A Santa Missa, Sacrifício da Nova Aliança
Nos anos sessenta do último século, dominava a idéia de que a Eucaristia é sobretudo um banquete. Por isso seria justo usar um altar reconhecível como mesa. Não tão raramente, se celebravam Missas nas quais os participantes se sentavam em torno de uma mesa, pretendendo seguir deste modo o exemplo da öltima Ceia. Esta tendência foi vigorosamente sustentada por uma corrente que ir ao encontro dos protestantes. Assim como os reformadores refutam o fato que a Santa Missa torna presente o sacrifício de Cristo na Cruz, também um certo tipo de ecumenismo colocava em cena que a Eucaristia seria sobretudo a “Ceia do Senhor”. Assim como “Ceia do Senhor” é uma expressão usada pelo apóstolo Paulo, pensava-se ter o suporte da Sagrada Escritura para afirmar isso. Até mesmo a primeira redação da Introdução ao Missal do Papa Paulo VI, em 1969, descreveu a Santa Missa como a “Ceia do Senhor” ou também como santa assembléia do povo de Deus na qual é celebrada, sob a presidência de um sacerdote, a memória do Senhor[1].
Esta descrição provocou a ira dos Cardeais Ottaviani e Bacci os quais criticaram que aí não se levava em conta o carater sacrifical da Eucaristia[2]. Como reação, Paulo VI fez publicar um ano depois (em 1970) uma edição corigida da Introdução na qual vem reproposta com clareza a doutrina do Concílio de Trento sobre a Santa Missa como sacrifício, uma doutrina em todo caso mencionada em outros lugares, mesmo na primeira edição do texto[3]. Também o texto corigido, porém, parte da descrição da Missa como “Ceia do Senhor”.
Essas mudanças redacionais põem a pergunta sobre o que é a Santa Missa. Os dois significados de “banquete” e de “sacrifício” são realidades de igual nível? Ou um significado é mais amplo que o outro? De onde é preciso partir para se aproximar do centro do mistério eucarístico?[4]
A Santa Missa – o que é? Assim pergunta o primeiro capítulo. “A Missa não é uma aposta [mercantil]. A Missa não é uma representação (teatral)… não é magia… não é um exercício obrigatório. A Missa é uma festa, uma assembléia, uma memória, um jogo, um contrato de aliança, um sacrifício, um banquete” etc.[5]
Um elenco desse tipo põe em discussão aspetos significativos, mas de valor muito diverso. Não se podem pôr no mesmo nível, por exemplo, o aspeto do sacrifício e aquele de “jogo”. Como “jogo”, Schnitzler entende (nas pegadas de Romano Guardini) não uma espécie de jogo de divertimento com regras inventadas por nós, mas antes um “santo jogo”, isto é, uma ação sagrada não orientada a um fim de trabalho ou de pedagogia[6]. Guardini, na sua conhecidíssima obra sobre o espírito da liturgia, compara a festa cultual com o jogo das crianças e com as obras dos artistas que não são destinadas ao consumo ou ao lucro. O jogo das crianças, segundo Guardini, não tem um fim que se quer alcançar e pelo qual o jogo serve somente como meio. O jogo tem o seu sentido, mas não está submetido a um outro fim como instrumento[7]. Guardini reafirma que a liturgia, enquanto tal, não é um processo educativo, mas um evento orientado à glorificação de Deus. O homem deve aprender a dedicar tempo a Deus, a ter palavras, pensamentos e gestos para o “santo jogo” sem se perguntar sempre logoo: por quê? Basta ocupar-se em liberdade, beleza e santa serenidade em fazer diante de Deus o jogo ordenado da liturgia[8].
Na abordagem de Guardini se vê a justa preocupação de não submeter a liturgia, especialmente a Santa Missa, a fins que a usem como simples meio para alcançar outra coisa que não seja a glorificação de Deus e a salvação do homem. Todavia, o termo “jogo” é ambíguo e pede uma explicação atenta. A categoria de “jogo” falta, costumeiramente, nas explicações históricas e sistemáticas da Eucaristia, como nos textos de dogmática ou no Catecismo da Igreja Católica. Antes seria problemático, por exemplo, promover um inteiro programa de catequese às crianças sob o título: “A Eucaristia como jogo”. Seriam criados tremendos mal entendidos.
