Ciência e Fé

Eugenia: o pesadelo genético do Século XX. Parte I: o início
Paulo Sérgio R. Pedrosa


“Convém, finalmente, reprovar aquele pernicioso costume que se refere proximamente ao direito natural do homem a contrair matrimônio, mas que de certo modo respeita também verdadeiramente ao bem da prole. Há efetivamente, alguns que, com demasiada solicitude dos fins eugênicos, não só dão certos conselhos salutares para que facilmente se consiga a saúde e o vigor da futura prole — o que não é, certamente, contrário à reta razão — mas chegam a antepor o fim eugênico a qualquer outro, ainda que de ordem superior, e desejam que seja proibido, pela autoridade pública, o matrimônio a todos aqueles que, segundo os processos e conjeturas da sua ciência, supõem deverem gerar uma prole defeituosa por causa da transmissão hereditária, embora pessoalmente sejam aptos para contrair matrimônio. E até pretendem que eles, por lei, embora não o queiram, sejam privados dessa faculdade natural por intervenção médica, e isto não como castigo cruento infligido pela autoridade pública por crime cometido, nem para prevenir futuros crimes dos réus, mas contra todo o direito e justiça, atribuindo aos magistrados civis uma faculdade que nunca tiveram nem legitimamente podem ter.”

“Todos aqueles que assim procedem esquecem malignamente que a família é mais santa que o Estado, e que os homens são criados primariamente não para a terra e para o tempo, mas para o céu e para a eternidade. E não é lícito, em verdade, acusar de culpa grave os homens, aptos aliás para o matrimônio, que, empregando ainda todo o cuidado e diligência, se prevê que terão uma prole defeituosa, se contraírem núpcias, embora de modo geral convenha dissuadi-los do matrimônio.”

“A autoridade pública, todavia, não tem poder direto sobre os membros dos súditos; e por isso nunca pode atentar diretamente contra a integridade do corpo, nem por motivos eugênicos nem por quaisquer outros, se não houver culpa alguma ou motivo para aplicar pena cruenta.”

Papa Pio XI, Encíclica Casti Conubii, 68-70


Introdução

Afinal de contas, o que levou ao papa Pio XI a condenar, na encíclica Casti Conubii, os “fins eugênicos”, que desejavam impedir o casamento e impedir a reprodução daqueles que se supõe gerar uma prole defeituosa? Os estados pretendiam legislar sobre o direito reprodutivo das pessoas já na primeira metade do século XX? E com base em que?

A resposta para estas perguntas podemos encontrar ao estudar a Eugenia, uma pseudo ciência filha do Darwinismo e da Genética Mendeliana, que pretendia aplicar à humanidade os mesmos princípios e práticas que os criadores de animais usam, de forma a conseguir a “melhoria genética da raça humana”.

Tal estudo nos levará a descobrir à quais caminhos tortuosos a ciência mal utilizada e o secularismo conduzem a humanidade.

A principal fonte de consulta para este trabalho, e da maior parte das citações, é o livro A Guerra Contra os Fracos, do famoso jornalista americano Edwin Black, que nos revela a surpreendente história da Eugenia.


A Guerra Contra os Fracos

Edwin Black ficou famoso ao escrever e publicar o best seller A IBM e o Holocausto que vinculava à gigante do mercado de informática americana ao triste episódio do massacre de judeus nos campos de concentração nazistas.

Black é um excelente jornalista investigativo, embora pareça ter tendências liberais. Ele e sua equipe fizeram um trabalho de pesquisa admirável, demonstrado pela extensa bibliografia e notas de referência ao final do livro. Apesar do livro contar fatos reveladores a respeito de Margaret Sanger, uma famosa ativista feminista do início do século XX , Black declara que recebeu total apoio da Planned Parenthood - uma poderosa ONG que promove o aborto ao redor do mundo fundada por Sanger - na pesquisa que fez para este livro.

O livro A Guerra Contra os Fracos foi editado em 2003 no Brasil pela A Girafa Editora Ltda., e pode ser facilmente encontrado nas livrarias mais populares.

O livro é enorme, possui 860 páginas, das quais 157 são de notas e de referências bibliográficas, e possui uma quantidade impressionante de informações, descritas de uma maneira fácil de ser entendida mesmos pelos leitores leigos no assunto.

A idéia central do autor é tratar do nascimento, ascensão e suposta queda da pseudo ciência conhecida como Eugenia.

