Igreja e Religião

Memorando Demos: o texto anônimo do falecido Cardeal Pell sobre o Pontificado de Francisco e o próximo Conclave
Cardeal Pell

O memorando a seguir circulou anonimamente entre os Cardeais na Quaresma de 2022 e foi publicado na ocasião pelo vaticanista Sandro Magister. Agora, com a morte do Cardeal Pell, Magister revela que era o próprio Cardeal o autor do texto e que fora publicado por insistência dele. Pela clareza de análise e ortodoxia de suas posições, o texto faz crescer a importância do papel do Cardeal Pell - aliás grande defensor da Missa tradicional - na terrível batalha que se desenvolve no Vaticano nos últimos meses e aumenta as suspeitas sobre sua morte repentina em uma operação de pequena gravidade... Sobretudo quando se sabe que ele dedicou seu último ano a correr mundo preparando o conclave.

Blog Settimo Cielo de Sandro Magister

Tradução Montfort

13.01.2023

 

O VATICANO HOJE

Comentaristas de todas as escolas, embora por razões diferentes, com a possível exceção do Padre Spadaro SJ, concordam que este Pontificado é um desastre em muitos ou em mais aspectos, uma catástrofe.

 

1. O sucessor de São Pedro é a rocha sobre a qual se edifica a Igreja, grande fonte e causa de unidade mundial. Historicamente, a partir de Santo Irineu, o Papa e a Igreja de Roma têm um papel único na preservação da Tradição Apostólica, a regra da fé, garantindo que as Igrejas continuem a ensinar o que Cristo e os Apóstolos ensinaram. Anteriormente o lema era: “Roma locuta. Causa finita est” [Roma falou, a causa acabou]. Hoje é: “Roma loquitur. Confusio augetur” [Roma fala, cresce a confusão].

(A) O sínodo alemão fala da homossexualidade, das mulheres sacerdotes, da comunhão para os divorciados. E o Papado está em silêncio.

(B) O cardeal Hollerich rejeita o ensinamento cristão sobre sexualidade. E o Papado está em silêncio. Isso é duplamente significativo porque o Cardeal é explicitamente herético; não usa palavras em código ou insinuações. Se o Cardeal continuar sem a correção romana, isso representará outra quebra mais profunda na disciplina, com pouco (ou nenhum?) precedente na história. A Congregação para a Doutrina da Fé deve agir e falar.

(C) O silêncio é ainda mais evidente quando se choca com a perseguição ativa aos tradicionalistas e aos mosteiros contemplativos.

 

2. A centralidade de Cristo no ensino enfraquece; Cristo é removido do centro. Às vezes, Roma parece até confusa sobre a importância de um monoteísmo estrito, aludindo a um certo conceito mais amplo de divindade; não exatamente um panteísmo, mas uma espécie de variante do panteísmo hindu.

(A) A Pachamama é idolatrada, embora talvez não tenha sido planejado assim inicialmente.

(B) Monjas contemplativas são perseguidas e tentativas são feitas para mudar os ensinamentos dos carismáticos.

(C) O legado cristocêntrico de São João Paulo II na fé e na moral é objeto de ataques sistemáticos. Muitos docentes do Instituto romano para a Família foram afastados; a maioria dos alunos foi embora. A Academia pela Vida está seriamente danificada, por exemplo, alguns de seus membros recentemente defenderam o suicídio assistido. As academias pontifícias têm membros e oradores convidados que apoiam o aborto.

 

3. O desrespeito à lei no Vaticano corre o risco de se tornar um escândalo internacional. Esses problemas foram concretizados no julgamento em andamento no Vaticano de dez acusados ​​de má prática financeira, mas o problema é mais antigo e mais amplo.

(A) O Papa mudou a lei quatro vezes durante o julgamento para ajudar a acusação.

(B) O Cardeal Becciu não foi tratado com justiça porque foi destituído de seu cargo e privado de sua dignidade cardinalícia sem nenhuma prova. Ele não obteve o devido processo. Todos têm direito a um julgamento justo.

(C) Como Chefe de Estado do Vaticano e fonte de toda a autoridade legal, o Papa tem usado esse poder para interferir nos procedimentos judiciais.

(D) O Papa às vezes, se não frequentemente, governa com decretos pontifícios, motu proprio, que eliminam o direito de apelação das pessoas afetadas.

(E) Muitos membros do pessoal, muitas vezes padres, foram demitidos subitamente da Cúria Vaticana, muitas vezes sem motivo válido.

(F) Escutas telefônicas são praticadas regularmente. Não tenho certeza de quantas vezes isso seja autorizado.

(G) No julgamento inglês contra Torzi, o juiz criticou duramente os promotores do Vaticano. Os quais são incompetentes e/ou foram condicionados, impedidos de fornecer o quadro completo.