Falar de uma “forma fundamental” da Eucaristia foi um novo passo. Joseph Ratzinger observa: “Tratava-se de reconhecer, por trás da casualidade de cada um dos ritos em si mesmos, a forma geral e portadora que enquanto tal é contemporaneamente a chave para atingir a substância do evento eucarístico. Com o conceito de forma, entrara no diálogo teológico uma categoria desconhecida cuja dinâmica reformadora era inegável. Antes, pode-se dizer que a liturgia em sentido moderno nasceu com a descoperta desta categoria”[10].
É preciso compreender o acento dado à ceia respectivamente ao banquete da situação do tempo. No fim do séc. XIX, os fiéis recebiam a Eucaristia somente pouquíssimas vezes por ano. O Papa Pio X, no início do último século, encorajava os fiéis a se aproximarem mais vezes da Santa Comunhão. Já as criancinhas deviam se unir ao Senhor eucarístico. Para favorecer a participação ativa das pessoas a toda a liturgia eucarística, o movimento litúrgico punha então no primeiro plano da atenção o fato de que nos nutrimos com o corpo e o sangue de Cristo, acolhido em comunidade[11].
A proposta de Guardini vai ainda mais longe, apresentando o banquete como forma fundamental de todo o mistério eucarístico. Essa impostação tinha como conseqüência mudanças radicais nos edifícios de culto. Buscava-se estruturar as igrejas de modo a manifestar antes de tudo o aspeto de banquete, especialmente ao colocar a altar no meio para a celebração versus populum. O problema não está na devida redescoberta da categoria de banquete, mas na diferença entre “interno” e “externo”. Numa correta relação entre interno e externo, a realidade interior e a forma exterior deveriam corresponder-se mutuamente. Se vamos, por exemplo, a um banquete nupcial, não saímos com roupas adaptadas para fazer uma escalada na montanha, mas sim com uma roupa festiva. E, vice-versa, nenhum esportista teria a idéia de subir ao topo da montanha com roupas próprias a um banquete nupcial. Essa correspondência entre “interno” e “externo” deveria valer também para a celebração eucarística. O Cardeal Ratzinger sublinha justamente que a distinção entre sacrifício e banquete, entre forma e conteúdo, entre dogmática e ciência litúrgica foi o problema central da reforma litúrgica, um peso negativo que explica a maior parte dos problema particulares no âmbito da liturgia[12].
A categoria do sacrifício é mencionada, mas explicada do seguinte modo: “Banquete e sacrifício não são duas coisas diversas. O sacrifício é o banquete, isto é, nós o recebemos enquanto o tomamos e comemos”[13]. Nesta explicação, o sacrifício desaparece no banquete. Identifica-se o sacrifício com a comunhão. Está por trás disto uma falta na cristologia: o Catecismo Holandês não professava claramente o sacrifício expiatório de Jesus, oferecido na cruz para a nossa salvação. Exatamente este ponto é salientado pela comissão cardinalícia que se ocupou criticamente deste catecismo. Por isso os cardeais pediram uma modificação:
“É preciso dizer claramente que Jesus se ofereceu ao Pai em reparação pelos nossos delitos como santo sacrifício no qual Deus acha seu beneplácito. Porque Cristo nos ‘amou e deu a si mesmo por nós, oferecendo-se a Deus em sacrifício de suave odor’ (Ef 5,2).
O sacrifício da cruz, porém, é perpetuado na Igreja de Deus incessantemente no sacrifício eucarístico (veja-se Vaticano II, Cost. Sacrosanctum Concilium, n. 47). Na celebração da Eucaristia, Jesus, o sacerdote principal, se oferece a Deus por meio da oferta consacratória a qual é realizada pelos sacerdotes e à qual se unem os fiéis. Essa celebração é sacrifício e banquete. A oferta do sacrifício é completada pela comunhão na qual o sacrifício oferecido a Deus é recebido como alimento para unir os fiéis com ele e entre si no amor (cf. 1 Cor 10,17)”[14].
O exemplo do Catecismo holandês mostra até que ponto extremo podia chegar a tese que vê a estrutura fundamental da Santa Missa no banquete.
