O Papa


Refere o padre Manoel Bernardes (+1710), em seu livro “Luz e Calor”, que, no ano de 1148, foi condenado um herege da Bretanha, chamado Eon, o qual a seus discípulos e sequazes impunha belos nomes de virtudes: a este chamava Sabedoria, àquele Prudência, a outro Justiça, etc.
Do modo semelhante procede o demônio: gosta de ocultar suas obras sob títulos honrosos e iludir os homens fazendo-os confundir vício e virtude, erro e verdade.
E assim, “na noite da ignorância humana,neste confuso século, muitas obras parecem virtuosas e partos sobrenaturais da graça, que na verdade são vícios, ou, quando menos, puramente efeitos da natureza” (Pe. Bernardes).
De modo especial, nos tempos atuais, uma das virtudes que mais têm sido falsificadas pelo maligno, é a obediência.
Sem dúvida alguma, a verdadeira obediência é de um valor incomparável, sobretudo a obediência às autoridades da Igreja.
Mas, não é verdadeira virtude a obediência a ordens más, ou seja, que contradigam a Fé ou a Moral católica.
Quando os Santos e autores espirituais nos recomendam ter uma obediência cega a nossos superiores, estão se referindo a sermos cegos ao amor próprio, ao comodismo, às razões puramente naturais, etc., jamais recusando obedecer por causa destas coisas. Nunca, porém, se pode ser cego à Fé e à Moral, e obedecer ainda que passando por cima do que estas mandam ou proíbem.
Em outras palavras, a obediência não nos exime da responsabilidade sobre nossos atos.
Se alguma autoridade nos ordena algo que seja reprovável, deve-se obedecer antes a Deus que aos homens (At V,29).
Ensina São Bernardo de Claraval:
     
“Aquele que faz o mal sob o pretexto de obediência, faz antes um ato de rebeldia do que de obediência”.
 
E São Tomás de Aquino:
 
“Nenhum preceito tem força de lei a não ser por sua ordem ao bem comum.” – “Toda lei se ordena para a comum salvação dos homens e somente daí tem força e razão de lei, e, na medida em que falta a isso, não tem força de obrigar” (I-IIae., q. 90 e 96, a 6).
E também São Francisco de Sales:
 
“Muitos se enganaram redondamente (...) os quais julgaram que ela (a obediência) consistia em fazer a torto e a direito tudo o que nos pudesse ser mandado, ainda que fosse contra os mandamentos de Deus e da Santa Igreja” (Entretiens Spirituels, c. XI).
 
Diz ainda o Papa São Félix III (+492):
 
“É aprovar o erro não lhe resistir, é sufocar a verdade não a defender (...) Todo aquele que deixa de se opor a uma prevaricação manifesta pode ser tido como um cúmplice secreto” (citado por Leão XIII, em sua carta aos bispos italianos, de 8/XII/1892).
 
E a Declaração Coletiva dos Bispos alemães, confirmada pelo Beato Papa Pio IX, diz o seguinte:
 
“A Igreja Católica não é uma sociedade na qual é aceito aquele princípio imoral e despótico pelo qual se ensina que a ordem do superior em qualquer caso exime (os súditos) da responsabilidade pessoal” (Denz. Sch. 3116).
 
Completa Leão XIII:
 
“Desde que falta o direito de mandar ou o mandato é contrário à razão, à Lei eterna, à autoridade de Deus, então é legítimo desobedecer aos homens a fim de obedecer a Deus” (Encíclica Libertas Praestantissimum, n.15).
 
Logo, a obediência não pode ser desculpa para se aceitar ser cúmplice dos crimes que nestes tempos, muito infelizmente, a cada dia se cometem em nossas paróquias e dioceses, sob a benção de maus pastores.
Coisas erradas contrarias à Fé e à tradição, como a missa protestantizada de Paulo VI, a prática da comunhão na mão, os absurdos da RCC e da teologia da libertação, as aberrações litúrgicas, os cultos ecumênicos, etc...
Numa palavra: não é válido, em nome de uma obediência mal compreendida, cooperar com a “auto-demolição da Igreja”, com a propagação da “fumaça de satanás” que “penetrou no Templo de Deus”, segundo a expressão do próprio Paulo VI.
E ainda que as nocivas inovações do Concílio Vaticano II tenham sido aprovadas pelos últimos Papas, isto também não significa que devam ser obedecidas de olhos fechados.
O Papa é infalível, quando fala ex cathedra.
Mas não fala ex cathedra a todo momento.
E não falando ex cathedra pode perfeitamente errar.
E é fato histórico que nenhuma das inovações originadas do Vaticano II foi proclamada ex cathedra por Papa algum.
Logo podem perfeitamente estar erradas.
E realmente estão erradas, e não podem ser obedecidas, porque contradizem a Fé de sempre.
Normalmente falando, é claro que não é lícito resistir ao Santo Padre, o Papa, mas, se suas determinações estiverem em desacordo com o Depósito da Fé sempre professada, torna-se necessário, então, imitar a São Paulo, que também se viu constrangido a resistir a São Pedro, o primeiro Papa (cf. Gál. II, 11-14).
Veja-se o que diz o célebre Suarez (+1617), chamado de “Doctor Eximius” por diversos Papas:
 
“Se o Papa baixar uma ordem contrária aos bons costumes, não se há de obedecer-lhe; se tentar fazer algo manifestamente contrário à justiça e ao bem comum, será lícito resistir-lhe” (De Fide, dist. X, sect. VI, n.16).
 
E São Roberto Belarmino o atesta:
 
“É lícito resistir ao Pontífice que tentasse destruir a Igreja. Digo que é lícito resistir-lhe não fazendo o que ordena e impedindo a execução de sua vontade” (De Romano Pontifice, lib. II, c. 29).
 