Tendo nascido das idéias de Galton, ainda no século XIX, a partir das idéias de Darwin e de Malthus, a Eugenia se desenvolveu principalmente nos EUA, na virada do século XX até ao final da década de 30, onde esteve fortemente vinculada ao racismo, e, depois disso, na Europa, mais especificamente na Alemanha Nazista. A suposta queda teria acontecido no final da Segunda Guerra Mundial com a revelação das atrocidades cometidas pela ciência eugenista nazista nos campos de concentração.

Será que a eugenia e seus ideais morreram com o fim da segunda guerra mundial?
Black nos diz que não, mas que ela simplesmente mudou seu nome para Genética, mantendo seus objetivos. Continua atuando, portanto, só que de forma mais velada e sutil, menos agressiva do ponto de vista jurídico.


Inicio da Eugenia

O Cristianismo implantou na sociedade ocidental a prática de ajuda aos pobres e aos menos afortunados, enfatizando a santidade da vida. Assim, os hospitais e as casas de caridade aos pobres, deficientes, doentes e necessitados proliferaram desde o início da Idade Média.

No final da Idade Média, contudo, com o crescimento do poder absolutista dos reis, o estado passou a assumir os cuidados que a Igreja tinha pelos pobres. Isto foi notório na Inglaterra, especialmente com o advento do Anglicanismo. Desta forma foi criado o assistencialismo estatal.

Igreja - caridade    vs.    Estado - assistencialismo.

Ao se afastar a Igreja do cuidado para com os necessitados, ou pelo menos limitar seu campo de ação, e sem a sustentáculo moral exercido pela sociedade religiosa, a partir dos séculos XVIII e XIX uma grande quantidade de pobres e inválidos começou a incomodar as elites européias, pois o peso financeiro deles logo se fez sentir pelo estado. Então, os necessitados passaram a serem vistos como empecilho ao avanço da civilização e obstáculo para a prosperidade do Estado:

“... um livro popular, The Seven Curses of London [As sete pragas de Londres], de 1869, condenava ‘aquelas pestes masculinas e femininas de toda comunidade civilizada, cuja aparência natural é suja, cujas testas suam à simples idéia declarada de ganhar o seu pão, e aqueles que chafurdam na imprudência, aos farrapos’.”
“As complexas instituições de custódia patrocinadas pelo estado se ampliaram através de um distante horizonte. Com o tempo, a proliferação de asilos para pobres, hospícios, orfanatos, clínicas de saúde, colônias de epilépticos, abrigos para desalojados e débeis mentais e prisões transformou inevitavelmente a básica caridade cristã no que começou a ser visto como uma praga social” (Edwin Black, A Guerra Contra os Fracos, p.p. 52-53).

Em 1789, o economista Thomas Malthus elaborou a controversa teoria de que a população crescia de forma geométrica enquanto os recursos para manutenção da humanidade cresciam em proporção aritmética. Por conta disto, propagou a necessidade de controle populacional. Esta teoria, com o tempo, se provou ser uma falácia. Hoje os cientistas alegam que é possível, com a tecnologia atual, manter uma população mundial pelo menos cinco vezes maior que a atual. Contudo, o controle populacional é política de estado da maioria das nações atuais, e tem revelado um pernicioso efeito colateral: a redução da população economicamente ativa. De fato, países inteiros correm o risco de desaparecer ou de perder importância em menos de um século, por conta do controle de natalidade que vem sendo aplicado desde a metade do século passado.

“Malthus... chegou a defender que em muitas instâncias a assistência caritativa promovia a pobreza de geração a geração e simplesmente não tinha sentido no processo natural do progresso humano” (Edwin Black, obra citada, p. 53).

Na segunda metade do século XIX surge Herbert Spencer, um filósofo inglês que criou o “Darwinismo social”, alegando que o homem e a sociedade evoluíam de acordo com a natureza que herdaram. Ele criou o conceito de “sobrevivência do mais capaz”, alegando que “os mais capazes” continuariam a aperfeiçoar a humanidade, e os menos capazes, por sua vez, ficariam gradativamente mais incapazes e ignorantes.

Spencer, dizia dos incapazes: ”Todo o esforço da natureza é para se livrar desses e criar espaço para os melhores... Se eles não são suficientemente completos para viver , morrem, e é melhor que morram... Toda imperfeição deve desaparecer” (Spencer, Herbert, Social Statics, Fund. Robert Schalkenback, 1970, p. 58-60, 289-290, 339-340, apud Black, Edwin, obra citada, p. 54. O negrito é meu).

