Pouco antes do começo do Concílio, o Cardeal Larraona, do qual eu tinha sido aluno na Universidade Lateranense, e que tinha sido nomeado Prefeito da Comissão Conciliar para a Liturgia, me chamou para dizer-me que tinha sugerido meu nome para perito dessa Comissão. Objetei que já me comprometera para outras duas Comissões, como perito conciliar, sobretudo para a Comissão de seminários e universidades.
    Porém, ele insistiu em que umcanonista devia participar devido à significação do direito canônico nas exigências da liturgia. Portanto, e assumindo uma obrigação que não tinha procurado, vivi a experiência do Vaticano II, desde o princípio.
    Em geral, a liturgia tinha sido colocada como o primeiro tópico na ordem dos temas a serem tratados. Fui nomeado para uma Sub Comissão que devia considerar os modi dos primeiros três capítulos [ do esquema sobre a Liturgia], e tinha também que preparar os textos que seriam levados ao recinto conciliar, para discussão e votação. Esta Sub Comissão era composta por três Bispos – o Arcebispo Callewaert de Gantes, como presidente, o Bispo Enciso Viana de Mallorca e, se não me equivoco, o Bispo Pichler de Yugoslavia– e de três peritos: oBispo Martimort, o clareteano espanhol, Padre Martínez de Antoñana, e eu. Pude conhecer assim, com clareza, os desejos dos Padres Conciliares, assim como o sentido correto dos textos que o Concílio votou e adotou.
 
O CONCÍLIO E O NOVO MISSAL ROMANO
 
    Poderá compreender-se meu assombro quando comprovei que, de muitos modos, a edição final do novo Missal Romano não correspondia aos textos Conciliares, que eu conhecia tão bem, e que continha muita coisa que ampliava, mudava, e até ia diretamente contraas determinações Conciliares. Como eu conhecia com precisão todo o procedimento do Concílio, muitas vezes, desde as longas discussões e o processo dos modi, até as repetidas votações que levavam às formulações finais, como também os textos que incluíam as regulamentações precisas para a implementação da reforma desejada, podem os senhores imaginar meu espanto, meu crescente desagrado, e até minha indignação, especialmente com relaçãoàs contradições específicas e mudanças que necessariamente teriam conseqüências duradouras. Por isso, decidi ir ver o Cardeal Gut, que no dia 8 de Maio de 1968 havia sido nomeado Prefeito para a Congregação dos Ritos, em substituição do Cardeal Larraona, que havia renunciado à prefeitura da dita Congregação, em 9 de Janeiro desse ano.
    Solicitei-lhe uma audiência em seu apartamento, que ele me concedeu no dia 19 de Novembro de 1969 [nota: portanto, foi recebido UM ANO E MEIO DEPOIS!....] (aqui quisera fazer notar, incidentalmente, que a data da morte do Cardeal Gut aparece, repetidamente, adiantada de um ano nas memórias do Arcebispo Bugnini : 8 de Dezembro de 1969, em vez da data correta, que foi em 1970).
        O Cardeal Gut me recebeu muito cordialmente, apesar de estar visivelmente muito doente, e pude, por assim dizer, abrir-lhe meu coração. Ele me deixou falar sem interrupção durante meia hora, e então me disse que compartilhava plenamente de minha preocupação. Enfatizou, de todos os modos, que a Congregação dos Ritos não tinha culpa do que estava acontecendo, já que otrabalho de reforma em sua totalidade tinha sido efetuado por um Consilium, que tinha sido nomeado pelo Papa [Paulo VI ] com esse fim especifico, e para o qual Paulo VI tinha eleito o CardealLercaro como presidente e ao padre Bugnini como secretário. Este grupo trabalhou sob a supervisão direta do Papa.
Eis que opadre Bugnini tinha sido secretário da Comissão Conciliar Preparatória para a Liturgia.Como seu trabalho não tinha sido satisfatório –tinha sido feito sob a direção do Cardeal Gaetano Cicognani– não foi promovido a secretário da Comissão Conciliar. Em seu lugar foi nomeado Frei Ferdinando Antonelli OFM (mais tarde Cardeal [nota:e que criticará firmemente Mons. Bugnini...]). Um grupo organizado de liturgistas fez ver aPaulo VI este adiamento como uma injustiça para com o P. Bugnini, e se arranjaram para lograr que o novo Papa, que era muito pressionável diante desses procedimentos, reparar a "injustiça" nomeando ao P. Bugnini secretário do novo Consilium responsável para a implantação da reforma.
Essas duas nomeações, do Cardeal Lercaro e do P. Bugnini, para lugares chaves no Consilium, tornaram possível que se ouvissem vozes que não tinham sido ouvidas durante o processo do Concílio, e, da mesma maneira, se silenciaram outras que tinham sido ouvidas. Ademais, o trabalho do Consilium se levou a cabo em áreas de trabalho inacessíveis a quem não fosse membro do mesmo Consilium.
O Concílio pediu, uma vez e outra vez, que a reforma aderisse à tradição. Todas as reformas, a exceção da pós-conciliar, observaram essa regra básica
Com o fim de estabelecer a coincidência ou a contradição entre as regulamentações do Concílio e a reforma tal qual foi levada a cabo, vejamos brevemente as instruções Conciliares mais importantes relativas al trabalho de reforma.
As instruções gerais, que concernem sobretudo aos fundamentos teológicos, estão contidas principalmente no artigo 2 da Sacrossantum Concilium. Aí se estabelecem primeiramente a natureza terreno-celestial da Igreja, seu Mistério, tal como a liturgia deveria expressar isso: todo o que é humano deveria estar ordenado e subordinado ao divino; o visível ao invisível; o ativo ao contemplativo; o presente à futura Cidade de Deus que buscamos. De acordo com isso, a renovação da liturgia deve ir de mãos dadas com o desenvolvimento e a renovação do conceito de Igreja.
O artigo 21 deixa assentada a condição prévia para qualquer reforma litúrgica: que há na liturgia uma parte imutável, pois foi decretada por Deus, e partes que podem ser mudadas, ou seja, aquelas que se introduziram no curso do tempo em forma imprópria ou que ficou provado serem menos apropriadas. Os textos e os ritos devem se corresponder com a ordem estabelecida no artigo 2, e por isso podem ser mais bem entendidos e melhor experimentados pelo povo. No artigo 23 aparecem, sobretudo, guias práticos que devem ser seguidos para lograr a correta relação entre tradição e progresso. Deve empreender-se uma precisa investigação teológica, histórica e pastoral; ademais, devem considerar-se as leis gerais da estrutura e do sentido da liturgia, e a experiência derivada das reformas litúrgicas mais recentes. Logo, se deixa estabelecido como norma geral que a inovação pode ser introduzida somente se um genuíno beneficio para a Igreja o demanda. Finalmente, as novas formas devem surgir organicamente daquelas já existentes.
Convém assinalar que as normas práticas para a tarefa da reforma surgem da natureza didática e pastoral da liturgia. De acordo com o artigo 33, a liturgia é principalmente o culto à majestade de Deus, pelo qual os crentes entram em relação com Ele por meio de signos visíveis que a liturgia usa para expressar realidades invisíveis, signos que foram eleitos por Cristo mesmo ou pela Igreja. Há aqui um eco vibrante do que o Concílio de Trento já recomendava com o fim de proteger seu patrimônio do vazio racionalista e insípido do culto protestante, patrimônio que o Santo Padre em seus escritos às Igrejas orientais caracterizou como seu tesouro especial. Este "tesouro especial" também mereceser uma fonte de alimento para a Igreja Católica. Ele se distingue por ser rico em simbolismo, provendo, dessa maneira, educação didática pastoral e enriquecimento, tornando- o especialmente adequado até para a gente mais simples.
Quando consideramos que as Igrejas Ortodoxas – apesar de sua separação da rocha da Igreja– através da expressão simbólica e do desenvolvimento teológico que continuamente se incorporaram à sua liturgia preservaram as crenças corretas e os sacramentos, toda reforma litúrgica católica deveria antes aumentar a riqueza simbólica de sua forma de culto em vez de diminuí-la –por vezes até drasticamente.
No que concerne às guias práticas para partes específicas da liturgia – sobretudo para o que é central, o sacrifício da Missa– é suficiente concentrar-se em uns poucos pontos especialmente significativos para a reforma do Ordo Missae.
Para isso, devem se enfatizar especialmente duas diretivas Conciliares. No artigo 50 se dá, primeiramente, a diretiva de que na reforma deve manifestar-se mais claramente a natureza intrínseca das várias partes da Missa, e a conexão entre elas, com a finalidade de facilitar a ativa e devota participação dos fiéis.
Como conseqüência, se enfatiza que os ritos devem ser simplificados, porém mantendo, ao mesmo tempo, fielmente sua substância, e que certos elementos que tinham sido duplicados no curso dos séculos ou agregados de maneira não especialmente oportuna, deviam ser novamente eliminados; enquanto outros, que tinham sido perdidos com a passagem do tempo, seriam restaurados em harmonia com os padres Conciliares até onde parecera apropriado ou necessário.
 
