Religião-Filosofia-História



1 - O labirinto no romance de Eco

"Até o leitor ingênuo percebeu que se encontrava diante de uma história de labirintos, e não de labirintos espaciais"(P.47). A frase é de Eco e revela a verdadeira estrutura de O Nome da Rosa. Uma história de labirintos. Sim, porque a história de O Nome de a Rosa "ramifica-se em muitas outras histórias, todas elas histórias de outras conjeturas, todas girando em torno da estrutura da conjetura enquanto tal. Um modelo abstrato de conjetura é o labirinto"(P46).

a - Conceito de labirinto

Em termos simples, que é um labirinto? É um jogo, em forma de figura ou de edifício, no qual se procura um caminho verdadeiro oculto entre mil caminhos claramente sugeridos, mas falsos. O labirinto esconde a verdade e oferece mentiras. Quanto mais habilmente ocultar a solução verdadeira, quanto mais ele for sedutor e enganador, mais ele será interessante. Pois o homem se encanta com a mentira, e principalmente com o sofisma enganador.

b - O labirinto de Creta

Quando se fala em labirinto, logo vem a mente aquele que o rei Minos mandou construir em Creta. Conforme a lenda, finda a construção, o rei prendeu nele o seu arquiteto Dédalo com seu filho Ícaro, para que, eles morrendo, não fosse revelado a ninguém o segredo da construção. Dédalo fabricou então, com cera e penas, asas para si e para seu filho, a fim de fugir voando, já que o labirinto de Creta era aberto. Antes da fuga, porém, ele preveniu Ícaro de que não se elevasse demais, pois o calor do sol poderia derreter a cera de suas asas. Afoitamente, o jovem Ícaro não seguiu os conselhos paternos e caiu no mar, onde morreu.

Por ordem de Minos, Dédalo havia prendido o Minotauro no labirinto. Este era um monstro de corpo humano e cabeça de touro, que se alimentava de carne humana. Periodicamente os atenienses deviam mandar para Creta sete rapazes e sete moças, para serem devorados pelo Minotauro.

Em certo ano, Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, foi designado entre os jovens que deviam ser devorados. Antes de partir para Creta, ele consultou o oráculo de Delfos que lhe anunciou que ele só sairia vivo do labirinto, caso se deixasse guiar pelo amor.

Chagando a Creta, Teseu recebeu a ajuda de Ariadne, uma das filhas de Minos, a qual lhe deu uma linha e uma espada. Assim, Teseu conseguiu não só matar o Minotauro, como também encontrar o caminho para sair do labirinto. Ao fugir de Creta, Teseu levou consigo Ariadne, que ele, depois, abandonou numa ilha.

c - Gnose e labirinto

Uma das interpretações dessa lenda é fornecida pela Gnose. Segundo ela, o labirinto simboliza o mundo material, e o rei Minos representa o demiurgo, criador do mundo, deus do mal, que aprisionou as partículas da Divindade na matéria tenebrosa. Toda a Gnose antiga, aliás, identificava o mundo com um labirinto, no qual o homem estava exilado e aprisionado. No labirinto do mundo material, o homem procurava uma saída, mas dificilmente a encontrava. Para sair de um labirinto, é preciso conhecer o caminho. Para sair do mundo, é preciso ter o conhecimento (a Gnosis) salvadora (Cfr. J.L.Borges, A casa de Astérion, assim como Gustave R.Hocke, Maneirismo: o Mundo como Labirinto, Perspectiva, São Paulo, 1979,pp 161 a 179).

As lendas de Teseu e de Dédalo sugerem duas maneiras para o homem libertar-se do labirinto do mundo:

1- A solução de Dédalo: o vôo místico.

Para sair do labirinto do mundo seria preciso voar, isto é, vencer o peso da matéria, anulando a lei da gravidade. Isto se faria pelo êxtase místico, no qual a alma é arrebatada pela divindade e voa para Deus, libertando-se do peso da matéria. Nesse vôo, dever-se-ia apenas ter um cuidado: não se aproximar demais do sol, isto é, da Divindade. caso essa aproximação fosse feita de modo mais rápido do que o devido, a alma recairia no mundo material. Ela se reencarnaria. Tal é o sentido da queda de Ícaro.

2- A solução de Teseu: o amor à Divindade pelo repúdio da mulher e da reprodução.