É elementar sublinhar o conjunto entre sacrifício e banquete na celebração eucarística. Este ponto básico se mostra, por exemplo, em um livro de Joseph Goldbrunner, a seu tempo muito difundido para a preparação catequética das crianças para a Primeira Comunhão, um texto que por vários aspetos é precioso ainda hoje: para explicar o que é a Santa Missa, o catequista desenha na lousa três quadros, dois no alto e um em baixo. Os dois quadros no alto representam a öltima Ceia e o sacrifício da cruz no Calvário. Destes desenhos partem flechas que apontam para o terceiro quadro em baixo: ali se vê o altar, semelhante à da öltima Ceia, junto a uma cruz que manifesta o evento do Calvário. Por fim o catequista escreve sob o terceiro quadro: “A Santa Missa é sacrifício e banquete”[15].
É interessante que Goldbrunner não diz: “A Santa Missa é banquete e sacrifício”, mas “sacrifício e banquete”. Aí se acha uma preeminência do sacrifício, se bem que este ponto evidentemente não seja exposto às crianças da Primeira Comunhão.
“O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue’ (1 Cor 11,23), instituiu o Sacrifício eucarístico de seu corpo e sangue. As palavras do apóstolo Paulo nos reportam à circunstância dramática na qual nasceu a Eucaristia. Ela leva indelevelmente inscrito o evento da paixão e da morte do Senhor. Não é apenas a evocação dele, mas sua representação sacramental. É o sacrifício da Cruz que se perpetua nos séculos. Bem exprimem essa verdade as palavras com as quais o povo, no rito latino, responde à proclamação do ‘mistério da fé’ feita pelo sacerdote: “Anunciamos a tua morte, Senhor!”[17]
O papa acena depois às palavras da öltima Ceia que manifestam a doação do corpo e do sangue de Cristo “por” nós[18]. O “per” (hyper em grego) indica duas coisas: a oferta de Cristo em nosso favor e em nosso lugar. A expiação vicária de Cristo por nós na cruz é antecipada já na öltima Ceia. A Santa Missa, como já a öltima Ceia, não é um ato independente da oferta no Calvário, mas toma a sua força do único sacrifício de Cristo, oferecido uma só vez e uma vez por todas, como reitera a Carta aos Hebreus (Eb 7,27; 9,12.26.28; 10,10). João Paulo II, com o Catecismo da Igreja Católica, sublinha pois: “o sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício”[19]. A Eucaristia “aplica aos homens de hoje a reconciliação obtida uma vez por todas por Cristo para a humanidade de todos os tempos”. “A Missa torna presente o sacrifício de Cristo, não se acrescenta a ele e não o multiplica”[20].
O papa oferece depois uma reflexão de grande importância também para a questão da “estrutura fundamental”:
“Por força de sua íntima relação com o sacrifício do Gólgota, a Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não só em sentido genérico, como se se tratasse do simples oferecer-se de Cristo como alimento espiritual aos fiéis [como pretendia o Catecismo holandês, podemos acrescentar].
De fato, o dom de seu amor e da sua obediência até o extremo da vida (cf. Jo. 10,17-18) é em primeiro lugar um dom ao seu Pai. Certamente, é dom em nosso favor, antes de toda a humanidade (…), mas dom antes de tudo ao Pai: “sacrifício que o Pai aceitou, devolvendo essa total doação de seu Filho, que se fez ‘obediente até a morte’ (Fil 2,8), com a sua paterna doação, isto é, com o dom da nova vida imortal na resurreição”[21].
O sacrifício é pois uma doação de si feita a Deus, antes de tudo por Cristo ao Pai. A glorificação de Deus é o primeiro objetivo intrínseco da Eucaristia vista como sacrifício visível. Este sacrifício consiste em louvor, agradecimento, súplica e expiação. O sacrifício do Calvário, tornado presente na Santa Missa, se dirige ao Pai como mediação ascendente que sobe (por assim dizer) de baixo para o alto. O efeito desse movimento ascendente é a mediação descendente que faz descer (por assim dizer) o dom salvador da graça, oferecida aos homens a fim de que a recebam com a fé formada pela caridade. Há pois uma mediação ascendente, o sacrifício, da qual resulta uma mediação descendente, a comunicação da vida de Deus nos sacramentos, entre eles no banquete eucarístico. Para orientação dirigida a Deus, o sacrifício tem uma precedência lógica diante de seu efeito sacramental: antes se glorifica a Deus, por meio de Cristo, depois se recebe o efeito da graça. Em outras palavras: a dimensão anabática, a adoração de Deus que sobe como o incenso, tem uma precedência lógica frente à dimensão catabática, o efeito salvífico voltado aos homens.