Ligando os pontos, segundo o próprio Darwin, sua teoria “é a Doutrina de Malthus aplicada com força múltipla ao reino vegetal e animal”(Darwin, The Origin of the Species, cap. 3, apud Black, Edwin, obra cit., p. 54. Negrito e sublinhado meus).

Assim nasceu o Darwinismo social, da junção das idéias de Malthus, Darwin e Spencer. O Darwinismo social servirá, então, como uma espécie de “base filosófica” para a futura pseudo-ciência da Eugenia.

A Eugenia surgiu a partir das idéias de Francis Galton, primo de Darwin, empolgado com o trabalho de seu primo e com a recente redescoberta das experiências realizadas pelo monge Gregor Mendel. A Eugenia brotava como uma nova disciplina, baseada na genética mendeliana e na teoria da evolução das espécies de Darwin, propondo a melhoria genética da raça humana sob a tutela das “autoridades científicas”, acelerando assim o papel da natureza.

Galton, um aficionado em estatística, era um personagem singular e detentor de uma moralidade bastante dúbia:

“Galton inventariava as pessoas irrequietas numa audiência e tentava relacioná-las com níveis de interesse. Tentava compreender as ondas da água em sua banheira. Contemplava de longe mulheres bem dotadas fisicamente, usando uma sextante para registrar suas medidas...”(Karl Peason, The Life, Letters, and Labours of Francis Galton – A Vida, as cartas e os trabalhos de Francis Galton, Cambridge University Press, 1930, v II, p. 340, apud Edwin Black, obra cit., pág. 57).

Ele lançou as bases da eugenia após publicar o livro “Hereditary Genius” (Gênios hereditários), no qual defendia que “Talento e capacidade são heranças genéticas”. Como prova disto, usava o argumento de que as melhores famílias inglesas produziam os cidadãos mais destacados, e se incluía no próprio exemplo, clamando seu parentesco com Charles Darwin. O que de fato hoje se consideraria como condição privilegiada de certas classes sociais foi considerado como aptidão natural por Galton.

O primo de Darwin postulava que a condição genética humana seria fundamental para melhoria das próximas gerações e inventou um esquisita matemática eugenista, onde tentava classificar as pessoas de acordo com a sua excelência genética. De acordo com Galton, as pessoas de “sangue ruim”, ou seja, geneticamente inferiores, só eram capazes de piorar as características genéticas de seus descendentes, não importando a qualidade do cônjuge do ponto de vista genético, ou, em termos mais prosaicos, se tivesse o “sangue bom” . Dai inferiu um dos princípios dessa anormal matemática que postula o seguinte:

SANGUE BOM + SANGUE RUIM = SANGUE RUIM

SANGUE BOM + SANGUE BOM = SANGUE MELHOR

SANGUE RUIM + SANGUE RUIM = SANGUE PÉSSIMO

Galton então batizou a recém criada pseudo ciência de Eugenia (do grego, bem nascer).

Ao chegar a estas conclusões, Galton passou a desejar que o Estado controlasse os casamentos, só o permitindo àquelas pessoas consideradas superiores. Eis então a Eugenia positiva, ou seja, a melhoria da raça através da união de pessoas consideradas geneticamente superiores.
Não obstante Galton dizia:
“O que a Natureza faz de forma cega, lenta e impiedosa o homem deve fazer de modo previdente, rápido e bondoso”

Além disso, Galton se mostrava claramente contra a reprodução dos “degenerados”:
“Nenhum progresso ou intervenção social poderia ajudar o incapacitado” (Black, ob. cit. pág. 63).

E inclusos entre os degenerados estavam os criminosos contumazes, os irremediavelmente pobres, os deficientes físicos e mentais, os epilépticos e todas as pessoas que eram tidas como um peso para a sociedade.

Porém, ao constatar que a Eugenia carecia de base científica, Galton quis fazer dela uma religião:

“Incapaz de atingir a certeza científica necessária para criar uma moldura eugenista legal na Grã-Bretanha, Galton esperava recriar a eugenia como uma doutrina religiosa que governasse os casamentos, uma crença que pudesse ser aceita pela fé, sem nenhuma prova. O casamento eugenista deveria ser “estritamente imposto como um dever religiosos, como a lei do levirato jamais o foi”, escreveu Galton num longo ensaio, que listava tais precedentes entre os judeus, os cristãos e mesmo entre certa tradições primitivas. Ele saudou entusiasticamente a idéia de uma religião: ‘É fácil deixar a imaginação correr solta na suposição de uma aceitação convicta da eugenia como uma religião nacional’” (De Galton para Bateson, 8 setembro 1904. Index To Achievements of Near Kinsfolk – Índice para realizações dos parentes próximos, documentos de Galton, University College London 245/3, apud Edwin Black, ob. cit. p. 78. O negrito é meu).