O CONCÍLIO: ÊNFASE ESPECIAL NO SILÊNCIO
 
No que concerne à participação dos fiéis, os vários elementos de compromisso exterior estão indicados no artigo 30, com ênfase especial no silêncio necessário, nos momentos devidos. O Concílio volta a isso, com mais detalhe, no artigo 48, com uma nota especial sobre a participação interior, através da qual a adoração a Deus e a obtenção da Graça, juntamente com o sacerdote que oferece o sacrifício e os demais participantes, logra seus frutos.
 
A LINGUAGEM LITÚRGICA
 
O Artigo 36 fala da linguagem litúrgica em geral, e o artigo 54 dos casos particulares da Missa. Logo após de uma discussão que durou vários dias, na qual se discutiram os argumentos, a favor e contra, os padres Conciliares chegaram à clara conclusão – em total acordo com o Concílio de Trento– de que o Latim devia ser mantido como a língua do culto para o rito Latino, ainda que fossem possíveis e até bem aventurados os casos excepcionais. Voltaremos a este ponto em detalhe.
 
O CANTO GREGORIANO
 
O artigo 116 fala extensamente sobre o canto gregoriano, fazendo notar que este foi o canto clássico da liturgia católica desde o tempo de Gregório, o Grande, e que, como tal, deve ser mantido. A música polifônica também merece atenção e estudo. Os demais artigos do capitulo VI, sobre música sacra, falam do canto e a música apropriados para a Igreja e a liturgia, e enfatiza esplendidamente o importante, certamente fundamental, papel do órgão na liturgia Católica.
O artigo 107 analisa a reforma do ano litúrgico, pondo ênfase na afirmação ou reintrodução dos elementos tradicionais, e guardando seu caráter específico. Enfatiza-se particularmente a importância das festas do Senhor e em geral do Propium de tempore na seqüência anual, na qual algumas festas sagradas deviam deixar seu lugar para que a completa efetividade da celebração dos mistérios da redenção não fosse menoscabada.
Por certo que essas menções sobre a reforma litúrgica à luz da Constituição para a Liturgia não são completas, no que concerne aos distintos temas considerados, nem a como foram tratados. Selecionarei muitos e variados exemplos que parecem necessários para chegar a uma conclusão convincente.
A Igreja e a liturgia crescem e se desenvolvem juntas, porém sempre de modo que o terreno se organize em torno ao celestial. A Missa vem de Cristo; foi adotada pelos apóstolos e seus sucessores, como também pelos Padres da Igreja. Desenvolveu-se organicamente com a manutenção consciente de sua substância. A liturgia se desenvolveu conforme à Fé que está contida nela; por isso podemos dizer com o Papa Celestino I, em seus escritos aos Bispos Galicanos, no ano 422: Legem credendi lex statuit supplicandi: a liturgia contém e, em formas adequadas e compreensíveis, expressa a Fé. Nesse sentido, o conteúdo da liturgia participa do conteúdo da própria Fé e, certamente, contribui a protegê-la. Nunca se viu, então, em nenhum dos ritos cristãos católicos, uma ruptura, uma criação radicalmente nova – a exceção da reforma pós-conciliar. Porém, o Concílio pediu, uma e outra vez, que a reforma se mantivesse unida à tradição. Todas as reformas, começando com Gregório I, ao longo da Idade Média, durante o ingresso na Igreja dos povos mais díspares com seus variados costumes, observaram essa regra básica.
Essa é, incidentalmente, uma característica de todas as religiões, inclusive as não reveladas, o que prova que um apego à tradição é comum a todo culto religioso, e, portanto, é algo natural.
Não é surpreendente, portanto, que cada broto herético da Igreja Católica tenha gerado uma revolução litúrgica, como é claramente reconhecível no caso dos protestantes e anglicanos; enquanto que as reformas efetuadas pelos Papas e particularmente estimuladas pelo Concílio de Trento e levadas adiante pelo Papa São Pio V, como as de São Pio X, Pio XII e João XXIII, não foram revoluções, mas meramente correções insignificantes, alinhamentos e enriquecimentos. Não devia introduzir-se nada de novo, como o Concílio diz expressamente referindo-se à reforma desejada pelos Padres Conciliares, salvo que o demandassem o bem genuíno da Igreja.
 