Desta reflexão resulta a prioridade do sacrifício na celebração eucarística, uma prioridade que deve exprimir-se também no aspeto exterior. A comunhão com Deus e entre nós é um resultado do sacrifício de Cristo. Certo: também a oferta do Salvator é tornada possível por um processo catabático, por uma mediação descendente, isto é, pela Encarnação como “descida” do Filho de Deus que assume uma natureza humana. O sacrifício, no qual Jesus Cristo se oferece a Deus enquanto homem, traz consigo uma eficácia infinita por causa da união hipostática da humanidade de Cristo com a pessoa do Verbo: pois se o Cristo crucificado é o Filho de Deus encarnado, o seu oferecimento no Calvário é a máxima glorificação possível de Deus. Primeiro vem a glória de Deus, depois a salvação dos homens. Assim também o banquete eucarístico se manifesta como conseqüência lógica do sacrifício de Cristo: recebemos o corpo e o sangue de Cristo, oferecidos ao Pai no momento da consagração que torna presente o sacrifício do Gólgota. Esta estrutura é óbvia também no rito da Santa Missa: primeiro vem a oração eucarística e só depois a comunhão.
Tenhamos em conta, depois, ainda um outro fato: já no Antigo Testamento encontramos sacrifícios aos quais se associa um banquete, por exemplo na conclusão da aliança no monte Sinai (Êxodo 24,4-11). Aí se fala de um “sacrifício de comunhão” (Es 24,5). O sacrifício deve, pois, ser visto como evento que inclui, para a sua conclusão, um banquete. Similarmente, em vez de falar da “Ceia do Senhor”, seria preciso salientar o vocabulário sacrifical, por exemplo os termos “sacrifício da Missa”[22] e “sacrifício eucarístico”[23].
O primeiro grande opositor da tese de Guardini foi o liturgista austríaco Josef Andreas Jungmann, conhecido entre outras coisas por sua obra fundamental “Missarum solemnia”, uma explicação histórica da Santa Missa. Jungmann é, pois, diferentemente de Guardini (que é mais um filósofo e fenomenólogo), um profundo conhecedor da história da Eucaristia. Já é significativo, segundo ele, o fato de que a Santa Missa jamais era chamada simplesmente de “ceia” ou “banquete”. Os nomes dados nos primeiros séculos realçam o agradecimento (“eucharistia”) e, com vários termos, o sacrifício (como as palavras gregas “tusia” e “prosfora”)[24],não se presta como termo técnico hoje, porque se presupõe ainda a integração do ágape na mesma celebração. O ágape, um banquete para saciar-se materialmente e para favorecer a comunhão fraterna, separou-se, depois, da celebração litúrgica que se chamou “eucaristia”. O aspeto mais típico e fundamental é visto na oração de agradecimento dirigido a Deus, uma oração que leva consigo a presença corporal do Cristo crucificado e ressurrecto, uma oração e uma ação explicada em termos sacrificais, como “tusia” e “prosfora”.. O apelativo “ceia do Senhor”, utilizado por São Paulo (1 Cor 11,20).
As observações de Jungmann foram aprofundadas depois pelo Cardeal Ratzinger em suas contribuições magistrais sobre a “Festa da fé e sobre o espírito da liturgia”, um título inspirado na obra já citada de Guardini. “A última ceia é certamente o fundamento de cada liturgia cristã, mas ela mesma não é ainda uma liturgia cristã.
O ato de instituição do cristianismo ocorreu no judaísmo, mas ele não havia encontrado ainda uma forma própria enquanto liturgia cristã. A última ceia fundamenta o conteúdo dogmático da Eucaristia cristã, mas não a sua forma litúrgica”[25]. De fato, a Igreja não repetiu a última ceia, mas sim a ação eucarística. Enquanto a festa da Páscoa ocorre uma vez por ano, já a Igreja primitiva celebrava a Eucaristia todo domingo para recordar a resurreição do Senhor. A Eucaristia traz consigo a presença de Cristo crucificado e ressurecto.
Uma recente abordagem católica, de Lothar Lies (dogmático em Innsbruck falecido a poucos meses), integra essas dimensões, ainda que estendendo-as com algum aspecto mais preciso: a Eucaristia como anamnese da salvação, como epíclese, como celebração da presença da salvação, como prosfora (palavra grega que significa “oferta” ou “sacrifício“) e como koinonia (comunhão)[27].
