Religião-Filosofia-História

 
"Os símbolos intelectuais elaborados pelos vários tipos de imanentistas freqüentemente
são conflitantes, assim como os vários tipos de gnósticos se opõem uns aos outros."
(Eric Voegelin, A Nova Ciência da Política, p. 95).
"O acontecido entre Rômulo e Remo mostra como a cidade terrena se divide contra si mesma;
o sucedido entre Caim e Abel é reflexo das inimizades que existem entre as duas cidades,
entre a Cidade de Deus e a dos homens. Em suma, que os maus lutam uns contra os outros e,
por sua vez, contra os bons. Mas os bons, se perfeitos, não podem ter nenhuma altercação entre si".
(Santo Agostinho, A Cidade de Deus (Contra os Pagãos), Livro XV, cap. V).
 
 

 
 

1. Índice

•       1. Índice

 

•       2. Apresentação

 

•       3. Gravidade e abrangência da gnose

 

•       4. Críticas ao uso que Voegelin faz do termo "gnose"

 

•       5. Voegelin de costas para a modernidade gnóstica de fato

 

•       6. A distinção voegeliana entre gnose "antiga" e "gnose moderna"

 

•       7. O erro de Eric Voegelin

 

•       8. Exemplo da confusão de Voegelin: marxismo e gnosticismo

 

•       9. Conseqüência da contradição: a caricatura da gnose

 

•       10. Outra conseqüência absurda: a ortodoxia é gnóstica, e a gnose é ortodoxa?!

 

•       11. Eric Voegelin contra o Catolicismo

 

•       12. Eric Voegelin contra o Deus pessoal

 

•       13. Voegelin mudou de opinião sobre a gnose?

 

•       14. A pseudomística de Eric Voegelin

 

•       15. APÊNDICE: Ecos no Brasil

 

o    Contra-Reforma "gnóstica"?! Santos "idiotas"?! o O panteísmo é gnóstico?!

 

o    Antropologia gnóstica... contra a gnose?!

 

•       16. Bibliografia

 

 

2. Apresentação

Eric Voegelin (1901-1985) foi um estudioso alemão que causou comoção nos meios acadêmicos ao classificar movimentos políticos modernos - como o positivismo e o marxismo - como gnósticos, de modo que não passariam de novas versões de uma velha heresia combatida pela Igreja Católica. Nascido em Colonha, Voegelin chegou a ser aluno de Hans Kelsen, mas acabou emigrando até a Louisiana, no sul dos Estados Unidos, durante a ditadura de Hitler. Foi lá que escreveu a maioria de seus livros. Sua "demonização" do marxismo - se não precisa, ao menos justa - lhe garantiu alguma popularidade junto à direita americana, embora Voegelin também condenasse o liberalismo e o protestantismo como movimentos gnósticos. Em grande parte devido à difusão das teses de Voegelin, teses estas inspiradas por autores modernistas, tem havido recentemente uma onda de estudos "revisionistas" sobre gnose, questionando a validade do termo e buscando redefinir seu significado. O presente estudo visa mostrar justamente como Voegelin está envolvido nesta confusão, e quais as suas razões.

Durante o 2001 Annual Meeting of the American Political Science Association, realizado em San Francisco entre 30 de agosto e 2 de setembro de 2001, Stefan Rossbach apresentou um interessantíssimo estudo intitulado "Gnosis" in Eric Voegelin's philosophy, que, como o próprio nome já diz, trata do uso do termo "gnose" por Eric Voegelin.

É principalmente neste trabalho de Rossbach que nosso estudo se baseia, reproduzindo várias de suas citações e descobertas (o autor teve acesso às cartas de Voegelin), traduzidas para o português. Além disso, foi utilizada também, para a compreensão geral da filosofia voegeliana, principalmente a tese de doutorado de Mendo Castro Henriques, A Filosofia Civil de Eric Voegelin, apresentada à Universidade Católica de Lisboa. Como não podia deixar de ser, foram feitas consultas às obras tanto do próprio Voegelin, como de outros autores, sobre ele e sobre o tema da gnose, além de certas contribuições nossas, na medida em que eram pertinentes à elucidação do problema proposto: o gnosticismo em Eric Voegelin.

Agradecimentos são devidos ao Prof. Orlando Fedeli, cujos estudos sobre gnose são nossa principal base, por ensinar a encarar a questão do único ponto de vista capaz de compreendê-la sem falhas: o da Santa Igreja Católica. Dentre seus trabalhos publicados, o recente A Gnose "Tradicionalista" de René Guénon e Olavo de Carvalho contém um bom resumo da gnose e indicações de grande valor, tanto teórico quanto apologético, sobre esta doutrina, que é o coração de todas as heresias.

Inclusive, foi a polêmica que se seguiu a esse trabalho de Orlando Fedeli que motivou nosso estudo sobre

Voegelin, pois algo devia estar errado se um gnóstico em sentido estrito como Olavo de Carvalho podia citar Voegelin em sua defesa, como foi feito, apenas porque tanto um quanto o outro se opõem aos movimentos materialistas que Voegelin condena como "gnose moderna" (positivismo, marxismo, etc.).

O presente estudo é dedicado ainda a D., um amigo que gastou todo o seu dinheiro importando as caras obras de Voegelin, e ainda gasta tempo e dinheiro com um de seus ecos. Que o que se segue possa lhe ser útil.

 

3. Gravidade e abrangência da gnose

Antes de mais nada, para Voegelin, a gnose é um problema espiritual muito sério, que vai da antigüidade à modernidade, e cuja gravidade é tamanha que ele a equipara ao satanismo, como se vê pelo trecho a seguir: "Voegelin explica que os 'movimentos gnóstico-satânicos', com sua 'revolta contra a realidade', se tornaram 'uma força na história mundial'." (ROSSBACH, p. 6, negrito nosso).

