O martírio de Santo Agostinho
Tempos atrás, motivado pelo desejo de melhor compreender a doutrina católica, quis travar conhecimento com os escritos de Santo Agostinho. Para tanto – pensei – nada melhor do que buscar uma livraria católica.
Dirigi-me, portanto, a uma das maiores, no centro da cidade, e pus-me a vagar frente às estantes, passeando os olhos pelas milhares de lombadas expostas na prateleiras. Não demorei a perceber que não poderia ter escolhido melhor, caso tencionasse realizar uma pesquisa bibliográfica sobre sociologia, política, marxismo, psicanálise, religiões comparadas, ou mesmo sobre os ‘best-sellers’ do momento. Nada encontrei, porém, referente aos outrora chamados “Doutores da Igreja”.
Busquei o auxílio de um balconista, jovem magricela, de brinquinho na orelha, que a contragosto resolveu atender-me.
- Qual é mesmo o nome? – perguntou ele, folheando catálogos de editoras.
- Santo Agostinho. Escreveu as “Confissões”, “De Civitate Dei” etc…
- Ele é francês?
- Não. Nasceu na Numídia, na África…
- Ah, bom – suspirou ele. Então está na listagem de autores e temas africanos. Deixa ver. Agostinho, Santo. A… Ac… Agatha Christie: “A Morte sobre o Nilo”, Ago… Agostinho… Agostinho… Está aqui. Um momento.
Partiu como passarinho apressado para os fundos da loja, subiu uma escada, procurou por alguns momentos, agarrou uns volumes e retornou, no mesmo andarzinho empertigado e duro.
- Pronto! exclamou, colocando os livros sobre o balcão. Li: “Escritos Políticos e Poéticos”, “Obra Política” e “Obras Completas de Agostinho Neto”. Todos de uma conhecida editora católica.
- Não, protestei. Este é o Agostinho Neto, líder da revolução angolana. Refiro-me a Santo Agostinho, Bispo e doutor da Igreja…
O rapazinho bufou, contrafeito, e saiu pisando duro. Parou diante de outra estante, com os punhos na cintura:
- Como é o nome mesmo?
- Santo Agostinho.
Começou a derrubar livros das prateleiras, jogando-os no chão.
- Santo… Santo…
Agarrou triunfalmente um volume e me entregou. Li: “Santo Dias da Silva, Mártir Operário”, da autoria de famoso líder sindical. Devolvi-lhe o livro.
- Ouça. É Santo Agostinho…
- Mas, afinal, Santo é o nome ou o sobrenome? – inquiriu irritado.
- Santo não é nome nem sobrenome. Santo é o mais alto estado acessível ao homem. Santo é…
- Olha, me desculpe – interrompeu ele. Eu só trabalho aqui há um ano e nunca ouvi falar. É melhor o senhor falar com a gerente. Ela é filósofa e deve conhecer.
Estranhei o qualificativo. Veio a gerente, uma gorducha de óculos, trajada à cigana, com uma enorme figa no pescoço. Esclareceu-me que se tratava de uma estudante de filosofia da PUC. Expliquei-lhe a situação e ela pareceu compreender.
-Temos sim, disse com orgulho. É um texto atualizado, em linguagem popular. Espere…
Sumiu por alguns minutos e voltou trazendo a tão procurada obra:
“AS AUTOCRÍTICAS DO COMPANHEIRO AGOSTINHO. O LIVRO. A BIOGRAFIA SEM CENSURA DO CONTROVERTIDO INTELECTUAL. TEXTO REVISTO E CONDENSADO EM LINGUAGEM MODERNA, POR UMA COMISSÃO DE TEÓLOGOS COORDENADA POR L. DORF, ex- OFM”.
Olhei-a atônito.
- Como? O senhor queria o texto original? O senhor deve estar brincando. Quem é que vai ler esses caras antigos? Eles escreviam em latim, imagine… Não quer em latim, não? Ha, ha, ha…
Agradeci e saí, pensando que talvez o bispo Macedo, aquele que já quis comprar uma catedral católica, quem sabe um dia se interesse por editar os autores católicos…
- Seção: Artigos Montfort
- Assuntos: Política e Sociedade • Crônicas
Publicações relacionadas
Artigos Montfort: “E não havia lugar para eles na estalagem”
Notícias e Atualidades: Stylyng 3 – A CNBB, o aborto e a sucessão presidencial
Artigos Montfort: Ditadura das Organizações
Para comentar esta publicação
O site Montfort não permite a inclusão de comentarios diretamente em suas publicacões.
Para enviar comentários, sanar dúvidas, obter informações, ou entrar em debate conosco, envie-nos sua carta.
TAGS