Eugenia Made In USA

Logo as idéias de Galton começaram a ganhar força entre os americanos, principalmente entre os racistas, que divisaram que a aplicação mais prática da eugenia seria a Eugenia Negativa.

Se a eugenia positiva pretendia a melhoria dos indivíduos de “sangue bom” através do controle dos casamentos, idéia que se mostrou inviável na prática, por motivos óbvios, a eugenia negativa defende que os indivíduos de sangue bom deveriam ser defendidos através da eliminação dos indivíduos de “sangue ruim”, ou supostamente “inferiores” geneticamente. A eugenia positiva leva, invariavelmente, à eugenia negativa.

As futuras gerações dos geneticamente incapazes – do enfermo ao racialmente indesejado e ao economicamente empobrecido – deveriam ser eliminadas.

Por mais surpreendente que possa parecer, os EUA aplicaram legalmente e ilegalmente expedientes eugenistas. Dentre os quais destacamos:
- Segregação do incapaz;
- Deportação dos imigrantes indesejados;
- Castração de criminosos e deficientes mentais;
- Esterilização compulsória;
- Proibição de casamentos;
- Eutanásia passiva;
- Extermínio. (Não foi aplicada, mas muitos eugenistas defenderam o uso da câmara de gás).

A Eugenia negativa teve grande penetração na sociedade americana por alguns fatores característicos e singulares:
Em primeiro lugar, diferentemente da colonização espanhola e portuguesa, os americanos isolaram as grandes levas de imigrantes que chegavam ao longo do tempo em grupos étnicos e guetos Com isso, evitavam a miscigenação, influenciados principalmente pela mentalidade puritana dos primeiros colonos, que acreditavam ser o novo povo eleito e a América a Nova Terra Prometida.

Em segundo, a criminologia americana do final do século XIX começou a considerar a criminalidade como um fenômeno de grupo e características criminosas como herdadas: “A criminologia levou o ódio racial e étnico para a esfera da hereditariedade. Nos últimos anos do século XIX, o crime foi sendo considerado progressivamente um fenômeno de grupo e, de fato, um traço familiar herdado. Os criminologistas e os cientistas sociais acreditavam amplamente no “tipo criminoso”, então identificados pelos “olhos com aparência da uma conta” e por certas formas frenológicas. A noção de “criminoso natural” se tornou popular” (Edwin Black, ob. cit., p.p. 70-71).

Terceiro: surgimento de teorias sociológicas sobre famílias de degenerados e suas implicações hereditárias. Em 1874, Richard Dugdale, da Associação de Prisões de Nova York, entrevistou prisioneiros do condado de Ulster e descobriu que muitos deles eram parentes. Isto o levou a estudos que culminaram na publicação, em 1877, do livro “ The Jukes, a Study in Crime, Pauperism, Disease and Hereditariety” (Os Jukes, um estudo em crime, pauperismo, doença e hereditariedade):

“ (Dugdale) Nele... calculou o aumento progressivo custo social anual, inclusive o da previdência social, de prisões e de outros serviços sociais para cada família, o texto imediatamente exerceu ampla influência sobre cientistas sociais nos Estados Unidos e em todo mundo” (Edwin Black, ob. cit., p. 72).

Em 1898 o pastor Oscar McCullon de Indianápolis apresentou um documento chamado “Tribe of Ismael, a Study of Social Degeneration” (A tribo de Ismael, um estudo em degeneração social) na 15a Conferência Nacional de Caridade americana, que descrevia famílias indigentes nômades de Indianápolis, todas descendentes de um mesmo ancestral da década de 1790:
“Os indigentes não possuíam valor inerente para o mundo, argumentava ele, e somente procriariam gerações sucedâneas de indigentes – e tudo “porque um ancestral remoto abandonou sua vida independente e auto-suficiente, e começou uma vida parasitária e miserável” (Diane B. Paul. Controlling Human Hereditariety - Controlando a hereditariedade humana, Humanities Press International Inc., 1995, p. 44, apud Edwin Black, obra citada, p.73)

E muitos outros livros se seguiram a estes, como “Smokeys Pilgrims”, “Jackson Whites”, “Hill Folks”, etc, ajudando a eugenia a pavimentar seu caminho nos EUA, em meio ao preconceito e ao racismo.