Mas, quando se fala da presença da gnose no mundo atual, nunca faltam os ingênuos e pouco estudados que, após uma visão superficial, acusam os estudiosos da questão de serem "teóricos da conspiração" e de verem "gnose em todo lugar". Rossbach cita uma carta de Voegelin, muito saborosa, em resposta a essas pretensas objeções, que por isso vale a pena reproduzir integralmente, apesar de sua extensão:

"Então, há a questão da Gnose. Você atribui a mim a 'prontidão' de classificar todo tipo de idéias como gnósticas, como se isso fosse uma esquisitice minha. Bem, se você atribui a mim, como freqüentemente se faz, a grande descoberta do problema da Gnose moderna e sua continuidade com a antigüidade, devo rejeitar a honra e humildemente desmentir este lampejo de gênio. Encontrei o problema pela primeira vez em Prometheus, escrito por Bathasar em 1936. Então eu verifiquei que ele estava certo, por meio do estudo de Gnosis, escrito por Jonas em 1937, e por meio da leitura de montes de material sobre sectarismo medieval. Para a aplicação moderna, encontrei confirmação para esta visão nas obras de Lubac. E então eu tomei a precaução de discutir a questão detalhadamente com Puech, Quispel e Bultmann, ou seja, com as principais autoridades vivas sobre Gnose e Cristianismo. Todos eles concordaram que esta era de fato a questão. Resumindo: todo mundo que é alguém em questões deste gênero compartilha da minha opinião. Evidentemente, você está certo em dizer que isso surpreende os 'profissionais'. Mas você sabe tanto quanto eu que os 'profissionais' consistem em uma notável porcentagem de pilantras acadêmicos que embolsam salários de professor sem fazer o mínimo esforço de sequer ler os livros escritos por outras pessoas. E quando você fala das 'conseqüências perturbadoras' com relação à classificação de personalidades contemporâneas, só posso lhe assegurar de que não são nem um pouco perturbadoras, mas sim lugar-comum, para os estudiosos que conhecem o assunto. Novamente, estou pasmo de você, entre todas as pessoas, tomar o lado dos pilantras contra os estudiosos - e que estudiosos! - veja novamente os

nomes acima." (Eric Voegelin, Carta a Carl J. Friedrich, 12 April 1959, Box 13, File 13.16, Hoover Archives; apud ROSSBACH, p. 4, negritos nossos, sublinhados do original).

 

4. Críticas ao uso que Voegelin faz do termo "gnose"

Porém, embora os maiores especialistas reconheçam a gravidade e a extensão do problema "gnósticosatânico" e concordem com Voegelin que a gnose está muito presente na modernidade, o mesmo não se pode dizer quanto aos fenômenos modernos que Voegelin caracteriza como gnósticos.

Mendo Castro Henriques aponta "a utilização, muito peculiar por parte de Voegelin, do conceito de gnose" (HENRIQUES, p. 61). E reconhece que "Voegelin se afastou da noção erudita de gnose em mais que um sentido" (HENRIQUES, p. 139).

Conta ainda que também cientistas políticos importantes criticaram Voegelin: "Entre os political scientists que dedicaram recensões discordantes contam-se nomes reputados como os de Hans Kohn, Arnold Brecht e Robert Dahl. Este, em 'The Science of Politics; New and Old", World Politics, 7(1995), pp. 484-89, afirma mesmo que Voegelin "has not only un-defined science; he has un-scienced it" ["não só des-definiu a ciência, como a des-cientifizou"], pois utiliza pressupostos cuja validade não examina." (HENRIQUES, p. 59, nota 17, negritos nossos, itálicos do original).

O próprio Stefan Rossbach, aliás, conclui exatamente isso de seu estudo: "...se 'gnose' e 'gnosticismo' em Voegelin são entendidos como conceitos empíricos, então precisamos concordar com os críticos que a obra dele está cheia de problemas... seu uso de 'gnosticismo' violou os princípios metodológicos mais elementares que ele havia definido para si mesmo muito tempo antes e, de fato, em (!) A Nova Ciência da Política" (ROSSBACH, p. 27, exclamação do original).

Ou seja, Voegelin não seguiu nem seu próprio método, no seu emprego do termo "gnosticismo": "O termo 'Gnosticismo' não surgiu da autointerpretação de um cosmo[cosmion] social, nem pode ser considerado o resultado de um processo de 'clarificação crítica' da parte dos cientistas políticos" (ROSSBACH, p. 28). Assim, Rossbach conclui taxativamente que "A Nova Ciência da Política contribuiu para o uso inflacionário do termo [gnosticismo]..." (ROSSBACH, p. 28).

Stephan Hoeller conta que: "Enquanto isso, pensadores conservadores respeitáveis abandonaram a questão da Gnose. Alguns, como o estudioso e ex-senador americano S.I. Hayakawa, submeteram Voegelin e suas teorias a críticas severas e ao ridículo." (HOELLER, [s.p.]).

Voltando a Rossbach, ele conta ainda que nem mesmo amigos próximos de Voegelin o pouparam, como Alfred Schütz: "Também o amigo de Voegelin, Alfred Schütz, expressou reservas [ao uso do termo "gnose" por Voegelin]". (ROSSBACH, p. 7).

Por fim, Rossbach diz que: "Como sempre, porém, a crítica que tinha mais peso e, portanto, era mais dolorosa de suportar, era a crítica que vinha de especialistas como Bultmann." (ROSSBACH, pp. 7-8). Pois até mesmo Rudolph Bultmann, que Voegelin apontara como uma das maiores autoridades vivas sobre Gnose e Cristianismo (v. segunda citação do presente artigo), e que com ele concorda que a Gnose é a questão central do mundo moderno, entretanto desaprova a interpretação de Eric Voegelin:

"Bultmann, por exemplo, considera a caracterização da Gnose por Voegelin inapropriada. Ele fala de uma

'secularização' do termo e se pergunta se este gesto é 'admissível'. E novamente, comentando Wissenschaft, Politik und Gnosis, ele desaprova o uso de Voegelin dos rótulos de 'gnose' e 'gnóstico'." (ROSSBACH, p. 7, citando: Cartas de Rudolf Bultmann a Eric Voegelin, 19 July 1954 and 4 March 1960, Box 8, File 8.55).

 

5. Voegelin de costas para a modernidade gnóstica de fato

Já deve ter ficado claro que há um sério problema com o uso que Eric Voegelin faz do termo "gnosticismo" (ou "gnose"). Antes de se passar ao principal, que é a definição dada por Voegelin à "gnose moderna" e o teor das críticas feitas a ela, será útil a uma melhor compreensão do assunto verificar onde é que Voegelin vê gnose na modernidade.