O segundo meio para escapar do labirinto do mundo seria o escolhido por Teseu. Uma interpretação superficial do oráculo e da lenda levaria a pensar que o amor que salvou Teseu do labirinto foi o amor a ou de Ariadne. Na realidade, a saída encontrada por Teseu consistiu em matar o Minotauro, isto é, o homem com cabeça de touro, ou seja, o homem dominado pela idéia de reprodução, dominado pelo instinto sexual animal, simbolizado pelo touro. Os sete casais sacrificados ao Minotauro simbolizariam os jovens encaminhados ao casamento e à reprodução. Assim, para sair do labirinto do mundo material, seria preciso matar o instinto sexual. Por isso, Teseu matou o Minotauro e abandonou Ariadne. Seria por meio da superação do instinto sexual, pela renúncia ao casamento e à reprodução, que o homem se libertaria do mundo material, seu cárcere labiríntico.

Como vimos, a Gnose ensina que é por meio da perpetuação da espécie que o demiurgo mantém as partículas divinas presas na matéria. Essa é, por exemplo, a interpretação fornecida pela Gnose cátara e pela Gnose maniquéia (Cfr. Arno Borst, Les cathares, Payot, Paris, 1978, p.155-157; Cfr. Henri-Charles Puech, Sur le manichéisme et autres essais, Flammarion, Paris,1979,p.66-67 e 413).

Somente pela renúncia ao ato sexual e à reprodução é que o homem conseguiria romper a cadeia de reencarnações que o acorrentam à matéria.

 

2 - Os labirintos e os livros

a - Todo livro é um labirinto ?

Todo livro é susceptível de duas leituras, pelo menos. Uma, a das palavras escritas; a segunda, a do que está nas entrelinhas. Além disso, como as palavras podem ser unívocas, análogas e equívocas, é sempre possível dar várias interpretações a um texto.

Isto não significa que todo livro pretenda propositadamente esconder seu sentido verdadeiro. Porém, embora nem todo livro queira enganar seu leitor, ele pode ser tido - pelo menos em certo sentido – como um labirinto, na medida em que seu sentido real seja mais ou menos difícil de ser alcançado, exigindo uma investigação mais profunda, para ser entendido objetivamente.

Além disso, na literatura atual, desenvolveu-se o que Eco chama de obra-aberta, isto é, uma obra que tem a "possibilidade de ser interpretada em mil modos diversos sem que sua irreprodutível singularidade seja alterada." (U. Eco, Opera Aperta, Bompiani, Milano,1988,p.34. A tradução é nossa). O que não implica, como vimos, que não haja uma só mensagem ou leitura desejada pelo autor, que a oculta entre as mil leituras possíveis de sua obra. (Cfr. U. Eco, Opera Aperta, 43). Livros assim são propriamente labirínticos. Há autores, porém, que escrevem para que só alguns os entendam e propositalmente utilizam uma linguagem equívoca. É o que afirma Borges. É o que fez Eco em O Nome da Rosa. Pode se dizer que um livro assim é um labirinto "insondável como a verdade que guarda, enganador como a mentira"(Cfr. R,55). Esses livros, ocultando a única saída, a única interpretação verdadeira, oferecem mil falsas saídas sofísticas.

Estas considerações podem ser aplicadas ao próprio livro escrito por Eco. Ele mesmo afirma que sua obra tem a estrutura de um labirinto, pelos seus múltiplos sentidos. Ou sem nenhum sentido.

"E é duro para este velho monge, nos umbrais da morte, não saber se a carta que escreveu contém algum sentido oculto, e se há mais de um, e muitos, ou nenhum".(Cfr. R,561). E vimos também que nas Postille, Eco assevera que até o leitor ingênuo percebeu que O Nome da Rosa é uma "história de labirintos" (P.47).

b - E a Bíblia é um labirinto ?

Evidentemente, a Sagrada Escritura não é um livro labirinto, no sentido de uma obra que propositalmente quer ocultar seu sentido objetivo mais profundo. Pelo contrário, Deus, na Bíblia, revela a verdade a seu respeito.

Entretanto, se todo livro, por sua dificuldade de interpretação, pode ser tido, em latu sensu, como um labirinto, mais que todos o é a Bíblia. E dos mais complexos. Nela não se pode entrar sem um guia. É a própria Escritura que o declara. Quando o Diácono Felipe foi enviado pelo Espírito Santo ao encontro do eunuco da Rainha de Candace, encontrou-o lendo o Profeta Isaias, e perguntou-lhe: "Entendes, porventura, o que lês?" "E como posso entender, se ninguém me explica?", respondeu o eunuco. (Atos, VIII,30-31).

É necessário um mestre para guiar o leitor na única interpretação verdadeira do livro sagrado, pois, embora susceptível de múltiplos sentidos, o texto bíblico tem uma única verdade.