Mesmo com vários estudiosos britânicos, como Karl Pearson em 1910, reconhecendo a precariedade do conhecimento Eugenista (Edwin Black, ob. cit., p. 77) e com Galton querendo fazer da eugenia uma religião, já que não encontravam sustentação científica para ela, a Eugenia começou a ganhar mais força nos EUA a partir de 1909.

Entretanto, os eugenistas americanos acabaram por incorporar o racismo às suas teorias genéticas e a considerar os povos germânicos como superiores (saxões - arianos). Importantes líderes eugenistas americanos como, por exemplo, Lethrop Stoddard, lamentavam a imigração de raças mediterrâneas para os EUA que excediam o número de povos nórdicos, para eles mais desejáveis:

“Nos EUA... No final do século XIX, nosso país, originalmente povoado quase exclusivamente por nórdicos, foi invadido por hordas de imigrantes dos Alpes e do Mediterrâneo, sem mencionar os elementos asiáticos, como os levantinos e os judeus. Como resultado o americano nativo nórdico tem sido comprimido, com uma espantosa rapidez, por esses prolíficos e infestados alienígenas e, e depois de duas curtas gerações, está quase extinto em muitas de nossas áreas urbanas(...) Quando a ascendência dos pais é muito diversa como no cruzamento entre brancos, negros e ameríndios, o descendente é um mestiço, um cão vira-lata – um caos sobre duas pernas, tão consumido por sua ascendência dissonante que não passa de um imprestável” (Lethrop Stoddard, The Rising Tide of the Color Against the White World Supremacy – a onda crescente da cor contra a supremacia do mundo branco, Charles Scribner’s Sons, 1926, p. 165-167, apud Edwin Black, ob. cit. p. 80-81).

Para eles, a miscigenação significava o suicídio da raça.
O próprio Edwin Black admite que tais idéias não grassavam em meios incultos e entre pessoas grosseiras, muito pelo contrário: “ As doutrinas da pureza e da supremacia raciais defendidas pelos eugenistas pioneiros não eram resultado de divagações desconexas de homens ignorantes e primitivos. Eram os ideais muito bem elaborados de algumas das figuras públicas mais cultas e respeitadas da nação, cada uma delas um especialista em seu campo científico ou cultural, cada uma delas reverenciada pela sua erudição”. (Edwin Black, ob. cit., p. 82. O negrito é meu).

Portanto, era a elite americana que defendia e queria a implantação das idéias eugenistas.

A eugenia, desde cedo, se ocupou de estudar métodos para eliminar o “germe plasma defeituoso”. Este termo foi criado pelo Zoólogo Charles Davenport, que é considerado figura da maior importância no movimento eugenista e o maior especialista em eugenia dos EUA. Davenport era um racista virulento, filho de um pastor protestante muito rigoroso.

Davenport queria compor uma super raça de nórdicos: “Podemos construir uma muralha bem alta em torno deste país (...) para manter de fora essas raças inferiores, ou uma frágil represa...deixando que os nossos descendentes abandonem o país para os negros, os marrons e os amarelos, e busquem um asilo na Nova Zelândia” (Carta de Charles B. Davenport para Madison Grant, 3 de maio de 1920, APS, B-D27, Grant, Madison, n. 3, apud Edwin Black, ob. cit., p.p. 92-93).

Segundo Black, Davenport defendia : “será melhor exportar a raça negra imediatamente” (Edwin Black, ob. cit. p. 93).

Em 1903, não tendo conseguido de início apoio junto à comunidade científica americana, Davenport e os líderes do movimento eugenista americano foram buscar apoio junto a associações de pecuaristas e de criadores de animais.

Davenport propunha abertamente a aplicação da Higiene Racial, ou seja, eliminar o inadequado e o incapaz, por meio da eugenia negativa.

Em 1904, Davenport consegue o importante apoio do Carnegie Institute para a criação do Escritório de Registro EugenistaERO (Eugenics Register Office) em Cold Spring Harbor, cujo objetivo era traçar a genealogia e identidade racial dos americanos. Curiosamente, Cold Spring Harbor, hoje, é o quartel general da pesquisa do Genôma Humano. Tal centro de pesquisa, aliás, foi fundado entre as décadas de 40 e 50 por um ardente eugenista.