(H) A irrupção da Gendarmaria Vaticana sob o comando do Dr. Giani, em 2017, no escritório do auditor Libero Milone, em território italiano, foi provavelmente ilegal e, de qualquer forma, intimidadora e violenta. É possível que as provas contra Milone tenham sido forjadas.

 

4. (A) A situação financeira do Vaticano é grave. Ao longo da última década (pelo menos) quase sempre houve déficits financeiros. Antes da COVID, esses défices rondavam os 20 milhões de euros por ano. Nos últimos três anos foram por volta de 30-35 milhões de euros por ano. Os problemas datam de antes do Papa Francisco e do Papa Bento XVI.

(B) O Vaticano enfrenta um grande déficit do fundo de pensões. Por volta de 2014, os especialistas da COSEA estimavam que em 2030 o déficit estaria em cerca de 800 milhões de euros. Isso foi antes do COVID.

(C) Estima-se que o Vaticano tenha perdido 217 milhões de euros no edifício da Sloane Avenue, em Londres. Na década de 1980, o Vaticano foi forçado a desembolsar 230 milhões de dólares após o escândalo do Banco Ambrosiano. Devido à ineficiência e corrupção, o Vaticano perdeu pelo menos mais 100 milhões de euros nos últimos 25-30 anos, e provavelmente mais do que isso, talvez 150-200 milhões..

(D) Apesar da recente decisão do Santo Padre, os processos de investimento não foram centralizados (como recomendado pela COSEA em 2014 e tentado pela Secretaria de Economia em 2015-16) e permanecem sem assessoria especializada. Por décadas, o Vaticano teve que lidar com financistas de má reputação, evitados por todos os banqueiros respeitados na Itália.

(E) O rendimento das 5261 propriedades do Vaticano permanece incrivelmente baixo. Em 2019, a receita média (antes do COVID) era de quase US$ 4.500 por ano. Em 2020 eram 2.900 euros por imóvel.

(F) O papel mutável do Papa Francisco nas reformas financeiras (progresso incompleto, mas substancial na redução da criminalidade, muito menos bem-sucedido, exceto no IOR, em termos de lucratividade) é um mistério e um enigma.

Inicialmente, o Santo Padre apoiou fortemente as reformas. Depois, impediu a centralização dos investimentos, se opôs às reformas e à maior parte das tentativas de desmascarar a corrupção e apoiou o (então) Arcebispo Becciu, no centro do estabishment financeiro do Vaticano. Depois, em 2020, o Papa se voltou contra Becciu e, por fim, dez pessoas foram processadas e acusadas. Ao longo dos anos, poucos processos foram iniciados a partir de relatórios de infração da AIF.

Os auditores de Price Waterhouse e Cooper foram afastados, e o auditor geral Libero Milone foi forçado a renunciar em 2017 devido a acusações inventadas. Estavam chegando muito perto da corrupção na Secretaria de Estado.

 

5. A influência política do Papa Francisco e do Vaticano é insignificante. Intelectualmente, os escritos papais mostram um declínio em relação aos níveis de São João Paulo II e do Papa Bento. Decisões e políticas costumam ser “politicamente corretas”, mas houve grandes falhas na defesa dos direitos humanos na Venezuela, Hong Kong, China continental e agora na invasão russa.

Não houve nenhum apoio público aos fiéis católicos na China, que foram perseguidos intermitentemente por sua lealdade ao Papado por mais de 70 anos. Nenhum apoio público do Vaticano à comunidade católica na Ucrânia, em particular aos greco-católicos.

Esses temas deveriam ser revisitados pelo próximo Papa. O prestígio político do Vaticano está agora em um nível baixo.

 

6. A outro nível, menor, deveria ser regularizada a situação dos tradicionalistas tridentinos (católicos).

Em um nível ainda mais modesto, a celebração de missas "individuais" e com pequenos grupos pela manhã na Basílica de São Pedro deveria ser novamente permitida. No momento, esta grande basílica no começo da manhã é como um deserto.

A crise do COVID encobriu o declínio acentuado no número de peregrinos que compareceram às audiências papais e às missas.

O Santo Padre tem escasso apoio entre os seminaristas e jovens padres e há um descontentamento generalizado na Cúria Vaticana.

 

O próximo Conclave

1. O Colégio de Cardeais foi enfraquecido por nomeações excêntricas e nunca mais foi reunido desde a rejeição das posições do Cardeal Kasper no Consistório de 2014. Muitos Cardeais são desconhecidos uns dos outros, acrescentando uma nova dimensão de imprevisibilidade ao próximo conclave.

 

2. Desde o Vaticano II, as autoridades católicas muitas vezes subestimaram o poder hostil da secularização, do mundo, da carne e do diabo, especialmente no mundo ocidental, e superestimaram a influência e a força da Igreja Católica.