Ele mesmo o diz: "Dizendo movimentos gnósticos entendemos referir-nos a movimentos como o progressismo, o positivismo, o marxismo, a psicanálise, o comunismo, o fascismo e o nacionalsocialismo (nazismo)" (Eric Voegelin, II Mito del Mondo Nuovo, Rusconi, Milão, 1976, p.16, apud Orlando Fedeli, "Gnose: Religião Oculta da História", <http://www.montfort.org.br/veritas/gnose.html>). Mendo Castro Henriques, comentando a evolução da tese de Voegelin sobre a natureza gnóstica da modernidade entre as obras As Religiões Políticas e A Nova Ciência da Política, acrescenta ainda alguns outros elementos: "A novidade é que agora, a par do bolchevismo e do nacional-socialismo, também iluminismo, humanismo, liberalismo e positivismo são considerados etapas de um gigantesco processo que se iniciou num sectarismo da Antigüidade e que culminou nos totalitarismos do século XX." (HENRIQUES, p. 62).

Pois bem, note-se que não são mencionados os movimentos modernos mais flagrantemente gnósticos, como o romantismo, o idealismo, a teosofia, o "tradicionalismo" guénoniano, o modernismo, o espiritualismo, o simbolismo, o surrealismo, a nova era, etc. Ao invés desses herdeiros diretos da gnose "antiga" que acabamos de citar, Voegelin menciona movimentos muitas vezes opostos aos primeiros, movimentos estes cuja identificação com a gnose é, no mínimo, indireta e problemática, quando não totalmente equivocada, como se verá a seguir.

 

6. A distinção voegeliana entre gnose "antiga" e "gnose moderna"

Para descobrir onde foi que Voegelin errou, é preciso antes de mais nada deixar que ele nos explique qual a distinção que faz entre gnose "antiga" e a suposta "gnose moderna". Ele o faz a seguir:

"No extremo da revolta na consciência, a 'realidade' e o 'além' se tornam duas entidades separadas, duas 'coisas', para serem manipuladas magicamente pelo homem sofredor com o propósito ou de abolir totalmente a 'realidade' e escapar para o 'além', ou de impor a ordem do 'além' na 'realidade'. A primeira das alternativas mágicas é preferida pelos gnósticos da antigüidade, a segunda pelos pensadores gnósticos modernos." (Eric Voegelin, In Search of Order, p. 37, apud ROSSBACH, pp. 6-7).

Deixando de lado, por ora, a pergunta de qual é a relação entre "realidade" e "além" que Voegelin consideraria não-gnóstica, depreende-se do trecho acima que, para o autor:

1.  os gnósticos "antigos" buscavam "abolir totalmente a 'realidade' e escapar para o 'além'";

2.  os "gnósticos modernos" buscam "impor a ordem do 'além' na 'realidade'".

Henriques descreve estas duas correntes da seguinte maneira: "O que aproxima o gnosticismo radical da Antigüidade das metamorfoses modernas é uma idêntica concepção de unicidade do real. O gnóstico helenístico só conhece Deus e reduz o mundo criado a nada. O moderno coloca o peso da realidade no mundo: o resto é ficção. Ambos se reconhecem consubstanciais à plenitude do real e opostos às massas alienadas." (HENRIQUES, p. 138)

Esta mesma distinção é precisada ainda, em outros termos, por Eugene Webb, em seu livro sobre Voegelin: "...o gnosticismo pode tomar a forma transcendentalizante (como no caso do movimento gnóstico da antigüidade tardia) ou a forma imanentizante (como no caso do marxismo)." (Eugene Webb, Eric Voegelin: Philosopher of History, University of Washington Press, Seattle, Washington, 1981, p. 282; apud Bill McCLAIN, "Dictionary of Voegelian Terminology", <http://www.salamander.com/~wmcclain/ev-dictionary.html>).

 

7. O erro de Eric Voegelin

Pois bem, de um lado temos a gnose que Voegelin chama de "antiga", como se fosse coisa do passado, que é "gnose" no sentido estrito da palavra, "gnose" como a entendem os maiores especialistas no assunto. Do outro, temos a "gnose moderna", que é como Voegelin chama movimentos muitas vezes opostos àqueles que, a seu modo, perpetuam hoje a gnose de sempre, que de "antiga" só tem portanto a origem. Só de colocar a questão em ordem já deve ter ficado claro qual o erro de Voegelin. Ele é explicitado na citação a seguir, o que de mais simples e importante já foi dito sobre o emprego do termo "gnosticismo" por Eric Voegelin.

Nela, o problema é resolvido por Gregor Sebba, um dos principais intérpretes e discípulos de Voegelin, favorável ao mestre e bastante capaz, já que Voegelin dele dizia: "sempre gosto quando Sebba escreve sobre minha obra" (Carta a Donald E. Stanford, 24 January 1975, Box 36, file 36.34; apud ROSSBACH p. 33 nota 92, que menciona ainda 2 outras cartas em que Voegelin faz declarações similares). Rossbach o cita a seguir, definindo a questão:

"Porém, caso alguém queira se agarrar à noção [de gnosticismo] e estude historicamente o que é geralmente considerado como suas manifestações, o tema que pode ser considerado sua 'essência' é o exato oposto do que Voegelin apresentou como a essência do 'gnosticismo moderno'. Logo no início de seu documento, Sebba observa:

'Alegar, como Voegelin faz, que movimentos políticos e intelectuais modernos como o positivismo ou o marxismo são "gnósticos" significa dizer que o gnosticismo antigo se transformou no seu oposto ao mesmo tempo em que permaneceu o que é.'" (Gregor Sebba, "History, Modernity and Gnosticism", in Peter J. Opitz, Gregor Sebba (eds.), The Philosophy of Order: Essays on History, Consciousness and Politics, (Stuttgart: Klett-Cotta, 1981,) p. 191)." (ROSSBACH, p. 33, negritos nossos).

Foi exatamente esta contradição que permitiu até a um autonomeado "bispo da igreja gnóstica" (!), o já citado Stephan A. Hoeller, ironizar a tese de Voegelin da seguinte forma:

"Voegelin se tornou o profeta de uma nova teoria da história, na qual o gnosticismo exercia um papel nefando. Todas as modernas ideologias totalitárias eram de algum modo espiritualmente relacionadas ao gnosticismo, dizia Voegelin. Marxistas, nazistas e praticamente todos os outros que o bom professor julgasse repreensíveis eram na realidade gnósticos, envolvidos na "imanentização do eschaton", por meio da reconstituição da sociedade num paraíso na terra. Como os gnósticos não aceitavam o eschaton cristão convencional de céu e inferno, Voegelin concluiu que eles deviam estar envolvidos em uma revolução milenarista da existência terrena. Ao mesmo tempo, Voegelin era forçado a admitir que os gnósticos consideravam o reino terrestre como totalmente sem esperança e irremível. A gente se pergunta como é que o irremível reino terrestre poderia ser transformado no "eschaton imanentizado" de uma utopia terrena. Que os novos gnósticos de Voegelin não tivessem nenhum conhecimento ou simpatia pelo gnosticismo histórico também não o incomodou. Eram gnósticos, e acabou." (HOELLER, [s.p.], negrito nosso).