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MULTIPLICIDADE PRATICAMENTE ILIMITADA.
 
Há vários exemplos do que a reforma pós-conciliar de fato produziu, sobretudo, em seu próprio coração, o radicalmente novo Ordo Missae. O novo intróito da Missa assegura um lugar destacado a muitas variantes, e por meio de posteriores concessões à imaginação dos celebrantes com suas comunidades, foi levando a uma multiplicidade praticamente ilimitada. De perto, se lhe segue o Lecionário, ao qual voltaremos em conexão com outro assunto.
 
O OFERTORIO, UMA REVOLUÇÃO.
 
Logo depois disso vem o Ofertório, o qual, em seus textos e conteúdo, representa uma revolução. Já não aparece como o antecedente do sacrifício, mas somente como uma preparação dos dons, com sentido evidentemente humanizado, o que nos impressiona como artificial do princípio ao fim. Na Itália foi chamado o sacrifício dos cultivadores diretos, isto é, por pouca gente que ainda cultiva pessoalmente suas pequenas parcelas de terra, em geral antes e depois de sua ocupação principal. Devido aos grandes métodos técnicos à disposição da agricultura, que hoje só se podem obter por meio da indústria, para a produção do pão, utiliza-se muito pouco trabalho do homem. Desde o arar até a colheita, da qual procedem os grãos de trigo, são necessárias muito poucas mãos humanas. A substituição da oferta dos dons para o sacrifício a realizar-se é antes um infeliz e anacrônico simbolismo que dificilmente pode substituir os vários elementos simbólicos genuínos que foram supressos.
Fez-se também tabula rasa dos gestos altamente recomendados pelo Concílio de Trento e solicitados pelo Concílio Vaticano II, como também muitos Sinais da Cruz, beijos no altar e genuflexões.
O SACRIFíCIO.
 O centro essencial, a ação sacrifical em si mesma, sofreu um perceptível desvio em direção à comunhão, tendo sido o Sacrifício da Missa em sua totalidade transformado em uma Ceia Eucarística, enquanto que na consciência dos crentes os componentes integrantes da Comunhão substituíram o componente essencial do ato transformador do sacrifício. O Cardeal Ratzinger também determinou expressamente, em referência às mais modernas investigações dogmáticas e exegéticas, que é teologicamente falso comparar a ceia com a Eucaristia, o que ocorre praticamente sempre na nova liturgia.
        Com isto, o terreno fica preparado para outra mudança essencial: em lugar do sacrifício oferecido por um sacerdote ungido como alter Christus acontece a ceia comunitária dos fiéis convocados sob a presidência do sacerdote. A intervenção dos Cardeais Ottaviani e Bacci persuadiu o Papa a mudar a definição que confirmava essa mudança no Sacrifício da Missa, pelo que foi ¨destruída¨ por ordem de Paulo VI. A correção da definição, de todo modo, não resultou em nenhuma mudança no próprio Ordo Missae.
 
CELEBRAÇÃO VERSUS POPULUM.
 
Essas mudanças do coração do Sacrifício da Missa foram confirmadas e estimuladas pela celebração versus populum, uma prática que anteriormente tinha sido proibida e que era uma marcha atrás de toda a tradição da celebração voltada para o Leste, na qual o sacerdote não era a contraparte do povo, senão, melhor dizendo, alguém que atuava in persona Christi, sob o símbolo do sol nascendo no Leste.
 
A FÓRMULA DA CONSAGRAÇÃO DO VINHO E O MISTERYUM FIDEI.
 
É pertinente assinalar uma mudança muito séria na fórmula da consagração do vinho no Sangue de Cristo: as palavras Mysterium fidei foram eliminadas, e enxertadas logo depois como uma exclamação conjunta com o povo, o que foi um golpe para a "actuosa participatio".
¿Que diz expressamente a investigação histórica que o Concílio ordenou como prévia realização de qualquer mudança? Que essas palavras datam das primeiras tradições da Igreja Romana que nos são conhecidas, que nos foram transmitidas por São Pedro. São Basílio, que através de seus estudos em Atenas estava certamente familiarizado com a tradição ocidental, diz a propósito das fórmulas de todos os sacramentos, que não tinham sido escritas nas bem conhecidas sagradas escrituras dos apóstolos e seus sucessores e discípulos, por motivo da disciplina de segredo que então imperava, pelo qual os mais sagrados mistérios da Igreja não deviam estar ao alcance dos pagãos. Diz expressamente, como todas as testemunhas do cristianismo, que participam da mesma convicção, que além dos ensinamentos escritos que nos foram entregues, temos outros que in mysteria tradita sunt  e que datam da época dos apóstolos; diz que ambos têm o mesmo valor, e que ninguém deve contradizer nenhum dos dois. Como exemplo, cita expressamente as palavras pelas quais o Pão Eucarístico e o Cálice da Salvação são consagrados. ¿Que os santos nô-las entregaram escritas?
 