Disto se aproveitam os gnósticos para afirmar que as Sagradas Letras tem um sentido oculto. Assim como a lâmpada irradia a luz, assim também, sob a matéria da letra, estaria escondida uma verdade secreta.

c- O labirinto do Apocalipse

Entre os livros da Sagrada Escritura o que possui caráter mais marcadamente "labiríntico" é o Apocalipse, único livro profético do Novo Testamento. Curiosamente, o livro mais misterioso da Bíblia, que contém em linguagem profética a História do Futuro, chama-se Livro da Revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Uma Revelação que é muito misteriosa. Em sua estrutura septenária de cartas, trombetas, pragas, taças e selos, o espírito humano facilmente se perde, dificilmente atinando com o sentido próprio que, de fato, só será plenamente conhecido com a realização da profecia.

 

3 - Labirinto e Biblioteca

a - Toda biblioteca é um labirinto

Se todo livro pode ser considerado, latu sensu, como um labirinto, com maior razão deve-se dizer que uma biblioteca é um grande labirinto constituído por um número imenso de labirintos menores. Como encontrar, numa biblioteca, o fio condutor que leva à verdade? Em meio a tantas doutrinas contraditórias, a tantas teorias e a tantas opiniões diversas, onde encontrar a única interpretação objetiva do labirinto do saber?

Numa biblioteca, há livros que dizem a verdade e outros -- tão mais numerosos!... - que a deturpam, ou a combatem, ou a escondem. Uma biblioteca oferece mil sugestões enganadoras, enquanto "oculta" (pela dificuldade da pesquisa, pelo menos) a única verdade. Ninguém pode, pois, entrar sem guia no labirinto de uma biblioteca. Antes de nela entrar, é preciso saber o que nela se vai procurar. E só se conseguirá encontrar o caminho na biblioteca, se aquele que nela entra se deixar conduzir pelo amor da Verdade.

b - A biblioteca-labirinto de O Nome da Rosa

O livro de Eco tem por palco e centro de seu enredo a biblioteca de uma grande abadia medieval.

Para tornar mais patente sua idéia de que todo livro e toda biblioteca são labirintos, Eco fez com que a biblioteca da Abadia estivesse instalada em um edifício em forma de labirinto, onde as salas criavam caminhos confusos e onde, no local mais recôndito, alguém escondera um livro misterioso: o segundo livro da Poética de Aristóteles, que supostamente tratava da comédia e do riso.

c - A biblioteca e o mundo

Mais ainda. O labirinto da biblioteca da Abadia fora feito conforme a imagem do mundo conhecido pelos medievais. Cada sala sendo designada por uma letra, as letras de um conjunto de salas formavam o patronímico de um país ou de uma região. Por exemplo, as salas designadas com as letras A, N, G, L, I, reuniam os autores ingleses.

Tanto quanto o mundo, a biblioteca era um labirinto, cheio de segredos e caminhos falsos, onde era quase impossível encontrar o único caminho verdadeiro, aquele que conduzia ao labirinto final, onde se guardava o livro labiríntico que não deveria ser conhecido nem lido. Eco diz que a biblioteca fora feita com os mesmos números com que Deus fizera o mundo. Ela era uma imagem do mundo (Cfr.R.35-36). "Pois a arquitetura é dentre todas as artes a que mais ousadamente busca reproduzir em seu ritmo a ordem do universo, que os antigos chamavam Cosmos (...) E seja louvado Nosso Criador que, como diz Santo Agostinho, estabeleceu todas as coisas em número, peso e medida" (R,41). Há ainda outras passagens em que o autor de O Nome da Rosa afirma de modo explícito a correspondência entre a biblioteca da Abadia e o mundo.

"Quer dizer que o traçado da biblioteca reproduz o mapa do mundo?" pergunta Adso. (R.359). E, pouco depois:

"Quando mais tarde, acabamos definitivamente de estudar o mapa, convencemo-nos que a biblioteca era realmente constituída e distribuída segundo a imagem do globo terráqueo". (R.366).

E ainda: "A biblioteca é um labirinto?" "Hunc mundum tipice laberinthus denotat ille", recitou o ancião. Intranti largus, redeunti sed nimis artus". A biblioteca é um grande labirinto, signo do labirinto do mundo. Entras e não sabes se sairás". (R. 187).

E, como todo labirinto, - incluindo a concepção gnóstica do labirinto do mundo- a biblioteca apresenta "o máximo de confusão somado com o máximo de ordem: cálculo sublime"(R. 235).