O chefe do escritório era Charles Laughlin, um charlatão que foi dos principais expoentes da eugenia americana. O escritório foi fundado com auxílio de doações da viúva Harriman (cujo marido foi um magnata do petróleo americano) e foi financiado ao longo de seus muitos anos de existência pela fundação Rockfeller e pelo Carnegie Institute.

A meta de Davenport e Laughlin era, com o registro eugenista, o mapeamento da população americana como castas genéticas, e a posterior eliminação dos deficientes nos EUA: “Foram identificados dez grupos de “incapazes sociais”, estabelecidos como alvo para “eliminação”. Primeiro, os deficientes mentais; segundo, a classe indigente; terceiro, a classe dos alcoólatras; quarto, os criminosos de todas as espécies, incluindo os pequenos criminosos e os encarcerados por não pagamento de multas; quinto, os epilépticos; sexto, os insanos; sétimo, a classe constitucionalmente frágil; oitavo, os predispostos à doenças específicas; nono, os fisicamente deformados; décimo, os com defeitos em órgãos dos sentidos, ou seja, surdos, cegos e mudos.” (Edwin Black, ob. cit., p.121. O negrito é meu).

Obviamente, todo o embasamento para a aplicação da eugenia nos EUA dependia de dados estatísticos levantados por instituições como o ERO. Contudo, tais estatísticas sempre foram pouco relevantes do ponto de vista clínico ou mesmo matemático.

Laughlin perseguiu ativamente a legalização de leis eugenistas para esterilização, encarceramento e aumento de restrições de imigração para os indesejáveis genéticos.

Laughlin, além das propostas citadas para eliminação do “incapaz”, chegou ao absurdo de recomendar que poligamia e a reprodução sistemática fossem adotada para multiplicar as linhagens desejáveis (Edwin Black, ob. cit., p. 125).

Não se pense que houve grande resistência da classe política americana ao movimento eugenista. Pelo contrário, muitos políticos aderiram a causa e foram responsáveis pela legalização de várias medidas eugenistas em vários estados americanos.

O próprio presidente Theodore Roosevelt escreveu uma carta de apoio a Davenport: “Eu concordo com você... a sociedade não deve permitir que degenerados reproduzam sua espécie... Algum dia nós compreenderemos que o primeiro dever, o inescapável dever do bom cidadão, da espécie certa, é deixar o seu sangue atrás de si no mundo; e nós não devemos permitir a perpetuação de cidadãos do tipo errado” (Edwin Black, ob. cit. p, 181. O negrito é meu). Uma afirmação bastante nazista proferida por um dos presidentes mais populares dos democráticos EUA!


Próximo passo: Esterilização do Incapaz.

Os primeiros passos práticos da eugenia nos EUA, após os levantamentos estatísticos do ERO, foram no sentido de promover a legislação para esterilização do incapaz.

Cronologia da legalização da aplicação da Eugenia nos EUA:

_ 1890. O Dr. F. Hoyt Pilcher do Kansas Home for the Feebleminded (Lar para deficientes mentais do Kansas) esterilizou ilegalmente a 58 crianças e teve o apoio do conselho diretor da instituição.

_ 1899. O Dr. Harry Clay Sharp, médico do Indiana Reformatory fazia castrações ilegais para combater o hábito do auto-erotismo, defendia e praticava a esterilização dos criminosos. Dizia Sharp: “Fazemos escolhas dos melhores carneiros para cruzar nos nossos rebanhos... e mantemos os melhores cachorros... o quão cuidadosos não deveríamos ser, quando se trata de procriar crianças!” (Dr. Harry C. Sharp, The Severing of the Vasa Deferentia and its Relation to the Neuropsychopathic Constitution, New York Medical Journal, 8 de março de 1902, p. 413, apud Edwin Black, ob. cit., p.p. 128-129).

_1906. O deputado Horace Reed, de Indiana, introduz a lei de Sharp: “Ato de Prevenção da Imbecilidade”. Tal lei ordenava que se os curadores ou cirurgiões que cuidavam de crianças deficientes mentais determinassem que a “procriação não era aconselhável”, o cirurgião poderia então “realizar esta operação para prevenção da procriação...”
Indiana foi, de fato, o primeiro estado a ter lei de esterilização compulsória para pacientes mentalmente deficientes, moradores de asilos de pobres e prisioneiros (Edwin Black, ob. cit., p. 133).

