Atrevida carta aberta ao Papa contra a restauração da Missa Tridentina e em defesa do Concílio Vaticano II
“Parece que o senhor quer promulgar um “motu proprio” para restaurar o rito da “Missa de Pio V” de 1570 em vigor até 1962, isto é, até o Concílio Vaticano II. Com esse indulto o senhor quer ir ao encontro de algumas dezenas de fundamentalistas irredutíveis que se separaram do grupo liderado pelo Bispo cismático e excomungado Marcel Lefebvre, que retornaram na Igreja Católica, mas sob condição que não lhes seja exigida nenhuma adesão formal ao magistério e às reformas conciliares. De fato, o senhor repudia quer o Concilio, quer os Papas do Concílio: Papa João XXIII, que o convocou, e Papa Paulo VI que o concluiu e aplicou, os maiores Papas do século XX.
Desde as origens da Igreja a lei da oração foi a expressão da Fé e a Missa que é o ato central da vida eclesial sempre foi reformada, atualizada e modificada a fim de que a fé do povo de Deus pudesse ser conscientemente expressa. Alguns afirmam que a reforma desejada pelo Concílio com a mudança do latim para as línguas nacionais e a mudança do altar junto à parede para um altar voltado ao povo não é lícita e constitui uma abuso, mais até, numa ruptura com relação à constante tradição ”católica” da Igreja. Estes não têm suficiente espírito de discernimento e de conhecimento da história da Igreja e da história litúrgica em particular, porque, se os tivessem, saberiam que o rito de Pio V foi fruto da reordenação/reforma do rito precedente, o qual, por sua vez, fora reformado pelo menos quatro vezes antes da reforma global do Concílio Vaticano II, feita por Paulo VI.
O problema não é a Missa em latim (hoje anacrônica), o verdadeiro problema consiste no fato de que a Missa de Pio V é uma bandeira içada pelos tradicionalistas para exigir o repúdio total do Concílio Ecumênico Vaticano II e especialmente do Papa Paulo VI que eles consideram cismático e inspirado pelo diabo. Denegrir conscientemente o Concílio e os seus papas é a missão e o objetivo
O senhor é o Papa e nós reconhecemos a sua autoridade, mas ao mesmo tempo lhe dizemos que o senhor não pode fazer aquilo que quiser e não pode contradizer um Concilio, nem muito menos revogá-lo como o está fazendo com a concessão em “caráter exclusivo” da Missa de Pio V. Concedendo o indulto a toda a Igreja, o senhor se dispensa de exigir, como é seu dever e obrigação, a declaração de fidelidade ao magistério do Concílio. Desde esse momento, todos se sentirão no direito de pedir indultos especiais sob a ameaça de fazer um cisma, como notoriamente está fazendo o bispo-feiticeiro Milingo. O senhor mesmo, em seu livro autobiográfico, atribuiu as culpas da crise da Igreja à reforma litúrgica, colocando-se no mesmo plano que um político italiano, Umberto Bossi, representante de um partido xenófobo, o qual atribui todos os males da era moderna, desde a Revolução Francesa à globalização a nada menos que ao “Concílio que virou os altares”. O senhor não está, creia-nos, em boa companhia.
Nós afirmamos nossa fidelidade ao Concílio Ecumênico Vaticano II, do qual nos gloriamos de ser filhos e guardiões, aceitamos as suas reformas que consideramos não realizadas e superadas, porque, para nós, o Concílio foi encerrado apressadamente sem que tenha podido encarar os problemas até hoje não resolvidos: a sobrevivência da terra; a pobreza de três quartos da humanidade; a água fonte de vida para todos os povos; o desenvolvimento compatível; a guerra proibida; o retorno ao “princípio” da Palavra, a estrutura da Igreja, povo de Deus, o conteúdo ou o estilo da autoridade como serviço; os critérios de escolha dos Bispos; a teologia como comunhão de teologias; os leigos e as leigas sujeitos ativos da Igreja; a autonomia e a liberdade das comunidades em matéria organizativa e cultual; os títulos e honrarias incompatíveis com a fé; quais ministérios e para qual Igreja; os ministérios de cônjuges e de celibatários; a Igreja e a mulher; os ordinariatos militares; a relação com “os reinos deste mundo” (Concordatas?); a formação permanente do pessoal da Igreja.
Diante desses desafios que abrem o terceiro milênio e que esperam a Igreja como testemunha do Logos encarnado na história (Jo. I, 14), querer retornar ao passado restaurando fórmulas e ritos de outros tempos e fora do tempo, é sintoma de medo, pecado de soberba e desconfiança no Espírito Santo que hoje não falaria mais como falou no passado, não obstante Cristo seja “o mesmo ontem e hoje e nos séculos” (Heb., XVIII, 3).
Nós lhe pedimos que não publique o indulto que justificaria o desprezo de quem já despreza o Concílio, mas lhe pedimos que peça aos Bispos, Cardeais e cristãos um ato de adesão formal ao inteiro magistério do Concílio, começando o senhor mesmo a dar o bom exemplo disso. No caso de publicação do indulto que restaure a Missa de Pio V, estaremos de joelhos, mas com as costas retas não o aplicaremos, mas o combateremos em nome de nossa consciência e do respeito devido ao Concílio ecumênico e aos papas seus predecessores. Nós exigimos com o mesmo tratamento uma missa mais participada e mais condividida como nosso povo. Hoje, mais do que nunca, vale o grito de Cristo aos apóstolos assustados, grito feito seu pelo Papa João Paulo II no dia do início de seu pontificado: “Não tenhais medo” (Mc., VI, 50). Nós não temos medo!
Genova, 12 de Novembro de 2006
- Seção: Notícias e Atualidades
- Assunto: Igreja
- Temas: Liturgia • Missa Nova • Missa Tridentina
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