Constituída de livros-labirintos e construída como um labirinto, a biblioteca da Abadia era duplamente intrincada: sendo "labirinto espiritual, é também labirinto terreno"(R.55), ela "era ao mesmo tempo a Jerusalém celeste e um mundo subterrâneo no limite entre a terra desconhecida e os infernos"(R. 216).

Por meio de uma construção labiríntica, "a biblioteca defende-se por si, insondável como a verdade que abriga, enganadora como a mentira que guarda. Labirinto espiritual é também labirinto terreno. Poderíeis entrar e poderíeis não sair."(R.55). Ela "é testemunha da verdade e do erro"(R.156).

Desse modo, através da imagem da biblioteca, o autor insinua que o labirinto espiritual (o mundo dos livros) e o labirinto terreno (o mundo criado do qual falam os livros), exprimem, no fundo e de modo velado, a mesma verdade e oferecem as mesmas enganadoras mentiras.

 

4 - O mundo é um livro

Para reforçar a relação Biblioteca-Mundo-Labirinto, Eco lembra, citando Adam de Lille, que, na Idade Média, o próprio mundo era visto como um livro: "Meu bom Adso, disse meu mestre (Frei Guilherme de Baskerville), durante toda a viagem tenho te ensinado a reconhecer os traços com que nos fala o mundo como um grande livro. Allain das Ilhas (Sic, na tradução) dizia que

"Omnis mundi creatura
quasi liber et pictura
nobis est in speculum"(R.38)

(Toda criatura do mundo, como se fosse um livro ou pintura, é para nós como um espelho)

Essa era uma idéia freqüente nos pensadores medievais. Hugo de S. Victor e São Boaventura falam do mundo como poema. São Boaventura ensina que Deus escreveu dois livros: o primeiro foi o mundo; o segundo, a Bíblia. O mundo seria um livro porque Deus, ao criar cada coisa, dizia uma palavra. "Faça-se a luz", disse Deus, e a luz passou a existir. Assim, cada ser criado corresponde a uma palavra de Deus, e o mundo é, então, um conjunto de palavras divinas encarnadas na matéria. Ora, um conjunto tão grande de palavras forma um livro, e o Universo é, portanto, um belíssimo poema. (Cfr. S. Boaventura, Brevilóquio, II Rom. 12, prólogo, 4,4).

A diferença entre os pensadores católicos e os gnósticos a respeito do mundo está em que, para os gnósticos, o mundo oculta labirinticamente a verdade e oferece mentiras enganadoras, enquanto para os católicos, o mundo é um livro legível e facilmente inteligível. Para a Gnose, o mundo é um livro-labirinto enganador, concebido pela mente malvada e mentirosa do demiurgo. Para o católico, o mundo não só fala, mas proclama e canta um hino à glória de Deus. E só não ouve esse cântico, só não compreende esse poema, quem não tem "l'occhio chiaro e l'afetto puro", como diz Dante (Divina Comedia, Paradiso, VI,87).

Daí o otimismo realista e a alegria do pensador católico ao contemplar o mundo, expressos, por exemplo, no Cantico delle Creature, de S. Francisco de Assis, que contrasta, per diametrum, com o pessimismo da cosmovisão gnóstica. É por essa razão que Adso exclama, ao sair do labirinto da biblioteca; "Como é belo o mundo, e como são feios os labirintos!" Ao que lhe responde Frei Guilherme: "Como seria belo omundo, se houvesse uma regra para andar nos labirintos"(R.209). Porque, para o racionalista e nominalista Frei Guilherme de Baskerville, típico representante da decadência medieval, o mundo já não era um livro legível. É o que repetia seu discípulo Adso, no final de sua vida:

"Videmus nunc per speculum et in aenigmate (Agora vemos por espelhos e em enigma) e a verdade, ao invés de cara a cara, manifesta-se deixando às vezes rastros (ai! quão ilegíveis) no erro do mundo(...) "(R.21).

A Idade Média decadente, representada por Frei Guilherme, já não era capaz de contemplar, nem de ler o livro do mundo. A Idade Média já não tinha então o "occhio chiaro" da Fé, nem o "afetto puro"da caridade.

 

5 - Biblioteca, História e labirinto apocalíptico

A biblioteca, "reservatório do saber humano"(R.217), contém também a história da humanidade. Ora, nada mais labiríntico do que a História, na qual o fio condutor da Providência divina traça seu plano no tempo, através das constantes contradições que sofre por parte do livre-arbítrio humano. Mais. Ela escreve seu plano providencial original utilizando precisamente esse mesmo arbítrio humano sem jamais violentá-lo. Sem jamais forçá-lo, tirando o bem até mesmo do mal, Fazendo a verdade brilhar nas trevas do erro, e a virtude se destacar contra o fundo tenebroso dos crimes. Só consegue sair do labirinto da História, compreendendo-a, quem se deixar guiar pelo Amor a Deus.