Poderemos precisar ainda esta estrutura. A base é sem dúvida a anamnese que não é apenas uma recordação, mas mais ainda uma ação comemorativa que torna presente a eficácia do evento mencionado. Por isso, já o Concílio de Trento não se contenta em falar de uma memória, mas acrescenta duas outras categorias: a da applicatio (a Santa Missa aplica os frutos do único sacrifício para o bem da Igreja) e a da rappresentatio (a celebração eucarística é uma representação sacramental do sacrifício no Gólgota). Na proposta de Lothar Lies, a importäncia deste fato se manifesta na insistëncia sobre a categoria da prosfora, uma precisão não tão evidente para o documento de Lima. A Santa Missa não é só uma recordação do Gólgota, mas a presença de Cristo crucificado que se oferece ao Pai. A Missa e o evento do Gólgota são o mesmo sacrifício, se bem que seja diversa a modalidade da oferta: cruenta no Calvário, incruenta sob as espécies de pão e de vinho nas nossas igrejas. Por isso é legítimo o que fazia anos atrás um pároco alemão: antes de sair da sacristia para a Santa Missa, ele perguntava aos coroinhas: “Onde vamos?” E a resposta era sempre: “Vamos ao Gólgota”.
Portanto, a memória do evento salvífico contém o sacrifício. O sacrifício, por sua vez, não deve ser reduzido ao momento do agradecimento: há o elemento da adoração (de per si distinta do agradecer), mas também a súplica e a expiação. Os protestantes facilmente podem conceder que a “Ceia do Senhor” seja um sacrifício de louvor e de agradecimento (de fato, toda oração nossa dispõe destas qualidades), mas isso não vale outro tanto para a dimensão da expiação, reservada por eles somente ao evento da cruz e negada à Santa Missa. A anamnese contém em vez o sacrifício de Cristo com todas as suas dimensões e não só o elemento importante do agradecimento. Em vez de falar de “Eucaristia”, que significa agradecimento, parece preferível usar a expressão “Santa Missa” que inclui o louvor e o agradecimento, mas também a súplica e a expiação.
Anamnese e eucaristia trazem consigo por sua vez à epiclese, isto é à invocação de Deus, especialmente do Espírito Santo que desce sobre os dons eucarísticos e sobre a assembléia. O envio do Espírito Santo depois torna possível a comunhão entre os membros da Igreja, sobretudo quando se aproxiamam do corpo eucaristico de Cristo.
Diante destas visões panorâmicas permanece ainda a questão da “estrutura fundamental”: onde pôr o acento, como descrever a relação entre os vários elementos? Entre as tentativas publicadas nas últimas décadas, sobressaem as de Joseph Ratzinger e de Walter Kasper que nesse ponto são antes próximas[28]. Ratzinger trata o tema sobretudo em seu livro “A festa da fé” e retoma alguns elementos no “Introdução ao Espírito da Liturgia”[29].
Existe também em italiano um artigo significativo de Kasper: “Unicidade e multiplicidade dos aspetos da eucaristia: Em vista do recente debate sobre figura e sentido fundamentais da eucaristia”[30]. Ambos autores reafirmam a orientação teocêntrica da Eucaristia como memorial eficaz do sacrifício de Cristo e são críticos diante da teoria que vê a “estrutura fundamental” no banquete.
Sacrifício e banquete são dimensões que não devem se contrapor entre si, mas que devem ser integradas, ainda que dando uma certa precedência ao sacrifício. O Catecismo da Igreja Católica formula brevemente: “A Missa é, a um só tempo e inseparavelmente o memorial do sacrifício no qual si perpetua o sacrifício da Cruz e o sagrado banquete da comunhão do corpo e do sangue do Senhor”[31].
Seja a dimensão de sacrifício, seja a de banquete devem ser aplicadas de algum modo à toda celebração eucarística, mas o aspeto de banquete se refere principalmente à recepção da comunhão, enquanto o sacrifício se exprime de modo mais forte na parte mais central da celebração, na oração eucarística que culmina nas palavras da öltima Ceia.
A idéia do sacrifício está presente, de algum modo, em todas as orações eucarísticas admitidas pela autoridade eclesiástica, mas encontramos um acento particular no Cânon Romano e na terceira oração eucarística[36]. Os primeiros testemunhos do Cânon Romano (também chamado “primeira oração eucarística” no Missal de Paulo VI) remontam ao quarto século, e ao tempo de Gregório Magno (início do séc. VII) o texto encontrou na sua substância aquela forma na qual ele existe ainda hoje[37]. Por isso, podemos falar também do “rito gregoriano”[38].