São Tomás diz que as palavras "mysterium fidei" são de tradição divina
 
    Todos os subseqüentes períodos da história testemunham expressamente sobre esta herança histórica na fórmula da Consagração Eucarística: o Sacramentário gelasiano –o Missal mais antigo da Igreja Romana– contém no códice vaticano, no texto original, as palavras ¨mysterium fidei", e não como uma adição posterior.
    Sempre se perguntou sobre a origem dessas palavras. Em 1202, João, Arcebispo emérito de Leão, perguntou ao Papa Inocêncio III, cujos conhecimentos litúrgicos eram bem conhecidos, se alguém devia crer que as palavras do cânon da Missa, que não provém dos evangelhos, foram transmitidas por Cristo e os apóstolos a seus sucessores. O Papa respondeu numa longa carta de Dezembro desse ano que devemos crer que essas palavras, que não estão nos Evangelhos, foram recebidas de Cristo pelos apóstolos, e deles passaram a seus sucessores. O fato de que este decretal (incluído na coleção de cartas decretais de Inocêncio III e que foi compilado por Raimundo de Peñaforte por ordem do Papa Gregório IX) não foi excluído como o foram outras, prova o prolongado valor outorgado a essa afirmação do grande Papa.
    São Tomás fala largamente deste tema na Summa Theologiae III, q. 78,art. 3, sobre as citadas palavras da consagração do vinho. Explicando a arcana necessária disciplina da antiga Igreja, diz que as palavras ¨mysterium fidei¨ vêm de tradição divina, que foi entregue à Igreja pelos apóstolos, fazendo especial referência a 1 Cor. 10(11) -23 e a 1 Tim. 3-9. Um comentarista se refere a DD Gousset na edição de 1939 de MARIETTI : ¨seria um grandíssimo erro substituir uma outra forma eucarística àquela do Missal Romano ... suprimir por exemplo a palavra aeterni e aquela expressão mysterium fidei que recebemos da tradição¨. Também o Concílio de Florença, na bula de união com os Jacobitas, acrescenta expressamente a fórmula da consagração na Santa Missa, que a Igreja Romana sempre usou fundando-se no ensinamento e autoridade dos apóstolos Pedro e Paulo.
        Extranha-se a maneira sumamente desdenhosa pelas quais o Cardeal Lercaro e P. Bugnini prescindiram da obrigação de empreender uma investigação histórica e teológica detalhada no caso de uma mudança tão fundamental. Se semelhante coisa aconteceu a esse respeito, como terão cumprido essa obrigação fundamental antes de fazer outras mudanças?
        A Eucaristia não é apenas o mistério único de nossa fé, é também um mistério perdurável, do qual sempre devemos permanecer conscientes. Nossa vida eucarística de todos os dias requer um intermediário que abrace completamente esse mistério – sobretudo na idade moderna, na qual a autonomia e auto glorificação do homem moderno resistem a todo conceito que vá mais além do conhecimento humano, que lhe recorde suas limitações. Cada conceito teológico se transforma, para ele, em um problema, e a liturgia, especialmente como suporte da fé, se torna permanentemente objeto de desmistificação, isto é, para humanizá-la ao ponto de fazê-la absolutamente compreensível. Por essa razão, o desaparecimento do mysterium fidei da fórmula eucarística se converte num símbolo poderoso de desmitologização, um símbolo da humanização do que é central no culto divino, a Santa Missa.
 
ACTUOSA PARTICIPATIO.
 
Com isto, chegamos a várias falsas interpretações -e igualmente falsas implementações- de uma demanda central dos reformadores: uma fervorosa, ativa participação dos fiéis na celebração da Missa. O principal propósito de sua participação é o que o Concílio diz expressamente: o culto à majestade de Deus (isto não exclui a possibilidade de que a participação também seja ativada dentro da comunidade).
    Sobretudo, essa actuosa participatio foi solicitada como resultado da apatia, freqüentemente lamentada, dos que assistiam a Missa, no período pré conciliar. Se da mesma resulta um falar e fazer sem fim, que permite a todos tornarem-se ativos em forma do bulício e animação que são próprios de toda assembléia humana, até os momentos mais sagrados do encontro eucarístico com o Deus-Homem se transforman nos mais falados e distraídos. O misticismo contemplativo do encontro com Deus e seu culto, sem dizer nada da reverência que deveria acompanhá-lo, morre instantaneamente: o elemento humano mata o divino, e enche a alma de vazio e de desilusão.
 
O IDIOMA DO CULTO.
 
Aqui se deve mencionar um ponto mais, um decreto do Concílio não somente mal entendido, como também completamente negado: o idioma do culto. Estou muito a par de toda a discussão sobre isso. Como perito na Comissão para os seminários, me foi confiada a questão da língua latina. Demonstrou ser breve e concisa, e, depois de longa discussão, ela foi levada a uma forma que satisfazia os desejos de todos os membros, e estava pronta para ser apresentada na aula Conciliar. Então, numa inesperada solenidade, o Papa João XXIII assinou a Carta Apostólica Veterum Sapientiae sobre o altar de São Pedro. De acordo com a opinião da Comissão, isso tornava supérflua a declaração do Concílio sobre o latim na Igreja (nesse documento se pronunciou não só sobre a relação entre a língua latina e a liturgia, como também sobre todas suas outras funções na vida da Igreja.)
Enquanto o tema da língua de culto era discutida na aula Conciliar, durante vários dias, segui o processo com grande atenção, como também as várias redações da Constituição para a Liturgia, até a votação final. Ainda recordo muito bem como, logo depois de várias propostas radicais, um Bispo siciliano se pôs de pé e implorou aos padres que permitissem que a cautela e a razão reinassem neste ponto, porque, de outro modo, haveria o perigo de que toda a Missa se celebrasse na língua do povo, o que provocou que toda a aula estalasse em sonoras risadas.
Portanto, nunca pude compreender como o Arcebispo Bugnini pode escrever, a propósito da transição radical e completa do latim prescrito ao uso exclusivo da língua vulgar no culto, que o Concílio tinha dito praticamente que a língua vernácula em toda a Missa era uma necessidade pastoral (op. cit., pp 108-121; estou citando da edição original italiana).
        Pelo contrário, posso atestar o fato de que, de acordo com a redação da Constituição Conciliar sobre essa questão, tanto na parte geral (art. 36) como nas regulamentações especiais para o Sacrifício da Missa (art. 54) os padres conciliares mantiveram um acordo praticamente unânime, sobretudo na votação final: 2152 votos a favor e só 4 contra. Em minha investigação para o decreto conciliar sobre o idioma latino, me dei conta da opinião concordante da inteira tradição: até o Papa João XXIII, todos os esforços em contrário encontraram uma atitude claramente oposta. Consideremos em particular a afirmação do Concílio de Trento, sancionada com anátema, contra Lutero e o Protestantismo, de Pio VI contra o Bispo Ricci e o Sínodo de Pistoia; e do Papa Pio XI, que julgou a linguagem do culto da Igreja como "non vulgaris ". E ainda esta tradição não é somente uma questão de ritual, apesar de que esse seja o aspeto enfatizado sempre; melhor, é importante porque a língua latina atua como uma cortina reverente contra a profanação (em lugar da iconostasis dos orientais, por trás da qual tem lugar a anáfora) e pelo perigo de que, através da língua vulgar, todo o ato da Missa possa ser profanado, como de fato acontece hoje em dia. A precisão da língua latina, ademais, faz justiça aos conteúdos didáticos e doutrinais da liturgia na forma única, protegendo a verdade do ofuscamento e da adulteração. Finalmente, a universalidade do latim representa e sustem a unidade de toda a Igreja.
 