_1909. Leis de esterilização eugenistas em Washington contra criminosos contumazes e estupradores; em Connecticut, aplicação de vasectomia e de ovariectomia em deficientes e doentes mentais; na Califórnia, que permitia a castração e a esterilização de prisioneiros e de deficientes mentais. Em Nevada, aplicada a criminosos contumazes; em Iowa, aplicada em criminosos, idiotas, deficientes mentais, imbecis, ébrios, drogados, epilépticos, além dos pervertidos morais e sexuais.

_ 1911. Legislação de Nova Jersey contra deficientes mentais, epilépticos e outros deficientes. Esta lei foi assinada pelo então governador de Nova Jersey, Woodrow Wilson, futuro presidente americano e fundador da Liga das Nações.

E assim, vários estados americanos criaram e aprovaram leis de esterilização eugenistas, até que, em 1924, a suprema corte americana abre precedentes para a esterilização coercitiva por uma decisão do Juiz Oliver Wendell Holmes. A partir de então a esterilização legal do incapaz passa a ser aceita quase que como uma lei federal, lembrando bastante o que aconteceu no famoso caso Roe x Wade que implantou o aborto sob demanda nos Estados Unidos, a partir da década de 70.

O impacto de tal precedente foi enorme. Entre 1907 e 1940, 35.837 pessoas foram legalmente submetidas à esterilização forçada nos EUA. Quase 30.000 após a decisão do Juiz Holmes. E as esterilizações forçadas aconteceram durante muitos anos mesmo após a queda da popularidade da Eugenia. No total foram cerca de 70.000 pessoas esterilizadas coercivamente:

“Dezenas de milhares de americanos continuaram a ser coercivamente esterilizados, internados e legalmente impedidos de casar, com base em leis raciais e eugenistas. Durante a década de 40, cerca de 15.000 foram esterilizados coercivamente, quase um terço deles na Califórnia. Na década de 50, foram cerca de 10.000. Nos anos 60, milhares ainda. No cômputo geral, cerca de 70.000 americanos foram eugenicamente esterilizados nas primeiras cinco décadas do século XX; a maioria era de mulheres. A Califórnia manteve continuamente um índice bem maior que os outros estados” (Edwin Black, obra cit., p.630. O negrito é meu).

As leis de esterilização eugenistas foram adotadas por quase metade dos estados americanos, sendo a liberal Califórnia a que fez mais esterilizações forçadas.

De uma maneira geral, a população americana, e em especial os católicos, não aceitava a aplicação de leis eugenistas, pois estas eram consideradas, e com justiça, como um ato contra Deus,(Edwin Black, ob. cit., p. 137). Por causa disso, desde cedo, os eugenistas americanos começaram a promover conferências internacionais como forma de divulgar a experiência americana e também para impressionar a comunidade científica e os políticos americanos (Edwin Black, ob. cit., p. 141).

Em julho de 1912 aconteceu a primeira Conferência Eugenista Internacional, em Londres, que foi organizada conjuntamente pela Alemanha, Inglaterra e pelos EUA. O presidente foi o major Leonard Darwin, filho de Charles Darwin, e dela participaram Winston Churchill, Alfred Ploetz, pai da “higiene racial” - eugenia na Alemanha -, Charles Davenport e Alexander Graham Bell.

Com o aumento do prestígio, os eugenistas passaram a ocupar os departamentos de biologia, zoologia, ciência social, psicologia e antropologia das instituições de ensino americanas. Houve inclusive cursos exclusivos de eugenia. A eugenia conseguiu uma forte penetração nos ambientes acadêmicos de Harvard, Princeton, Yale, Northwestern University, Berkeley e outras grandes instituições americanas.

O ensino da eugenia acabou por atingir o curso secundário nos EUA, onde se fazia propaganda de idéias racistas dignas do Nazismo alemão (Edwin Black, ob. cit., p.p. 146-147).


Testes de Inteligência

Um fato quase que universalmente desconhecido é o de que os testes de inteligência, os populares testes de Q.I., tiveram sua gênese pelas vias tortuosas da eugenia.

O primeiro teste de inteligência foi criado por Henry Goddard, um eugenista, que escreveu “The Kalikak Family: A Study in the Hereditariety of Feeblemindedness”. Neste livro, Goddard desonestamente adulterou as fotografias que foram publicadas em seu livro para fazer a família dos Kalikak parecer menos normal (Edwin Black, ob. cit., p. 149).

Este mesmo pseudo-cientista desonesto foi o responsável pela popularização do termo “moron” nos EUA para descrever os débeis mentais.