O sacerdote que celebra a Santa Missa no rito antigo recebe uma consciência mais intensa da centralidade do sacrifício. Para ilustrar esta afirmação, quereria só recordar as orações recitadas em voz baixa durante o ofertório sobre o pão e sobre o vinho. Conforme a avaliação di Robert Spaemann, trata-se aqui da mais radical do Novus Ordo na liturgia romana precedente[39]. No rito de Paulo VI, as duas orações se inspiram em fórmulas hebráicas de agradecimento pelas refeições, acrescentando muito discretamente a idéia de oferta”: “apresentamo-lo a ti, a fim de que se torne para nós alimento de vida eterna” respectivamente “bebida de salvação”. No texto latino, Paulo VI insistiu em colocar o verbo offerimus (“oferecemos”) contra a maior parte dos liturgistas, que consideravam que se deveria remover a idéia do sacrifício do ofertório[40]. É verdade que o sacrifício verdadeiro e próprio se desenvolve durante a consagração, mas nos ritos eucarísticos a idéia do sacrifício vem já antecipada antes, no rito de são João Crisóstomo até mesmo desde a proscomídia, quando se preparam as hóstias no início da Divina Liturgia.
“Aceita, Pai santo, Deus onipotente e eterno, esta vítima imaculada, que eu, teu indigno servo, a ti ofereço, meu Deus, vivo e verdadeiro, pelos meus inumeráveis pecados, as minhas ofensas e as minhas faltas, e por todos aqueles que me estão aqui em torno, mas também por todos os fiéis cristãos vivos e defuntos: a fim de que a mim, e a eles, esta oferta produza a vida eterna”.
É evidente aqui que a Santa Missa é um sacrifício oferecido pelos vivos e pelos defuntos, em expiação dos pecados e para alcançar a vida eterna. É claro também que o oferecedor, operando em nome de Cristo cabeça da Igreja, é o sacerdote, embora os fiéis sejam convidados a se associarem ao ato sacrifical.
A oração para oferecer o cálice traz uma bela formulação poética, diferente da sobriedade talvez por demais grande da oração mais recente:
“Nós Te oferecemos, Senhor, o cálice da salvação, implorando a tua clemência: a fim de que suba como perfume agradável na presença de tua divina majestade, para a nossa salação e de todo o mundo”.
A imagem que o cálice “suba” com perfume agradável a Deus, corresponde a várias descrições do Antigo Testamento. Assim se reforça o primeiro objetivo do sacrifício, o que visa glorificar a Deus. Em seguida se acentua ademais que a ação sagrada não aproveita unicamente à assembléia visível, mas que se extende além “para a salvação de todo o mundo”.
Quando o sacerdote recita as orações de oferecimento sobre o pão e sobre o cálice, ele volta os olhos à cruz (no início para a oferta do pão e durante toda a oração para a oferta do cálice). Depois das orações, ele traça o sinal da cruz seja com a hóstia seja com o cálice. Aqui se vê muito bem a ligação intrínseca com o sacrifício da cruz representado durante a Santa Missa.
Na visão, a luz celeste desce para trasformar os dons de pão e vinho. Depois as ofertas são levadas ao alto, sinal do sacrifício que se dirige a Deus, para descer depois de novo sobre o altar e servir para a santa comunhão. Procuremos associarmo-nos ao sacrifício da nova aliança, levando assim a luz celeste – a verdade de Deus e o mistério da graça – neste mundo que tem tanta necessidade dele.
- Seção: Artigos Montfort
- Assunto: Igreja
- Temas: Liturgia • Missa Nova • Missa Tridentina
Publicações relacionadas
Artigos Montfort: A apostolicidade da Eucaristia e a relação entre sacerdotes e fiéis leigos na Santa Missa
Cartas: Perdão dos pecados veniais na Santa Missa - Orlando Fedeli
Artigos Montfort: Onde o Céu toca a terra: um percurso pelo Rito Romano Tradicional – Parte 2 - Marcos Bonelli
Para comentar esta publicação
O site Montfort não permite a inclusão de comentarios diretamente em suas publicacões.
Para enviar comentários, sanar dúvidas, obter informações, ou entrar em debate conosco, envie-nos sua carta.
TAGS