PRO MULTIS.
 
 Por sua importância prática, gostaria de adentrar com exemplos nas duas razões recém mencionadas. Um bom amigo me faz enviar regularmente o Deutsche Tagepost. Sempre leio a penúltima folha, na qual a equipe editorial, muito louvavelmente, dá aos leitores a oportunidade de expressar pontos de vista opostos em cartas ao editor. Uma série contínua de ditas cartas se referia em detalhe ao "pro multis" do texto latino da consagração e com sua tradução como "por todos". Uma e outra vez se referiam à Filologia, a que muitas vezes se transforma na ama, em lugar de ser meramente a ajudante da Teologia. Monsenhor Johannes Wagner diz em sua "Liturgiereformerinnerugen" (1993) que os italianos foram os primeiros a introduzir essa tradução, apesar de que ele teria preferido a tradução literal de "muitos". Infelizmente, nunca vi recorrer a um argumento de primeira ordem contido no Catecismo Romano Tridentino, que é, ao mesmo tempo teologicamente decisivo e pastoralmente de extrema importância. Ali, a distinção teológica está claramente enfatizada: o "pro omnibus" indica a força que a Redenção tem "para todos". Se alguém leva em consideração, de todos os modos, o fruto que resulta dessa salvação aos homens, o Sangue de Cristo não é efetivo para todos, mas antes para "muitos", isto é, para aqueles que aproveitam seus benefícios. É correto então aqui não dizer para "todos", posto que nessa passagem se fala somente dos frutos do sofrimento de Cristo, que atingem somente aos eleitos. Pode-se aqui encontrar aplicação para o que o Apóstolo disse em Heb. 9 : 28, que Cristo se sacrificou uma só vez pelos pecados de ¨muitos¨, e a distinção do próprio Cristo : "Oro por eles; não oro pelo mundo, mas por aqueles que Tu me deste, porque te pertencem". Todas essas palavras da consagração contém muitos segredos que os pastores devem reconhecer através do estudo e com a ajuda de Deus.
Não é difícil ver aqui verdades pastorais de extraordinária importância presentes nos conteúdos dogmáticos da língua de culto latina, que inconscientemente (ou também conscientemente) ficam encobertos por uma tradução imprópria.
 
UMA DESGRAÇA PASTORAL. O ABANDONO DO LATIM COMO LÍNGUA DO CULTO
 
Uma segunda e maior fonte de desgraça pastoral, novamente contra a vontade explícita do Concílio, resultou de abandonar o latim como língua do culto. O latim desempenha um papel de linguagem universal que unifica o culto público da Igreja sem ofender nenhuma língua vernácula.
Reveste-se isto da maior importância, hoje, em um tempo em que o desenvolvimento do conceito de Igreja encadeia a todo o Povo de Deus, no único corpo Místico de Cristo, ressaltado em outro lugar da reforma.
Ao introduzir o uso exclusivo da língua vernácula, a reforma deixa fora da unidade da Igreja a várias pequenas Igrejas, separadas e isoladas. Onde está a possibilidade pastoral para os católicos, através de todo o mundo, de encontrar sua Missa, para vencer diferenças raciais através de uma língua comum de culto, ou, pelo menos, em um mundo cada vez menor, poder simplesmente rezar juntos, como o pede explicitamente o Concílio? Onde está agora a factibilidade pastoral de que um sacerdote exerça o ato mais altamente sacerdotal –a Santa Missa–- em todas parte, sobretudo em um mundo onde faltam sacerdotes?
 
Uma pessoa não pode surpreender-se quando descobre que em cada paróquia parece reinar um Ordo diferente
 