Estamos mais fracos do que há 50 anos e muitos fatores estão fora do nosso controle, pelo menos no curto prazo, como a diminuição do número de fiéis, a frequência das missas, o desaparecimento ou extinção de muitas ordens religiosas.

 

3. O Papa não precisa ser o melhor evangelizador do mundo, nem uma força política. O sucessor de Pedro, como chefe do Colégio dos Bispos, que são também os sucessores dos Apóstolos, tem um papel fundamental para a unidade e a doutrina. O novo Papa deve entender que o segredo da vitalidade cristã e católica vem da fidelidade aos ensinamentos de Cristo e às práticas católicas. Não vem da adaptação ao mundo ou do dinheiro.

 

4. As primeiras tarefas do novo Papa serão a restauração da normalidade, a restauração da clareza doutrinária na fé e na moral, a restauração do devido respeito pelo direito e a garantia de que o primeiro critério para a nomeação dos bispos seja a aceitação da tradição apostólica. A competência e a cultura teológica são uma vantagem, não um obstáculo para todos os bispos e sobretudo para os arcebispos.

Esses são fundamentos necessários para viver e pregar o Evangelho.

 

5. Se as reuniões sinodais continuarem em todo o mundo, elas consumirão muito tempo e dinheiro, provavelmente desviando energia da evangelização e do serviço, em vez de aprofundar essas atividades essenciais.

Se os sínodos nacionais ou continentais receberem autoridade doutrinária, teremos um novo perigo para a unidade da Igreja mundial, em que, por exemplo, a Igreja alemã já tem agora posições doutrinárias não compartilhadas por outras Igrejas e não compatíveis com a Tradição Apostólica.

A menos que haja uma correção romana de tais heresias, a Igreja seria reduzida a uma vaga federação de Igrejas locais, com diferentes visões, provavelmente mais próximas de um modelo anglicano ou protestante do que de um modelo ortodoxo.

Uma prioridade imediata para o próximo Papa deve ser eliminar e prevenir um desenvolvimento tão perigoso, exigindo unidade no essencial e não permitindo diferenças doutrinárias inaceitáveis. A moralidade da atividade homossexual será um desses pontos críticos.

 

6. Enquanto o jovem clero e seminaristas são quase inteiramente ortodoxos, às vezes bastante conservadores, o novo Papa precisará estar ciente das mudanças substanciais na liderança da Igreja desde 2013, talvez especialmente na América do Sul e Central. Há um novo salto no avanço dos protestantes "liberais" na Igreja Católica.

É improvável que ocorra um cisma na esquerda, onde eles habitualmente não fazem drama em questões doutrinárias. É mais provável que um cisma venha da direita e é sempre possível quando as tensões litúrgicas são inflamadas e não atenuadas.

Unidade nas coisas essenciais. Diversidade em não essenciais. Caridade em tudo.

 

7. Apesar de seu perigoso declínio no Ocidente e de sua inerente fragilidade e instabilidade em muitos lugares, deve-se considerar seriamente a viabilidade de uma visita apostólica à Ordem dos Jesuítas. Eles estão em uma situação de declínio numérico catastrófico, de 36.000 membros durante o Concílio para menos de 16.000 em 2017 (provavelmente 20-25% deles com mais de 75 anos). Em alguns lugares, também há um declínio moral catastrófico.

A ordem é altamente centralizada, suscetível à reforma ou ruína vinda do alto. O carisma e a contribuição dos Jesuítas foram e são tão importantes para a Igreja que não se deve permitir que desapareçam da História sem serem incomodados ou sejam simplesmente reduzidos a uma comunidade afro-asiática.

 

8. A desastrosa queda do número de católicos e a expansão dos protestantes na América do Sul devem ser enfrentadas. Isso foi pouquíssimo mencionado no Sínodo da Amazônia.

 

9. Obviamente, muito trabalho precisa ser feito nas reformas financeiras do Vaticano, mas esse não deveria ser o critério mais importante na escolha do próximo Papa.

O Vaticano não tem dívidas substanciais, mas os déficits anuais contínuos acabarão levando à falência. Obviamente, medidas serão tomadas para remediar isso, para separar o Vaticano de cúmplices criminosos e equilibrar receitas e despesas. O Vaticano precisará demonstrar competência e integridade para atrair doações consistentes que ajudem a resolver esse problema.

Apesar do aprimoramento dos procedimentos e de maior transparência, as contínuas dificuldades financeiras representam um grande desafio, mas são muito menos importantes do que os perigos espirituais e doutrinários que a Igreja deve enfrentar, especialmente no Primeiro Mundo.

Demos

Quaresma de 2022


    Para citar este texto:
"Memorando Demos: o texto anônimo do falecido Cardeal Pell sobre o Pontificado de Francisco e o próximo Conclave"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/imprensa/igreja/cardeal-pell-sobre-francisco/
Online, 26/04/2024 às 17:20:57h