Por fim, Robert Alan Segal, professor da Universidade de Lancaster, no mais sensato artigo escrito sobre o abuso do termo "gnose", por parte de vários autores, para caracterizar movimentos modernos que não são propriamente gnósticos, não deixa dúvidas:

"Os aspectos da modernidade que Voegelin chama de 'gnósticos' deveriam ser chamados de 'apocalípticos' ou 'milenaristas', pois o objetivo moderno é aperfeiçoar o mundo, ao contrário do objetivo do gnosticismo antigo, que é escapar dele. Ademais, a confiança moderna no conhecimento é uma confiança mais no conhecimento do mundo que no conhecimento do eu [self]. Embora a avaliação da modernidade por Voegelin se baseie em muito mais reflexão e erudição que a de Satinover, o uso que ele faz do epíteto 'gnóstico' para repreender a modernidade é igualmente equivocado." (SEGAL, [s.p.], negrito nosso).

 

8. Exemplo da confusão de Voegelin: marxismo e gnosticismo

Tomemos o caso do marxismo como exemplo, para explicitar a confusão voegeliana. De fato, os marxistas pensam segundo uma estrutura de pensamento gnóstica, ao negarem a realidade em prol de um sistema irreal, e ao sustentarem uma presunção elitista de detenção de um conhecimento salvador. Isto decorre do fato de Marx ter aplicado a estrutura do idealismo, que é gnóstica, ao materialismo.

Em primeiro lugar, lembremos que é ponto pacífico que o idealismo é gnóstico, e aqui Voegelin apenas repete o que aprendeu nos estudiosos clássicos do assunto:

"Eu descobri que a continuidade do gnosticismo desde a antigüidade até o período moderno era uma questão de consenso entre os melhores estudiosos do século XVIII e começo do XIX. Gostaria de mencionar a grande obra de Ferdinand Christian Baur sobre Die christliche Gnosis; oder, die christliche Religionsphilosophie in ihrer geschichtlichen Entwicklung de 1835. Baur desvelou a história do gnosticismo desde a gnose original da antigüidade, passando pela Idade Média, e indo direto até a filosofia da religião de Jakob Böhme,

Schelling, Schleiermacher e Hegel." (Eric Voegelin, Autobiographical Reflections, Louisiana State University Press, 1989, p. 66, negrito nosso).

Voegelin, aliás, compara Hegel a ninguém menos que o heresiarca Valentino, e Schelling aos gnósticos atacados por Santo Irineu:

"No caso prototípico do Gnosticismo moderno, no sistema de Hegel, o núcleo essencial é o mesmo que nas especulações de Valentino" (Eric Voegelin, The Ecumenic Age, pp. 18-29; apud ROSSBACH, p. 6). "Schelling não pode ser totalmente absolvido da acusação levantada por Sto. Irineu contra os gnósticos do século II d.C.: 'Eles abrem Deus como se fosse um livro' e 'Eles colocam a salvação na gnose [conhecimento] daquilo que é a majestade inefável'." (Eric Voegelin, Plato, University of Missouri Press, 2000, p. 193). Porém, evidentemente, é preciso distingui-los: dizer sem mais nem menos que o marxismo é gnóstico - como Voegelin faz - é semelhante a dizer que o marxismo é idealista! De fato, o marxismo tem a estrutura do idealismo, que é gnóstica, mas, quando Marx faz a transposição do sistema idealista de Hegel para a matéria, este deixa de ser gnóstico para se tornar panteísta.

Esse tipo de confusão entre panteísmo e gnose é freqüente, pois ambos se encontram misturados na maioria dos casos. Hans Jonas cita o exemplo do hermetismo:

"Nem todo o Corpus [Hermeticum] pode ser considerado como uma fonte gnóstica: grandes partes dele respiram o espírito de um panteísmo cósmico muito distante da denúncia violenta do universo físico tão característica dos gnósticos." (Hans JONAS, "The Poimandres of Hermes Trismegistus", in The Gnostic Religion, Boston, Beacon Press, 2nd edition, 1991, p. 147).

Ademais, é preciso notar que, como Marx dizia (e demonstrou), idealismo e materialismo são perfeitamente reversíveis. Isso deriva diretamente do princípio gnóstico de que matéria é espírito solidificado, e espírito é matéria sublimada.

Assim, enquanto, por um lado, não se pode negar a distinção entre gnose e panteísmo (da mesma forma que é preciso distinguir idealismo de materialismo), por outro lado, há uma relação dialética entre os dois, de modo que se pode afirmar que o panteísmo é a antecâmara da gnose. Como afirma o Prof. Orlando Fedeli, "o panteísmo é irmão gêmeo e dialético da gnose".

Há duas pontes entre panteísmo e gnose: a intelectual e a moral. Simplificando muito, digamos apenas que, no plano intelectual, extremos de racionalismo levam dialeticamente ao irracionalismo, e vice-versa; enquanto que, no plano moral, extremos de ascese levam a extremos de libertinismo, e vice-versa.

Quando há a união destes dois movimentos antagônicos, agradando assim a todas as tendências más do ser humano, irrompem as revoluções. Nos termos do Prof. Orlando Fedeli, trata-se dos pólos negativo e positivo do erro, que, ao se unirem, causam um curto-circuito (a revolução), repelindo-se logo depois. É o caso da heresia modernista, por exemplo, que uniu o agnosticismo ao imanentismo. É por esta última característica que o modernismo é gnóstico.

Aliás, que o modernismo seja gnóstico é algo que até o prefaciador da edição brasileira de A Nova Ciência da Política reconhece:

"O movimento gnóstico remonta a Simão Mago, cuja história nos foi transmitida pelos Atos dos Apóstolos.