O LECCIONÁRIO DE TRÊS ANOS, UM CRIME CONTRA A NATUREZA
 
Na Constituição Conciliar não se fala em nenhuma parte da introdução de um lecionário de três anos. Através disto a Comissão de reforma se tornou culpada de um crime contra a natureza. Um simples ano calendário teria bastado para todos os desejos de mudança. O Concilium podia ter se mantido dentro de um ciclo anual, enriquecendo as leituras com tantas y tão variadas possibilidades de escolha como quereriam, sem alterar o curso normal do ano. Nessa mudança, foi destruída a velha ordem de leituras, e foi introduzida uma nova ordem, com uma grande carga e gasto em livros, nos quais se podiam instalar tantos textos quanto fosse possível, não somente do mundo da Igreja como também –como se praticou amplamente– do mundo profano. A parte das dificuldades pastorais por parte dos fregueses para compreender textos que necessitam exegeses especiais, resultou ser uma oportunidade –que foi aproveitada– para manipular os textos com o fim de introduzir novas verdades em lugar das velhas. Passagens pastoralmente impopulares –freqüentemente de significado teológico e moral fundamentais– foram simplesmente eliminadas. Um exemplo clássico é o texto de 1 Cor. 11 :27-29: aqui, na narração da instituição da Eucaristia, foi deixada fora continuamente a séria exortação final sobre as graves conseqüências de recebê-la impropriamente, ainda que na festa de Corpus Christi. A necessidade pastoral desse texto, tendo em vista a atual recepção da comunhão, sem confissão e sem reverência, é óbvia. 
    Os desatinos que se podem cometer com as novas leituras, especialmente em suas palavras introdutórias e conclusivas, são exemplificados pela nota de Klaus Gamber ao final da leitura do primeiro domingo da Quaresma do Ciclo A, que fala das conseqüências do Pecado Original : ¨Então os olhos de ambos se abriram e souberam que estavam nus¨. Logo após o que o povo, exercendo sua vívida e ativa participação deve responder: ¨Graças a Deus¨.
    Indo mais além, por que era necessária a alteração da seqüência das festas sacras? Se algum cuidado era necessário, era aqui por interesse pastoral e consciência do apego do povo às festas de suas Igrejas locais, cuja desordem temporária tinha que ter uma muito má influência na piedade popular. Os que implementaram a reforma litúrgica parecem não ter sentido a menor comiseração com essas considerações, apesar dos artigos 9, 12, 13 e 37da Constituição para a liturgia.
SENTENÇA DE MORTE PARA AS MELODIAS GREGORIANAS.
Umas breves palavras devem ser ditas ainda sobre as regulamentações conciliares sobre música litúrgica. Nossos reformadores certamente não compartilhavam dos grandes elogios ao canto gregoriano, que expressavam, mais e mais, os observadores seculares e os entusiastas. A abolição radical (sobretudo pela criação de novas partes corais para a Missa) do Intróito, Gradual, Tracto, Alleluia, Ofertorio, Comunhão (e isto especialmente como uma oração especial da comunidade), a favor de outras de duração consideravelmente maior, foi uma sentença de morte silenciosa para as maravilhosas e variáveis melodias gregorianas, com a exceção das simples melodias das partes fixas da Missa, a saber o Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus/ Benedictus, e Agnus Dei, e isto só para umas poucas Missas. As instruções do Concílio sobre a proteção e respaldo a este antigo canto da Igreja se encontraram na prática com uma epidemia fatal.
 
O ÓRGÃO
 
O tão apreciado instrumento da Igreja, o órgão, experimentou um destino similar com a abundante substituição por instrumentos, cuja enumeração e caracterização deixarei à vossa rica experiência pessoal, com a única observação de que prepararam o caminho para a entrada de elementos diabólicos na música da Igreja.
 
A "CRIATIVIDADE", OUTRA ABERTA VIOLAÇÃO DO CONCÍLIO
 
A laxitude permitida para inovar representa um último tema importante nesta lista de elementos práticos da reforma. Essa laxitude está presente no Ordo da Missa em seu original latino. Entre os vários Ordos nacionais, o Ordo Alemão da Missa sobressai por mostrar muitas mais concessões deste tipo. Praticamente elimina o estrito, absoluto edito de art. 22, &3,da constituição Conciliar, que diz que ninguém, nem sequer um sacerdote, pode por sua própria autoridade agregar, saltar ou alterar nada. As violações durante todo o processo da Missa que estão se levantando mais e mais contra esse edito do Concílio, estão sendo a causa de uma desordem rumorosa, que o velho Ordo Latino, com sua tão lamentada rigidez, impediu com tanto êxito. O novo garantidor do ordo contribui assim para a desordem, e uma pessoa não pode, então, surpreender-se quando, uma e outra vez, descobre que em cada paróquia parece reinar um Ordo diferente.
 
CRÍTICAS À REFORMA
 
Com isso, chegamos às públicas, ainda que limitadas, críticas sobre a reforma da Missa. O próprio Arcebispo Bugnini as expõe com notável honestidade nas páginas 108 - 121 de suas memórias da reforma, sem poder refutá-las. Em suas memórias e nas de Monsenhor Wagner, a insegurança do Consilium sobre as reformas que tão apressadamente levaram a cabo é óbvia. Também ali aparece pouca sensibilidade.
Até as prévias investigações ¨teológicas, históricas e pastorais¨ ordenadas pelo Concílio como necessárias antes de qualquer alteração [Falha no texto: não se levaram em conta???]. Por exemplo, a competente capacidade de Monsenhor Gamber, o historiador de liturgia alemão, foi completamente ignorada. A pressa incompreensível com que se deu forma à reforma, e com que foi tornada obrigatória fez com que Bispos influentes, que estavam de todo menos apegados à tradição, a reconsideraram. Um monsenhor que tinha acompanhado o Cardeal Döpfner como secretário em Salzburgo, para sancionar uma resolução dos Bispos de língua alemã, para a ativação do Novo Ordo da Missa em seu país, contou-me que o Cardeal estava muito reticente, quando de sua viagem de retorno a Munich. Nesse momento, expressou brevemente seu medo de que um assunto pastoral tão delicado tivesse sido tratado com tanto pressa.
 
VALIDEZ DOGMÁTICA E JURÍDICA DO NOVUS ORDO
 
Com o fim de evitar qualquer mal entendido, quereria enfatizar que nunca coloquei em dúvida a validade dogmática ou jurídica do Novus Ordo Missae, apesar de que na ordem jurídica me assaltassem sérias dúvidas em vista de meu intenso trabalho com os canonistas medievais. Eles têm a unânime opinião de que os papas podem mudar qualquer coisa, com exceção do que prescrevem as Sagradas Escrituras, ou o que concerne as decisões doutrinais do mais alto nível tomadas previamente, e o status ecclesiae. Não há perfeita clareza com respeito a esse conceito. O apego à tradição no caso de coisas fundamentais que influíram em forma concludente sobre a Igreja no curso dos tempos, certamente pertence a esse status fixo, imutável, do qual o Papa não tem direito de dispor. O significado da liturgia para o íntegro conceito da Igreja e seu desenvolvimento, que foi também enfatizado pelo Concílio Vaticano II como imutável em sua natureza, nos leva a crer que, de fato, deveria pertencer ao status ecclesiae.
 