E, para que serve o conhecimento da História senão para melhorar o presente, prever o futuro pelo conhecimento dos erros do passado? A História permite, até certo ponto, prever o que a Profecia faz misteriosamente vislumbrar. Nenhuma biblioteca, pois, estará completa se não contiver em suas estantes o livro da Revelação - o Apocalipse - que contém a história do futuro. É por isso extremamente lógico que Eco tenha imaginado o labirinto de sua biblioteca cifrado com os versículos do Apocalipse, e que tenha posto, logo na entrada da biblioteca da Abadia o primeiro versículo do Livro da Revelação: "Apocalypsis Jesu Christi" (Revelação de Jesus Cristo) (R.199).

 

6 - Maldade ou bondade da biblioteca da Abadia

Como Eco apresenta a biblioteca de sua Abadia ?

Para responder a essa questão é preciso antes distinguir entre a biblioteca do ponto de vista histórico e a biblioteca enquanto símbolo. Historicamente, aquela biblioteca teria existido antes que a Abadia. O que exprime a idéia de que a Igreja Católica teria se aproveitado do saber humano acumulado antes de sua fundação e expansão, e teria alterado os fins a que tal saber se destinava. É o que Eco afirma através de Adso: "(...) logo me dei conta de que ele (o edifício da biblioteca) era muito mais antigo que as construções que o rodeavam, nascido talvez para outros fins, e que o conjunto abacial fora se dispondo ao redor dele em tempos posteriores, mas de modo que a orientação da grande construção se adequasse à da Igreja, ou esta àquela". (R.41).

Simbolicamente a biblioteca tem vários sentidos:

a - A biblioteca - conservatório da sabedoria humana

A biblioteca da Abadia existia, pois, antes que a Igreja e continha todo saber acumulado pela Antigüidade. A Igreja Católica se apropriara do edifício antigo, passando a usá-lo para seus fins e não mais para os fins originais. Enquanto a Antigüidade visava crescer no saber, conforme Eco, a biblioteca da Abadia "não era como as outras"(R.51). Num mundo considerado em decadência e em marcha para a morte, a missão da Abadia, isto é, a da Igreja, era a de "opor-se a essa corrida rumo ao abismo, conservando, repetindo e defendendo o tesouro da sabedoria que nossos pais nos confiaram", como afirma o abade a Frei Guilherme(R.53- O sublinhado é nosso).

Note-se que o abade não usa o termo investigando. A Igreja, na Idade Média, teria tido apenas a preocupação de conservar, de repetir e defender o que a humanidade aprendera, não permitindo a investigação e o progresso intelectual.

b - A biblioteca como depositório de um saber reservado e controlado

Diz o abade Abbone que nem todos os livros da biblioteca podiam ser lidos pelos monges. Do catálogo de livros, o monge podia requisitar qualquer um, mas sus requisição devia ser submetida ao juízo do Abade que permitiria ou não sua leitura.

Abbone dá três razões justificando essa conduta. Em primeiro lugar, porque "nem todas as verdades são para todos os ouvidos, nem todas as mentiras podem ser reconhecidas como tais por uma alma piedosa, e os monges, por fim, estão no scriptorium para levar a cabo uma obra precisa para a qual devem ler alguns e não outros volumes, e não para seguir qualquer insensata curiosidade que porventura os colha, quer por fraqueza da mente, quer por soberba, quer por sugestão diabólica"(R.54(. É o que aconselha a prudência.

A segunda razão dada por Abbone explica porque eram conservados os livros maus: "É que assim como Deus permite a existência de monstros, assim existem por desígnio divino também os livros maus dos magos, as cabalas dos judeus, as fábulas dos poetas pagãos, as mentiras dos infiéis. Foi firme e santa a convicção daqueles que quiseram e sustiveram esta Abadia durante os séculos, de que mesmo nos livros mentirosos pode transparecer aos olhos do leitor sagaz uma pálida luz da sapiência divina. E, por isso, também para eles, a biblioteca é escrínio. Mas, justamente por isso, compreendeis, ela não pode ser penetrada por qualquer um"(R.54).

Finalmente, uma terceira razão, de ordem prática, ainda hoje aplicada por qualquer biblioteca que possua manuscritos preciosos e raros: o valor e a fragilidade desses documentos desaconselham que eles sejam manuseados por qualquer um.