Desenvolveu-se no século II, mas, longe de desaparecer ante a refutação de seus erros por [Santo] Irineu, Tertuliano, Clemente de Alexandria e outros, ficou sendo uma vegetação religiosa parasitária ao longo da história da Igreja, corroendo a doutrina cristã e suscitando outras tantas heresias. Extraordinariamente reavivado em nosso século, palpita no fundo da heresia modernista e do chamado 'progressismo'. (O modernismo foi condenado por São Pio X na memorável encíclica Pascendi Dominici Gregis de 8 de setembro de 1907, à qual deve ser acrescentada a Carta do mesmo Pontífice sobre Le Sillon (25 de agosto de 1910))."

(Prof. José Pedro Galvão de Sousa, "Apresentação" de A Nova Ciência da Política, de Eric Voegelin. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982, 2ª edição, pp. 8-9, negritos nossos, itálicos e parênteses do original).

Porém, embora a conclusão seja verdadeira, possivelmente é pelas razões erradas que o Prof. Galvão de Sousa diz que o modernismo é gnóstico (ou seja, por seu a-gnosticismo), já que fala também do progressismo, que é marxista e, portanto, mais propriamente panteísta, pelas razões mostradas acima. Nisto, o Prof. Galvão de Sousa segue o erro do autor que prefacia.

Acrescente-se ainda que Voegelin afirma claramente (tanto na segunda citação deste trabalho como em suas Autobiographical Reflections) que suas maiores influências no estudo da gnose foram justamente os teólogos modernistas Henry de Lubac e Hans Urs von Balthasar, da "nouvelle theologie" condenada pelo Papa Pio XII na encíclica Humani Generis.

 

9. Conseqüência da contradição: a caricatura da gnose

Certamente foram abusos terminológicos como este de Eric Voegelin que levaram à célebre caricatura de Ioan P. Couliano, citada tanto por Rossbach quanto por Hoeller, e que reproduzimos a seguir:

"Houve um tempo em que eu acreditei que o gnosticismo era um fenômeno bem identificado pertencente à história religiosa da antigüidade tardia. Evidentemente, eu estava pronto a aceitar a idéia de diferentes prolongamentos da gnose antiga, e mesmo a idéia da geração espontânea de visões de mundo nas quais, em épocas diferentes, as características distintivas do gnosticismo ocorrem novamente."

Até aqui, o consenso dos especialistas: a gnose é um fenômeno antigo, com características bem identificadas, que surge, por vezes, pelo contato histórico com pessoas pertencentes a movimentos gnósticos, mas que pode surgir também por um posicionamento pessoal errôneo diante do problema do ser, da contingência e do mal. Porém...

"Eu logo aprenderia, porém, que eu era de fato um ingênuo. Não só a gnose era gnóstica, mas os autores católicos eram gnósticos, os neoplatônicos também, a Reforma era gnóstica, o comunismo era gnóstico, o nazismo era gnóstico, o liberalismo, o existencialismo e a psicanálise eram gnósticos também, a biologia moderna era gnóstica, Blake, Yeats e Kafka eram gnósticos... Eu aprendi a seguir que a ciência é gnóstica e a superstição é gnóstica... Hegel é gnóstico e Marx é gnóstico; todas as coisas e seus opostos são igualmente gnósticos."

(Ioan P. Couliano, "The Gnostic Revenge: Gnosticism and Romantic Literature", in Gnosis und Politik, Jacob Taubes, ed. (Munich: W. Fink, 1984), p. 290; apud HOELLER, [s.p.], negrito nosso).

Assim, não é de surpreender que o já citado Robert Segal, em seu artigo "Gnosticism, Ancient and Modern", aponte a mesma confusão de Voegelin exatamente em Ioan Couliano, cuja conclusão absurda acaba de ser citada. Segal mostra de modo claro e breve como apenas Hans Jonas, dentre os autores que analisa, faz um paralelo adequado entre gnosticismo e modernidade, ao falar dos traços marcadamente gnósticos do existencialismo.

Segal mostra ainda que, além de Voegelin e Couliano, também outros autores cometem o mesmo abuso no emprego do termo "gnose", usando-o para caracterizar movimentos modernos panteístas, como é o caso de Giovanni Filoramo, que cita Voegelin nominalmente em seu A History of Gnosticism. Por isso, Segal conclui: "Singer, Filoramo, Couliano e seus predecessores [Jung e Voegelin] pinçam aspectos diferentes do gnosticismo e da modernidade. Ao avaliarem os antigos com olhos modernos, eles estão projetando no gnosticismo suas próprias esperanças, ansiedades e convicções." (SEGAL, [s.p.]). (Parece-nos que a relação entre Jung e a gnose, proposta por Singer, é um pouco mais complexa que uma mera repetição do erro de Voegelin e seus sucessores, mas deixaremos esta questão para outra ocasião.)

Também é este o caso de Stephen McKnight, cujo breve estudo Gnosticism and Modernity: Voegelin's Reconsiderations in 1976, apresentado no mesmo local e data que o de Rossbach, termina dizendo: "acho que Voegelin percebeu que o termo gnosticismo já fora usado de tantas maneiras diferentes e aplicado a tantos fenômenos diferentes que estava perdendo seu valor teórico" (McKNIGHT, pp. 6-7). Ora, vimos que Voegelin foi justamente um dos maiores colaboradores a este uso abusivo do termo, talvez mesmo visandoobscurecer seu valor teórico, por razões que serão analisadas adiante.

Mendo Castro Henriques conta que nem mesmo o Colóquio de Messina, de 1966, que reuniu vários especialistas sobre o tema da gnose, escapou ileso da confusão voegeliana: "Esta preocupação [do Colóquio] evidencia que a definição e localização do gnosticismo deixara de ser pacífica, em virtude da acumulação de investigações sobre novas vertentes do fênomeno, mormente o relacionamento com a política e a modernidade." (HENRIQUES, p. 137, negrito nosso).