OUTRAS CRÍTICAS
 
Deve se dizer, de todo modo, que esses excessos lamentáveis, que sobretudo são conseqüência das discrepâncias entre a Constituição Conciliar e o Novus Ordo, não ocorrem quando a nova liturgia é celebrada reverentemente, como é o caso sempre, por exemplo, que o Santo Padre oferece a Missa. Igualmente não pode escapar aos peritos na antiga liturgia, que grande diferença existe entre o corpus traditionem, que estava vivo na velha Missa, e o Novus Ordo inventado, com decidida desvantagem para o segundo. Pastores, acadêmicos e fiéis leigos o notaram, por suposto; e a multidão de vozes opositoras aumentou com o tempo. Por isso, o próprio Papa reinante, em sua Carta Apostólica Domiicae Cenae, de 24 de Fevereiro de 1980, a respeito do mistério e do culto eucarístico, assinalou que as questões concernentes à liturgia, sobretudo à Eucaristia, jamais deviam ser ocasião para dividir os católicos e ameaçar a unidade da Igreja; trata-se certamente, disse, ¨do sacramento da piedade, o símbolo da unidade, e o vínculo da caridade¨.
Em sua carta apostólica, por motivo do vigésimo quinto aniversário da aprovação da Constituição para a Sagrada Liturgia, de 4 de Dezembro de 1963, que foi publicada em 4 de Dezembro de 1988, logo após elogiar a renovação na linha da tradição, o Papa trata da aplicação concreta da reforma: ele assinala as dificuldades e os resultados positivos, porém também detalha as aplicações incorretas. Também diz expressamente que é dever da Congregação para o Culto Divino proteger os grandes princípios da liturgia católica, como se manifestaram e desenvolveram na Constituição para a Liturgia, e ter presentes as responsabilidades das conferências episcopais e dos Bispos
O Cardeal Ratzinger, protetor da Fé (e do culto conexo a essa) mais próximo do Papa, fez repetidos comentários sobre a reforma litúrgica pós-conciliar e submeteu seus problemas teológicos e pastorais a uma crítica construtiva, com singular profundidade e clareza. Recordo-lhes apenas o livro ¨A Festa da Fé¨ (1981), o prólogo à tradução francesa do breve e básico livro de Klaus Gamber, e finalmente as referências em seus livros recentes, ¨Sal da Terra¨, e sua auto biografia ¨Minha vida¨, ambos publicados em 1997.
Entre os Bispos de língua alemã, ou responsáveis pela liturgia na conferência episcopal austríaca, assinalou-se, em 1995, que o Concílio não tinha intentado uma revolução, mas sim uma reforma da liturgia que fosse fiel à tradição. Em troca, disse, um culto de espontaneidade e improvisação leva parte da culpa da tendência declinante do número de assistentes à Missa.
Crítica devastadora do Cardeal Daneels, primaz da Bélgica: a liturgia transformada em um verdadeiro "happening"
Por último, o Primaz da Bélgica, Cardeal Daneels, que certamente não pode ser tido como retrógrado, submeteu toda a reforma a uma crítica devastadora: houve uma reviravolta de 180 graus, disse, na transição de uma obediência às rubricas, a sua livre manipulação, com o qual uma mesma pessoa faz uso da liturgia com o fim de transformar o serviço e o culto a Deus em uma assembléia criativa do povo, um verdadeiro ¨happening ¨, um discurso em que o indivíduo quer representar um papel em lugar do Filho de Deus, Jesus Cristo, em cuja casa é um convidado. O desejo do homem por compreender o serviço, diz Daneels, não deveria conduzir a uma criatividade humana subjetiva, mas a uma penetração nos mistérios de Deus. Uma pessoa não teria que explicar a liturgia, mas vivê-la como uma janela para o invisível.
Quando descemos a níveis mais baixos na escala dos filhos de Deus, encontramos, mesmo entre os membros do Consilium, um colega: o Padre Louis Bouyer, apontado como crítico pelo Arcebispo Bugnini, e que não permaneceu em silêncio desde então.
            Eu gostaria de acrescentar brevemente, como referência ecumênica, duas experiências das Igrejas Orientais
 Durante sua visita, nos tempos finais do Concilio, representantes do Patriarcado de Constantinopla disseram, em conversas pessoais, que não entendiam porque a Igreja Romana insistia em mudar a liturgia; não se deveria fazer semelhante coisa. A Igreja Oriental, disseram, deveu a manutenção de sua fé à sua fidelidade à tradição litúrgica e ao sadio desenvolvimento desta. Também ouvi coisas similares de membros do Patriarcado de Moscou, que atenderam à Comissão Vaticana de História, durante o Congresso Histórico Internacional de Moscou, em 1970.
Na Itália, a crítica contundente ¨The Torn Tunic¨ (1967) pelo escritor leigo de baixo perfil Tito Casini, com um prólogo do Cardeal Bacci, causou sensação. Lentamente mais e mais grupos de leigos, a que pertenciam muitos intelectuais de alto nível, se organizaram em movimentos nacionais, sobretudo na Europa e América do Norte, e se conectaram, na Europa e mais além, na organização internacional Una Voce; os problemas da reforma foram também discutidos em periódicos, entre os quais sobressai o alemão Una Voce Korrespondenz. Em um resumo característico, o canadense Precious Blood Banner, de Outubro de 1995, diz que cada vez se vê com mais clareza que o radical dos reformadores pós-conciliares não consistiu em renovar a liturgia católica desde suas raízes, mas em arrancá-la de seu terreno tradicional. Não reelaborou o rito romano, como se lhe pediu que fizesse, na Constituição para a Liturgia do Vaticano II, mas que o desenraizou.
 