Por essas três razões, na biblioteca da Abadia só podiam entrar o abade, o bibliotecário e seu auxiliar.

c - A biblioteca como túmulo de um saber secreto

Entretanto, a biblioteca tinha um segredo desconhecido até pelo próprio abade Abbone, o qual "nunca chegou a entender exatamente quais eram os tesouros e os fins da biblioteca"(R.572).

Por fechar num túmulo um saber que queria manter secreto, a biblioteca de O Nome da Rosa é apresentada como símbolo de uma Igreja conservadora, mestra desconfiada e temerosa que proíbe conhecer certas doutrinas, e que desejaria impedir qualquer progresso intelectual e material, a fim de manter o seu domínio sobre o mundo. Por essa razão, Eco, através de uma das máscaras que quis adotar (Cfr. P.20) a condena:

"Esta biblioteca talvez tenha nascido para salvar os livros que contém, mas agora vive para sepultá-los. Por isso tornou-se fonte de impiedade"(R.449).

Eco não tem sequer certeza de que a Igreja primitiva e dos Padres tivesse querido realmente salvar e conservar o saber da Antigüidade, Daí o 'talvez' do texto. Mas, mais tarde, de todo modo, a corrupção da Igreja teria transformado a biblioteca, fonte de saber e de virtude, em fonte de impiedade.

Ora, essa tese de que a Igreja, originalmente boa, se corrompeu, é comum a inúmeras seitas heréticas surgidas no final da Idade Média. Espirituais, Fraticelli, Dolcinianos, Irmãos do Livre Espírito, Cátaros, Begardos, Valdenses, Gibelinos, Fedeli d'Amore, todos acusavam a Igreja de ter se corrompido ao aceitar a doação de Constantino. Contra uma Igreja rica e poderosa, dogmática e cristalizada em uma estrutura hierárquica, defendiam a idéia de uma Igreja pobre, espiritual, sem dogmas e sem estrutura, ecumênica e igualitária. Exatamente como a que defende hoje a Teologia da Libertação.

Dante, que foi amigo dos gibelinos e membro dos "Fedeli d'Amore", descreveu, no canto XXXIII do seu Purgatório, a transformação do carro da Igreja, que antes transportava Beatriz (aquela que traz a beatitude), num carro deformado pelos dons do poder imperial, sobre o qual passa a ser levada uma meretriz. E Petrarca, ele também um Fedele D'Amore, assim falou da Igreja num célebre soneto:

Fontana di dolori, albergo d'ira,
Scola d'errori, e tempio d'eresia:
Già Roma, or Babilonia falsa e ria
Per cui tanto si piange e si sospira
(...)
Fondata in casta ed umil povertate
Contra tuoi fondatori alzi le corna (...)

(Fonte de dores, albergue de ira,
escola de erros, e templo de heresia;
Outrora Roma, agora Babilônia falsa e pecadora
Por cuja culpa tanto se chora e se suspira
(...)
Fundada em casta e e humilde pobreza
Contra teus fundadores levantas teus chifres...

(Petrarca, Canzoniere, Soneto XVI, Ariani, Firenze, 1927).

Frei Guilherme de Baskerville condena então a Biblioteca da Igreja na Idade Média:

"Então uma biblioteca não é um instrumento para divulgar a verdade mas para retardar sua aparição? (pergunta aflito Adso de Melk). Ao que Frei Guilherme responde: "Não sempre e não necessariamente. Neste caso é ". (R.330- O sublinhado é nosso).

A Igreja, diz a obra de Eco, conservava o saber antigo, mas impedia que ele estivesse ao alcance de todos. O saber, assim, tornava-se o apanágio de um grupo que, com o seu controle, dominava a multidão ignorante. O resultado é que o saber se tornava aristocrático, reservado, e, em extremo, secreto, esotérico.

"A biblioteca é reserva de saber, mas pode manter esse saber intacto somente se impedir que ele chegue a qualquer um, até aos próprios monges."(R.217). A biblioteca feita como um labirinto, "não se abria ao risco do conhecimento"(R.218). "A ciência usada para ocultar ao invés de iluminar. Uma mente perversa preside a santa defesa da biblioteca"(R.206). Tal mente perversa que regia a biblioteca-labirinto da Abadia, fez dela "um lugar onde os segredos permanecem encobertos"(R.121) e não um meio para revelar os segredos da natureza e da História, a fim de servir ao bem estar material ou natural da humanidade.

d - A biblioteca, símbolo de um mundo essencialmente mau

Vimos que a biblioteca da Abadia fora construída como um labirinto e que suas medidas e partes divisórias representavam o mundo como era conhecido na Idade Média.