Por fim, é interessante mencionar a conclusão de Edward Moore, autor do verbete "Gnosticism" para a Internet Encyclopedia of Philosophy, após considerar as tentativas de desqualificar o termo "gnose" por parte de Michael Allen Williams, autor de Rethinking Gnosticism: Arguments for Dismantling a Dubious Category. (Basta olhar o nome dos capítulos do livro de Williams, quase sempre em forma de pergunta, para constatar que se trata da mesma confusão dos autores acima. Pois, tentando impugnar a validade teórica do termo "gnose", Williams dá os seguintes títulos aos capítulos de seu livro: "Rejeição anticósmica do mundo ou acomodação sócio-cultural?", "Ódio do corpo ou perfeição do ser humano?", "Elitismo determinista ou teorias inclusivas de conversão?", etc. Evidentemente, só os primeiros elementos destas perguntas são propriamente gnósticos, podendo ser os segundos panteístas.). Assim, Moore conclui, contra Williams e os demais: "Deve ser observado, entretanto, que os Padres da Igreja, como Clemente de Alexandria, Irineu, Orígenes, Hipólito, Epifânio, e mesmo filósofos pagãos como Plotino e Porfírio, que nos preservaram relatos e ocasionalmente alguns documentos originais dos filósofos e teólogos que eles classificavam como 'gnósticos', eram também contemporâneos ou quase contemporâneos de muitas das figuras e escolas que eles criticam e interpretam. Os insights destes escritores, portanto, que viviam e trabalhavam lado a lado e quase sempre em conflito com membros de seitas gnósticas, devem ter prioridade sobre quaisquer tentativas modernas de revisar nosso entendimento do que é o gnosticismo." (MOORE, [s.p.], negrito nosso).

 

10. Outra conseqüência absurda: a ortodoxia é gnóstica, e a gnose é ortodoxa?!

Como disse sabiamente São Pio X, ao condenar a gnose modernista na encíclica Pascendi <http://www.montfort.org.br/documentos/pascendi.html>: "As conseqüências deviam fazêlos recuar; mas, como a audácia é uma das características desses inimigos da Igreja, não há conseqüências de que se amedrontem e que não aceitem com obstinação e sem escrúpulos." Veja-se a seguir a que absurdos será levado Voegelin.

Pois não se trata aqui somente de uma mera confusão de definições, sem maiores conseqüências. Voegelin levará ao extremo a inversão de conteúdo do termo "gnosticismo", chegando ao absurdo flagrante de acusar a Igreja e seu maior Doutor de gnose, ao mesmo tempo em que, como veremos adiante, defende posições e autores gnósticos no sentido clássico - e, a bem dizer, único - do termo!

Ao definir a tal "gnose moderna" como "imposição da ordem do além na realidade", Voegelin não se limita a aplicá-la ao marxismo, por exemplo, que visa estabelecer a utopia comunista, criar o que entende ser o "paraíso na Terra" (em outras palavras, "o além na realidade"). Não, Voegelin vai além e acusa a escolástica de gnose, por interpretar com a razão os mistérios da fé:

"É uma impossibilidade teórica submeter um mistério ritual, como a conversão, a uma 'interpretação' em termos de metafísica aristotélica, como foi feito na doutrina da transubstanciação. Uma vez que este caminho falacioso tenha sido tomado, é apenas uma questão de tempo e circunstância até que metafísicos indignados se rebelem contra uma substância sem acidentes e acidentes sem substância... [A] ascendência [deste caminho] remonta a antes da Reforma, até a invasão metafísica do período escolástico. A confusão iluminista dos símbolos, a inclinação gnóstica de estender a operação do intelecto ao domínio da fé e do mito, começa em problemas específicos do século doze, e entre os pecadores encontramos, talvez inesperadamente, até mesmo Santo Tomás." (Eric Voegelin, History of Political Ideas: vol. IV, pp. 226228, apud MITCHELL, [s.p.]).

Voegelin ataca a doutrina da transubstanciação, e diz que ela causa indignação! Não vamos entrar na questão de mostrar a relação entre razão e fé, e a legitimidade da explicação tomista dos termos dos mistérios da fé, cujo conteúdo não deixa de ser misterioso por causa disso.

O que interessa aqui é verificar que, para Voegelin, há uma "inclinação gnóstica de estender a operação do intelecto ao domínio da fé e do mito". Ora, tal coisa não existe; mais uma vez, é bem o contrário o que acontece na gnose. Como explica Hans Jonas: "Embora a relação entre fé e conhecimento (pistis e gnosis) tenha se tornado um problema importante na Igreja entre os hereges gnósticos e os ortodoxos, não se tratava do problema atual entre fé e razão com o qual estamos acostumados; pois o 'conhecimento' dos gnósticos que contrastava com a fé simples dos cristãos, seja a favor ou contra, não era de tipo racional." (JONAS, pp. 34-37, negrito nosso, itálicos do original).

Isso porque a inteligência, assim como a vontade, são potências da alma. E, como Jonas mostra adiante, segundo os gnósticos: "A alma é parte da ordem natural, criada pelo demiurgo para prender o espírito estrangeiro..." (ibid., p. 333) E em outra parte: "Mas o dualismo gnóstico vai além desta posição de indiferença. Pois considera a própria 'alma', o órgão espiritual pelo qual o homem pertence ao mundo, como - não menos que o seu corpo - originada pelos poderes cósmicos e portanto como um instrumento do domínio destes sobre seu verdadeiro, mas submerso, eu. (...) O desprezo pelo cosmos entendido radicalmente inclui o desprezo pela psyche." (ibid., p. 269).

O que não poderia ser diferente, já que é por meio da razão que o homem compreende o mundo, cuja ordem e cognoscibilidade são consideradas prisões pelos gnósticos: "A falha da natureza não está em alguma deficiência da ordem, mas sim na completude penetrante desta ordem. Longe de ser caos, a criação do demiurgo, o antípoda do conhecimento, é um sistema compreensível governado por leis. Mas a lei cósmica, antes considerada [pelos gregos] como a expressão de uma razão com a qual a razão do homem pode se comunicar no ato cognitivo e que ele pode tornar sua na emolduração de sua conduta, é vista agora [pelos gnósticos] apenas em seu aspecto de compulsão que frustra a liberdade do homem. O logos cósmico dos estóicos é substituído por heirmamene, o opressivo destino cósmico." (ibid., p. 253).

Quem explica essas coisas é Hans Jonas, um dos maiores especialistas em gnose, conforme o próprio Voegelin reconhece, como foi visto na segunda citação do presente trabalho. De tudo isso se vê o quanto é absurdo afirmar que a gnose queira recuperar o mundo, e ainda por cima por meio da razão, como pretende Eric Voegelin. Como "reforma do mundo", a gnose pode apenas pretender a destruição da ordem cósmica como tal, já que esta é obra de de um demiurgo mau.