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Max Thurian: a celebração contemporânea freqüentemente toma a forma de um diálogo no qual não há lugar para a oração, a contemplação e o silêncio
 
Pouco antes de sua morte, o muito conhecido prior de Taizé, Max Thurian, um convertido ao catolicismo que antes fora calvinista, expôs sua visão da reforma em um longo artigo intitulado "A liturgia como contemplação do Mistério" no "L´Osservatore Romano" (27-28 de Maio de 1996, pág. 9). Depois de uma compreensível expressão de elogio ao Concílio e à Comissão de Liturgia, que se supunha, produziriam os frutos mais admiráveis, diz expressamente que a celebração contemporânea freqüentemente toma a forma de um diálogo no qual não há lugar para a oração, a contemplação e o silencio. O constante contraponto entre os celebrantes e os fiéis isola a comunidade em si mesma. Uma celebração saudável por outro lado, que outorgue ao altar uma posição privilegiada, conduz o dever do celebrante, isto é, orientar a todos em direção ao Senhor e a adorar Sua presença, a qual está representada nos símbolos e realizada no Sacramento. Isto transmite à liturgia esse sopro contemplativo sem o qual se transforma em uma torpe discussão religiosa, uma vazia atividade comunal e uma espécie de falatório.
Thurian faz uma quantidade de propostas pessoais à autoridade para o caso de uma revisão dos ¨Princípios e Normas para o uso do Missale Romanum¨ (se vê que ele alimentava a esperança de que isso fosse possível) , que demonstram claramente sua insatisfação com os princípios atuais. Sob o título de ¨O sacerdote no Serviço da Liturgia¨, faz uma série de críticas distinguidas da presente situação, que compartilham praticamente todas as severas críticas deste resumo e que merecem um exame individual ...
Dois significativos informes mais, do mundo da gente comum e menos educada, que expressam da melhor maneira o genuíno sensus fidei dos filhos de Deus: dois jovens escoteiros de dez e doze anos da zona de Siena, que assistem à chamada Missa Tridentina aos sábados, baseando-se no privilégio outorgado pelo Bispo de Siena, à minha pergunta intencional, sobre que Missa lhes agradava mais, responderam que, desde que assistiam à antiga, já não gostavam da nova.
Um granjeiro, velho e simples, que vem da zona pobre de Molise, disse-me espontaneamente que ele somente ia à Missa tridentina das seis da manhã, porque considera que a mudança na liturgia é uma mudança da Fé, que ele quer manter.
Mons. Klaus Gamber, um destacado perito que já mencionei, publicou informes estritamente acadêmicos, sobretudo seu resumo "A Reforma da Liturgia Romana", que foram mais ou menos silenciados pela literatura oficial especializada, porém estão sendo redescobertos, agora, por sua penetrante clareza e visão interior. Chegou à conclusão de que hoje estamos ante as ruínas de uma tradição de 2000 anos, e que se teme que como resultado das incontáveis reformas a tradição esteja submetida a uma confusão tão vandálica que pode ser difícil revivê-la. A gente quase não se atreve a perguntar se logo após deste desmantelamento poderá vir uma reconstrução da velha ordem.
ESPERANÇAS.
Mesmo assim, não se deve perder a esperança. Quanto ao desmantelamento, vemos como ele se reflete com respeito às ordens dadas pelo Concílio. Estas dizem: não se pode introduzir nenhuma inovação, a menos que o exija o real e certo benefício da Igreja, e isso em conseqüência de precisa investigação teológica, histórica e pastoral. Sobretudo, qualquer mudança deve ser feita de tal maneira que as novas formas surjam organicamente das já existentes. Se isso aconteceu ou não, minhas lembranças podem dar apenas um panorama limitado. Deveriam mostrar, de todo modo, se as exigências teológicas e eclesiológicas essenciais se cumpriram na reforma, por exemplo, se a liturgia, e sobretudo seu coração, a Santa Missa, ordem do humano ao divino, e subordinando o primeiro ao último, faz o mesmo com o visível com relação ao invisível, o ativo ao contemplativo, o presente à eternidade futura; ou se a reforma, pelo contrário, freqüentemente subordinou o divino ao humano, o mistério invisível ao que é visível, o contemplativo à participação ativa, a eternidade por vir ao mundano presente humano. Porém, precisamente o sempre claro reconhecimento da situação real reforça a esperança de uma possível reconstrução, a qual o Cardeal Ratzinger vê em um novo movimento litúrgico que ressuscite a verdadeira herança do Concílio Vaticano a uma nova vida ("La mia Vita", 1997, pág. 113 ).
 
UMA PERSEPECTIVARECONFORTANTE.
 
Termino com uma perspectiva reconfortante: o Santo Padre reinante, João Paulo II, com a sensibilidade pastoral que o distingue, manifestou sua preocupação em um apelo de 1980 sobre os problemas que a mudança da liturgia criava na Igreja Católica, porém não recebeu resposta dos Bispos. Foi por isso que se decidiu, e certamente não levianamente, a emitir, em 1984, um indulto apostólico para todos os que se sentiam apegados à velha liturgia, pelas razões que enfatizei e, sobretudo, porque as inovações litúrgicas, longe de diminuírem, continuavam sua escalada. Teve um êxito pastoral muito limitado, porque foi enviado logicamente aos Bispos, em condições restritas, e deixado a seus critérios.
Logo após da consagração não autorizada de Bispos pelo Arcebispo Lefebvre, certamente com a intenção de evitar a extensão de um cisma, o Papa emitiu, em 2 de Julho de l988, um novo motu proprio, Ecclesia Dei adflicta, no qual não somente assegurava aos membros da Sociedade São Pio X, desejosos de reconciliar-se na Fraternidade de São Pedro, a possibilidade de permanecerem fiéis à antiga tradição litúrgica, senão que, ademais, deu aos Bispos um privilégio muito generoso, que devia satisfazer os legítimos desejos dos fiéis. Recomendou especialmente aos Bispos que imitassem sua generosidade para com os fiéis que se sentiam apegados às formas fixas da liturgia e disciplina antigas, e estabeleceu que se devia respeitar a todos aqueles que se sentem apegados à antiga tradição litúrgica.
O texto –compreendido desta vez muito generosamente pelos Bispos– nos dá confiança justificada de que o Papa, em seus esforços para restabelecer a unidade e a paz, não somente não retardará, senão antes continuará peloa via que nos mostra nos números 5 e 6 do motu proprio, com o fim de promover a legítima reconciliação entre a tradição indispensável e o desenvolvimento devido aos tempos.
 

    Para citar este texto:
"O Concílio, o Novus Ordo Missae e as inovações litúrgicas sem fim"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/concilio_novus_ordo/
Online, 19/04/2024 às 19:15:23h