Em 1913 ele aplicou um teste de inteligência a 148 imigrantes judeus, húngaros, italianos e russos, por motivos puramente eugenistas e racistas. O resultado do teste considerava 40% deles como retardados mentais. Goddard achou que o teste não condizia com a realidade, pois pensava que o número de retardados mentais deveria ser maior.

Naquela década também foram aplicados testes de inteligência aos negros, o que acabou por incentivar mais ainda o racismo nos EUA. Goddard concluiu de seus testes: “Diante das evidências, não parece possível elevar o grau escolar do negro...” (Edwin Black, ob. cit., p.153).

Quando os EUA entraram na primeira guerra mundial, em 1917, o governo americano incumbiu o presidente da Associação Americana de Psicologia de aplicar um teste de aptidão ao seu efetivo. Ele convocou Goddard, Lewis Terman, um outro eugenista - e outros especialistas para desenvolver tal teste.

Como exemplo do resultado do esforço, citamos algumas perguntas do teste:

Questão: “Quinhentos é jogado com...”
Respostas possíveis: raquetes, pinos, cartas, dados.
Resposta correta: cartas.

Questão: “Becky Sharp aparece em...”
Respostas possíveis: Vanity Fair, Romola, The Christian Carol, Henry IV.
Resposta correta: Vanity Fair.

Questão: “Velvet Joe aparece em anúncios para...”
Respostas: pó dental, grãos e farináceos, tabaco, sabonete.
Resposta correta: tabaco.

Questão: “Não coçou ainda...” é uma frase usada na publicidade de...
Respostas: bebida, revólver, farinha, limpador.
Resposta correta: limpador.

O resultado deste teste esdrúxulo: 47% dos brancos e 89% dos negros do exército americano foram considerados “morons”, com capacidade inferior a de um menino de 13 anos.

Uma outra estatística importante, resultante deste teste, foi a quantidade de brancos de descendência nórdica, obviamente mais cosmopolitas que os outros, reprovada nos testes: holandeses, 0,1%; alemães, 2%; Ingleses, 3%; suecos, 0,5%. Tais resultados foram utilizados pelo psicólogo Carl Brigham, de Princeton, um ativista eugenista, para fazer uma projeção global, aplicada a todo o mundo. Essa foi a evidência eugenista da supremacia nórdica, segundo a sua definição, e, virtualmente, da inferioridade racial de todas as demais raças.

Brigham escreveu um livro onde expôs suas teses racistas intitulado “A Study of American Intelligence”, publicado pela Princeton Press em 1922. Ele fundamentou seu estudo “científico” em dois livros notoriamente racistas: “The Passing of the Great Race” (O fim da grande raça) de Madison Grant, e Races of Europe, de William Ripley.

E não se pense que Brigham foi desprezado ou ridicularizado por suas idéias racistas. Muito pelo contrário, seu trabalho foi examinado por uma equipe de eminentes cientistas do gabinete do Diretor Nacional de Saúde e das universidades de Harvard, Princeton e Syracuse.

De acordo com Brigham, neste seu livro, a inteligência do negro estava predestinada por herança hereditária, e não podia ser melhorada pelo “acréscimo maior de mistura de sangue branco”. E disse ainda: “Os resultados que obtivemos, interpretando a informação do Exército... sustenta a tese do Sr. Madison Grant sobre a superioridade do grupo nórdico...”

Rapidamente, este seu livro “A Study of American Intelligence” se tornou padrão cientifico nos EUA. Brigham adaptou o teste do exército para ser usado na seleção de candidatos às universidades americanas e deu origem ao SAT (Scholastic Aptitude Test, ou Teste de Aptidão Escolástica) que foi aplicado a praticamente todas universidades americanas.

Tais testes foram visto desde cedo por alguns intelectuais americanos como um meio de exclusão social.

Em tempo, o exército americano jamais agiu de acordo com os resultados dos testes, se eximindo de classificar seu efetivo através da informação que ele apresentara.


Conclusão

Assim, vimos como a pseudo ciência da Eugenia nasceu na Inglaterra e se desenvolveu nos Estados Unidos, formando, dentro do berço liberal da democracia americana, as idéias e as práticas eugênicas que depois assustariam ao mundo, praticados pela Alemanha Nazista. Auschwitz tem sua gênese bem mais distante e distinta da Berlim da década de 30, mas pode ser facilmente identificada em Cold Spring Harbor, EUA, no início do século XX.


    Para citar este texto:
"Eugenia: o pesadelo genético do Século XX. Parte I: o início"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/ciencia/eugenia1/
Online, 28/03/2024 às 23:00:01h