Toda essa questão ficará ainda mais clara pela seguinte explicação de Jonas sobre em que consiste o conhecimento gnóstico: "Gnose significava antes de tudo conhecimento de Deus, e pelo que já dissemos a respeito da transcendência radical da divindade, segue-se que o "conhecimento de Deus" é o conhecimento de algo naturalmente incognoscível e portanto não se trata de uma condição natural. (...) [Na gnose] o conhecimento como um ato mental é imensamente diferente da cognição racional da filosofia. Por um lado, é intimamente ligado à experiência revelatória, de modo que a recepção da verdade, por meio de lendas sagradas e secretas ou por meio de uma iluminação interior, substitui o argumento racional e a teoria (embora esta base extra-racional possa depois dar oportunidade à especulação independente)..." (ibid., pp.

34-35, negritos meus).

Acima, Jonas explica que o gnóstico tem uma "experiência revelatória", pela qual obtém o conhecimento do que lhe é naturalmente incognoscível (a gnose). Disso se segue que as várias doutrinas, credos e dogmas são meras formulações que vêm depois desta "iluminação interior". E, por isso, servem no máximo como referência para que uma outra pessoa refaça a tal "experiência revelatória" que deu origem a estas fórmulas religiosas, apreendendo assim seu sentido profundo, esotérico e inefável.

Negando a razão ou, quando muito, subordinando-a a esta pretensa "intuição", dita "supra-racional", a gnose também nega ou relativiza o valor das formulações lógicas (logo, racionais), em palavras e conceitos, dessa suposta experiência direta com a divindade inefável que os gnósticos alegam ter.

É também por tudo isso que a gnose é sempre sincrética, considerando as religiões como diferentes formulações, necessariamente insuficientes, de uma mesma revelação interior. Como os místicos seriam aqueles que atingem esta "experiência" (a gnose), todas as religiões - para os gnósticos - coincidiriam na mística. Falar em Igreja só faria sentido se este termo designasse uma "Igreja Espiritual", que abrangesse os gnósticos de todas as religiões, os "místicos" ou "pneumáticos", que é como são chamados classicamente. O que acaba de ser descrito, sucintamente, a partir de observações de Jonas sobre a natureza do conhecimento gnóstico e explicitando algumas das conseqüências lógicas destas observações, se aplica perfeitamente não só aos movimentos gnósticos dos primeiros séculos, como também à teologia de Lutero, dos idealistas alemães, da heresia modernista condenada por São Pio X e também de muitos - senão todos - autores ditos "espiritualistas", opostos aos materialistas acusados de gnose por Voegelin. Daí que possam todos ser chamados adequadamente de gnósticos, no sentido estrito do termo, o que se aplica também... à filosofia do próprio Eric Voegelin.

 

11. Eric Voegelin contra o Catolicismo

Vai além dos propósitos deste estudo expor as diferenças radicais que existem entre a mística católica e as pseudo-místicas das seitas, vulgarmente conhecidas como "religiões". Limitemo-nos a constatar que as teses acima foram condenadas repetidamente pela Igreja Católica.

Por isso, não é de estranhar que Eric Voegelin se oponha à Igreja de Roma, algo que todos os estudiosos de sua obra testemunham.

Bill McClain mostra como Voegelin entendia a história da religião cristã: "Neste ponto, todos se perguntarão sobre o caráter da fé religiosa de Voegelin. Ele se intitulava um 'Cristão pré-Reforma' e um 'humanista Cristão', mas ele não era membro de nenhuma congregação. Ele dizia que, assim como a história da filosofia era a história de seu descarrilamento, o mesmo acontecia com a religião Cristã." (Bill McCLAIN, "Advice for those who want to read Eric Voegelin", <http://www.salamander.com/~wmcclain/evadvice.html>).

Ou seja, a Igreja Católica seria para Voegelin uma corrupção do Cristianismo. (O mesmo, aliás, que sempre disseram todos os hereges). Isso porque, para Voegelin, a intuição "degenera" em dogma, alegação esta que Voegelin compartilha justamente com os gnósticos de todos os tempos, e com os modernistas atuais. Também Mendo Castro Henriques, que dedica todo um capítulo de sua tese sobre Voegelin à relação deste com o Cristianismo, conclui: "Avaliado por critérios de obediência a qualquer confissão cristã, [Voegelin] seria

heterodoxo, dada a sua visão da Igreja visível e a sua afirmação de que os dogmas são uma forma secundária de fé... não participava da vida sacramental de qualquer Igreja; e talvez considerasse que o discurso filosófico se deve calar acerca da fé íntima." (Mendo Castro HENRIQUES, "Ser ou Não Ser Cristão", in A Filosofia Civil de Eric Voegelin, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1994, p. 170). Bruce Douglass acrescenta que "o que falta [no pensamento de Voegelin] é o sentido do Evangelho no sentido especificamente Cristão" (Bruce Douglass, "A Diminished Gospel: A Critique of Voegelin's

Interpretation of Christianity", in Eric Voegelin's Search for Order in History, Stephen A. McKnight ed. (Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1978), p. 146, itálicos do original; apud MITCHELL, nota 25). Também David Gordon, do Mises Institute, ao tratar da visão que Voegelin tinha tanto do Cristianismo quanto do judaísmo, afirma: "ele apresenta o que a meu ver é uma descrição distorcida destas religiões." (GORDON, [s.p.], negrito nosso).

Se Voegelin às vezes parece ter o Cristianismo em alta estima, é pelas razões mais estapafúrdias: "É indubitável que Voegelin elege o cristianismo como o mais excelente simbolismo de revelação. Em rigor, considera-o uma concepção trinitária e não monoteísta, porquanto combina em um único

símbolo experiências diferentes de teofania." (HENRIQUES, p. 169, negritos nossos). Um modernista não diria diferentemente.

Nos escritos do próprio Voegelin, ademais, ele não esconde sua posição. Voegelin zomba da Religião Católica abertamente, mostrando como ele engana os religiosos que procuram sua orientação, e tratando Nossa Senhora e a Santa Igreja com a maior irreverência:

"O 'cristão pré-Reforma' é uma piada. Eu nunca escrevi algo assim. Estas brincadeiras aparecem porque eu freqüentemente tenho de afastar pessoas que querem me 'classificar'. Quando alguém quer que eu seja um católico ou um protestante, eu lhe digo que sou um 'cristão pré-Reforma'. Se quiser me definir como um tomista ou agostiniano, eu lhe respondo que sou um 'cristão pré-Nicéia'. E se quiser me definir ainda antes, eu lhe digo que até a Virgem Maria não era membro da Igreja Católica. Eu tenho uma boa quantidade de respostas prontas para pessoas que me chateiam após uma palestra; e assim elas são persuadidas de que tem informação autêntica sobre minha 'posição'." (Eric Voegelin, Carta a John East, 18 July 1977, Box 10, File 10.23, apud ROSSBACH, p. 36).