Ora, a representação do mundo como um labirinto enganador é típica do pensamento gnóstico, que considerava o demiurgo criador como o autor de um mundo mau. De modo análogo, a "biblioteca" da Igreja medieval teria sido organizada e dominada por uma mente perversa e diabólica. Assim Eco, em seu livro, procura identificar o catolicismo medieval, ou pelo menos uma parte bem representativa dele, com a Gnose.

Parece que, para ele, o pensamento humano - como um pêndulo- só pode estar ou no extremo do racionalismo -no qual ele inclui São Tomás (cfr. P. 18 e R. 532)- ou no extremo oposto da Gnose irracionalista. Assim, na própria Igreja, como em toda a História, haveria uma luta apenas entre racionalistas naturalistas, que querem construir o Reino neste mundo, a Utopia, e místicos gnósticos, inimigos da razão, e que sonham com a volta ao Éden original e a vinda do "Milênio". Nessa luta pendular não haveria uma posição própria do Catolicismo, que é atacado quer pela Gnose, quer pelo racionalismo panteísta.

Em O Nome da Rosa, o autor apresenta a biblioteca da Abadia - isto é, o saber da Igreja na Idade Média- dominada pelo perverso e místico Jorge de Burgos, um inimigo do pensamento racional de Aristóteles e São Tomás. A ele se opunham os que desejavam a liberdade do saber e da investigação intelectual, teses típicas do nominalismo medieval e do racionalismo moderno, representados no livro por Frei Guilherme de Baskerville. Essa luta é a chave que explica todos os mistérios da Abadia e de sua biblioteca, desde os primeiros homicídios até o assassinato do abade que adere ao racionalismo, passando pelas lutas entre hereges e Inquisição, entre o Papa e o Imperador, para culminar no incêndio da biblioteca e da Abadia, isto é, do mundo e da Igreja.

 

7 - A Abadia, o mundo e a História

A Abadia criada por Eco simboliza, ela também, o mundo medieval e o próprio universo. Vimos que, conforme diz o autor, a arquitetura é imagem do universo dado que ambos são feitos, para usar as palavras da Escritura, "com peso, número e medida" (Sab. XI, 21; R. 41).

Que a Abadia foi imaginada por Eco como um símbolo da época medieval e do próprio mundo, assim como da História, ele mesmo o diz:

"Esta abadia é de fato um microcosmo, quando tivermos aqui delegados do Papa João e de Frei Michele estaremos completos", comenta Frei Guilherme (R.229), ao notar que na Abadia se reuniriam representantes de todo o mundo medieval, então em conflito.

Por outro lado, todas as instituições e estados sociais da época estavam representadas na planta da Abadia.

Em primeiro lugar, convém analisar o modo como é apresentada a igreja abacial, pois esse edifício simboliza a própria Igreja Católica, na Idade Média. Eco distingue na construção do edifício religioso duas igrejas, feitas em dois diferentes estilos. A primeira, mais antiga, é uma construção românica, sóbria, solidamente plantada no chão da montanha, mais larga do que alta, para ter mais estabilidade, e encimada por ameias quadradas.(R57). Essa igreja antiga construída sobre a pedra (sobre Pedro), quase sem adornos, representa evidentemente a igreja primitiva que os sectários - Espirituais, Fraticelli, etc com o aplauso de Frei Guilherme - Eco - consideravam a verdadeira igreja de Cristo, igreja pobre, sem riquezas materiais, sem estruturas, uma pura igreja espiritual, que depois se corrompera ao ter aceitado a doação de Constantino, no século IV. Começara aí - segundo a opinião herética - a transformação da igreja pobre naquela que os Bispos seguidores do Vaticano II chamam de Igreja constantiniana.

Essa nova igreja subornada pelos donativos do Estado Romano, rica, cheia de adornos, materializada em suas estruturas, petrificada em seus dogmas, é simbolizada pelo segundo edifício, construído sobre a igreja românica. Eco a descreve como "enriquecida", "com um excesso de ornamentos" e com "uma agulha ousadamente apontada para a abóboda celeste"(R.57).

Na entrada da igreja abacial, Adso e Frei Guilherme se detêm contemplando o tímpano esculpido em estilo românico. Nele se representa a visão do trono de Deus de Ezequiel - visão que interessou sobremaneira o misticismo gnóstico hebraico (Cfr. G.G. Scholem, A Mística Judaica, Perspectiva, S. Paulo,1972, 46-81, trad. de Major trends in jewish mysticism) - e o juízo final em que Cristo julgará os vivos e os mortos, levando os bons para o céu e condenando os maus ao fogo eterno(R.57-63). Nesse tímpano estavam representados ainda os sete pecados capitais (R.61), utilizando-se os mesmos números cheios de significados místicos que aparecem no Apocalipse, e procurando-se obedecer às leis de estética medieval que mandava harmonizar o uno e o múltiplo, o unívoco e o equívoco (R60).