Desta afirmação de um santo proclamado Doutor pela Igreja, a qual examinou e aprovou todos os seus escritos, se infere a perfeita possibilidade de um Papa, apesar do carisma da infalibilidade, tentar destruir a Igreja, bem como a liceidade de resistir-lhe.
O mesmo Santo aprovou a 15ª proposição dos teólogos de Veneza, que dizia que “quando o Soberano Pontífice fulmina uma sentença de excomunhão que é injusta ou nula, não se deve recebê-la”.
São Godofredo de Amiens e Santo Hugo de Grenoble, juntamente com outros bispos reunidos no Sínodo de Vienne (1112), resistiram ao Papa São Pascoal II (+ 1118) na questão das investiduras, e escreveram-lhe:
 
“Se, como absolutamente não cremos, escolherdes uma outra via, e vos negardes a confirmar as decisões de nossa paternidade, valha-nos Deus, pois assim nos estareis afastando de vossa obediência” (citado por Bouix, Tract. de Papa, t. II, p. 650).
 
O Papa Honório I (+638), por sua vez, foi, depois de morto, condenado como traidor da Igreja por um outro Papa, São Leão II (+683):
 
“Anatematizamos Honório, que não ilustrou esta Igreja Apostólica com a doutrina da Tradição Apostólica, mas permitiu, por uma sacrílega traição, fosse maculada a Fé imaculada (...) e não extinguiu, como convinha à sua autoridade apostólica, a chama insipiente da heresia, mas a fomentou por sua negligência” (Denz. Sch. 563).
 
Na própria Ladainha de todos os Santos a Igreja reza: “Que Vos digneis conservar na Santa Religião o Sumo Pontífice e todas as Ordens da Hierarquia Eclesiástica, nós Vos rogamos, ouvi-nos, Senhor!” Logo é possível que o Papa venha a se afastar da Santa Religião.
Aqueles que defendem uma obediência irresponsável às autoridades religiosas, talvez tivessem ficado do lado de Aarão quando ele comandou a adoração ao bezerro de ouro (cf. Ex XXXII, 1-6), ou do lado de Caifás e dos príncipes dos sacerdotes que condenaram Jesus à morte (cf. Mt XXVII, 20).
Preste-se atenção ao que disse o Cardeal Charles Journet:
 
“Nem sempre é exato dizer de maneira um pouco simplista: ‘onde está o Papa está a Igreja’, ou ‘é necessário obedecer ao Papa sem restrições mesmo no âmbito em que ele não é infalível’. Esta solução é mais fácil e mais cômoda. De fato, quando o Papa aborda certos assuntos reformáveis, mesmo em união com um Concílio, ele não pode engajar e de fato não engaja, a plenitude de sua Autoridade Suprema. Ele não é, portanto, Papa em toda a extensão do sentido em que entendemos a fórmula ‘onde está Pedro está a Igreja’. Em tempos tranqüilos e serenos, isto não suscita nenhum problema especial. Em tempos de crise, porém, a coisa já não é mais assim. É, portanto, perfeitamente concebível, em certos momentos difíceis, que um cristão que goze de especial clarividência, como Santo Atanásio no tempo do Arianismo, se separe das opções oficiais feitas pela Hierarquia em sua maioria(...) Isto não significa de modo algum que se separe da Igreja ou mesmo da comunhão com o Papado, no sentido mais misterioso e profundo da palavra, mesmo se, em tal caso particular, esse Papa decretasse o contrário e proferisse uma excomunhão” (citado em L’Obéissance dans l’Eglise, Lucien Méroz, Ed. Martin , conf. Le Chardonnet, jun/1990).
 
O Cardeal Journet cita o heróico bispo Santo Atanásio, hoje Doutor da Igreja, mas em vida excomungado (Denz. Sch. 138, 141 e 142) pelo Papa Libério (+366), papa que traíra a Igreja, passando a apoiar os hereges semi-arianos e a perseguir Santo Atanásio por não fazer o mesmo. O Santo, porém, resistiu e continuou o seu ministério, ordenando padres e, provavelmente, até bispos, contra a vontade do Papa.
E o Cardeal Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, afirmou:
 
“É possível e até necessário criticar os ensinamentos do Papa, se não estiverem suficientemente baseados na Escritura e no Credo, ou seja, na fé da Igreja Universal” (O Novo Povo de Deus, S. Paulo, Paulinas, 1974, pg. 140).
 
Aos que defendem uma obediência cega e irresponsável a tudo o que seja ordenado por um Papa, convém perguntar se a amante do Papa Alexandre VI (+1503) também devia obedecer-lhe quando este, por carta, a ameaçou de excomunhão caso ela não voltasse a pecar com ele... (cf. Iota Unum, Romano Amério, t. I, n. 19).
Obediência ou cumplicidade?
 
“Quando o pastor se transforma em lobo, compete primeiramente ao rebanho se defender” (D. Guéranger, L’Anneé Liturgique, na festa de S. Cirilo de Jerusalém).
 
Juramos fidelidade e obediência perfeita ao Santo Padre, o Papa, e aos Bispos em comunhão com ele, mas não nos é lícito aceitar novidades que contradigam, na teoria ou na prática, a doutrina de sempre. Novidades contra as quais lutaremos como nos for possível.
Não podemos confundir “a Igreja Católica, Romana, Eterna, com a Roma humana e susceptível de ser invadida por inimigos vestidos de púrpura” (D. Lefebvre).

    Para citar este texto:
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MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/papa/obediencia_cumplicidade/
Online, 19/04/2024 às 13:58:25h