Enquanto contemplava esse tímpano apocalíptico, o jovem Adso tem um êxtase místico e conclui: "Foi então que compreendi que de outra coisa não falava a visão, senão do que estava acontecendo na Abadia (...) e compreendi que subíramos ali para sermos testemunhas de uma grande e celestial carnificina"(R.63- O sublinhado é nosso).

Ora, o Apocalipse narra a História da Igreja neste mundo, e Adso compreende que nele se retratam também os fatos da Abadia. Portanto, o que se passa na Abadia é uma parábola do que ocorria naquele tempo na História e do que ia ocorrer no futuro, visto que a Abadia representava a Igreja. O próprio autor dá aval a essa interpretação pela boca de Jorge de Burgos: "(...) o que acontece entre estes muros outra coisa não encobre senão as próprias vicissitudes do século em que vivemos. (...) temos diante dos olhos, a cada dia, no grande anfiteatro do mundo e na imagem reduzida da abadia, as catástrofes precurssoras da vinda do Anticristo" (R.453-454).

Pode-se dizer, então, que os fatos narrados em O Nome da Rosa pretendem ser uma parábola da História do mundo.

O poder na Abadia tinha sede na igreja, mas ele se exercia através do controle do saber, isto é, do controle da biblioteca-labirinto. Assim também a Igreja Católica dominaria o mundo medieval por meio do controle do saber e do estudo.

Simbolicamente, Eco situa o cemitério da Abadia entre a igreja abacial e a biblioteca. Entre a religião e o saber, estava a morte. Dois caminhos levavam de uma a outra, da igreja à biblioteca, da religião ao saber. O primeiro, que era visível, passava por entre os túmulos. O segundo, caminho subterrâneo, secreto, passava por entre os mortos. O enigma da morte permitia entrar no labirinto, fornecia a chave de sua entrada, mas não a de seu segredo mais recôndito. E os monges "eram dominados pela biblioteca, por suas promessas (o céu) e por suas proibições (os mandamentos)" (R.216).

Analogamente, através do medo da morte e do que havia no além, a Igreja Católica dominava o mundo medieval, ao controlar o estudo e o saber, controlando os segredos e os labirintos da biblioteca do saber humano.

Tanto a igreja medieval quanto a biblioteca eram guardadas por um cinturão de muralhas, símbolo do poder militar, a Nobreza, a serviço da Igreja. No recinto da Abadia havia ainda as oficinas dos artesãos que trabalhavam para os monges e para a Igreja, enquanto fora, longe, montanha abaixo, estendiam-se os campos lavrados pelos camponeses, servos da Abadia, enriquecida pela exploração de seu trabalho, segundo a visão marxista que Eco repete. Clero, Nobreza e Povo estão simbolizados na Abadia. Só não estão presentes, em símbolo, os comerciantes, dos quais se fala como os novos inimigos do poder monacal, e que se haviam estabelecido nas cidades. (R.150-151).

Nem mesmo os hereges medievais foram esquecidos por Eco, que os faz presentes por meio das figuras de Ubertino di Casale - apresentado de modo bastante simpático, apesar de seu misticismo - e dos Dolcinianos, nas pessoas do pobre provedor Remígio e de seu auxiliar, o pitoresco, apesar de sinistro, Salvatore. Eco mostra a heresia e os crimes como uma decorrência necessária do mundo medieval e da própria natureza, tal qual ela é, e os simboliza no esterco que escorre da Abadia emporcalhando a pureza da neve. Assim como da Abadia se divisava "uma baba de detritos escorrer pelas escarpas do torreão meridional, enfeando a neve"(R.38), assim também Eco descreve os hereges "como um lodo que escorria pelas veredas de nosso mundo" (R.222).

É bem claro que a descrição dos detritos da Abadia como lodo do mundo, salienta aspectos negativos da realidade, revelando a revolta ante a existência de misérias atuais da natureza. E a revolta contra essas misérias e males é o primeiro passo no caminho da revolta metafísica, que é a Gnose.

Em síntese, O Nome da Rosa representa o mundo na Abadia e em sua biblioteca, e pretende narrar parabolicamente a História, através dos acontecimentos que nela se desenrolam. Nesse mundo labiríntico, desenvolve-se uma história labiríntica, cujo significado as diversas Filosofias da História buscam esclarecer.

 

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Online, 19/04/2024 às 23:01:43h