Como se isso não bastasse, veja-se a seguinte afirmação que Voegelin faz num de seus livros, com a qual não há herege que discorde, desde os gnósticos da antigüidade, até os modernistas que, hoje em dia, dizem exprimir o espírito do Concílio Vaticano II: "a liderança da Igreja encara a tarefa de espiritualizar a idéia da igreja universal de tal maneira que seja independente do acidente romano" (Eric Voegelin, History of Political Ideas: vol. IV, p. 224, negrito nosso, apud MITCHELL, [s.p.]).

O próprio Henriques, favorável a Voegelin, não pode evitar notar a semelhança entre a posição gnóstica e a de Voegelin:

"O gnóstico supõe que a natureza humana é inerentemente paradoxal e desordenada; mas a tensão entre verdade e inverdade [defendida por Voegelin] não colocará também o homem num paradoxo inerente? É ortodoxo insistir que a revelação divina é um mistério cuja verdade não pode ser compreendida nesta vida pelo homem; mas é polêmico descrever [como Voegelin faz] o caráter incontornável da tensão entre a verdade e a inverdade, como se a tentativa de encontrar a verdade e separá-la da inverdade destruísse a existência humana. Voegelin... escreve sobre a posse assassina da verdade, como se houvesse mal em livrar-se do erro através de dogmas que se opõem às falsas certezas que desafiam a verdade divina." (HENRIQUES, p. 168)

Há outros dois estudiosos, porém, que são mais diretos. O já citado David Gordon, do Mises Institute, encerra sua breve resenha sobre Voegelin afirmando taxativamente: "A gente se pergunta se, para Voegelin, o Deus de que ele tanto fala é um ser pessoal. R.J. Rushdoony acertou na mosca quando caracterizou o próprio Voegelin como um gnóstico." (GORDON, [s.p.], negrito nosso).

 

12. Eric Voegelin contra o Deus pessoal

Quanto a esta questão de Deus ser ou não pessoal para Voegelin, há algumas passagens de seus escritos que a elucidam bastante. Na primeira que citaremos, Voegelin abusa totalmente e sem qualquer fundamento das afirmações de Santo Tomás sobre a legitimidade da teologia negativa (ou apofática), e afirma o absurdo de que o Doutor Angélico defenderia a existência de um Deus impessoal e - pasmem! - "tetragramático". Será que, para Voegelin, Santo Tomás seria um cabalista? É claro que o erudito Voegelin, aqui, não cita fonte alguma para esta sua afirmação, tão ousada quanto descabida.

A apofase é facilmente exagerada, o que leva a cair na distinção gnóstica entre Deus e Divindade, respectivamente Ser e Não-Ser, de modo que o Ser (o demiurgo, que o Antigo Testamento chama de Javé e que é o Criador do mundo) teria emanado do Não-Ser, o Deus desconhecido, o Deus absconditus do qual Voegelin fala favoravelmente a seguir:

"Na análise de Santo Tomás, por exemplo, aparece o Deus pessoal que é apropriadamente chamado de 'Deus', mas atrás do Deus que pronuncia seu Verbo e ouve a palavra da oração, paira o Deus

tetragramático, sem nome e impessoal." (Eric Voegelin, Order and History vol. V: In Search of Order, The Collected Works of Eric Voegelin, Volume XI,Ed. Ellis Sandoz (University of Missouri Press, 2000), p. 83, negrito nosso.)

Um dos frutos desta concepção errônea e gnóstica de Deus é a negação da Providência. Isso explica como Voegelin pode chamar o Profeta Isaías de feiticeiro, dizendo que sua recomendação ao rei de que confiasse em Deus é um ato de magia! É ver para crer:

"Na profecia de Isaías encontramos a esquisitice [sic!] de que Isaías aconselhou o rei de Judá a não confiar nas fortificações de Jerusalém e na força de seu exército, mas sim em sua fé em Javé. Se o rei tivesse fé verdadeira, Deus faria o resto e produziria uma epidemia ou pânico entre os inimigos, e o perigo à cidade seria dissolvido. O rei teve bom senso o suficiente para não seguir o conselho do profeta, e sim confiar nas fortificações e nos equipamentos militares. Mesmo assim, havia a afirmação do profeta de que por meio de um ato de fé a estrutura da realidade poderia ser efetivamente mudada. Ao estudar este problema e tentar entendê-lo, minha primeira idéia, é claro, foi que o profeta entregou-se à magia, ou ao menos acreditava em magia. Isto não seria surpreendente, pois na história de Israel era a função dos profetas, por exemplo, guiar a mão do rei para atirar uma flecha contra o inimigo numa operação mágica que resultaria em vitória. (...) Eu não usei o termo magia para a prática aconselhada por Isaías, mas inventei um novo termo para caracterizar a peculiar crença mágica sublimada numa transformação da realidade por meio de um ato de fé. (...) Não estou certo de que hoje eu faria essa concessão, pois este tipo de fé é de fato magia, embora tenha-se que distinguir esta variedade 'sublimada' de uma operação mágica mais primitiva." (Eric Voegelin, Autobiographical Reflections, pp. 68-69, negritos nossos, itálico do original).

A crença num Deus impessoal explica também a simpatia de Voegelin pelo hinduísmo: "É interessante notar, neste contexto, que Voegelin comentou em pelo menos duas ocasiões que seu interesse por 'problemas de compreensão religiosa' foi provocado pela primeira vez pelas conferências de Paul Deussen sobre as Upanixades, em Viena, em 1918/19. Deussen, um amigo de Nietzsche, foi tradutor das upanixades e um dos maiores especialistas em filosofia indiana. O texto favorito de Voegelin das upanixades era o Brihadaranyaka, pois era um belo exemplo da via negativa do 'misticismo intelectual'." (ROSSBACH, p. 25).

Um exemplo prático do "misticismo" defendido por Eric Voegelin será visto logo mais, no capítulo 14.

 

13. Voegelin mudou de opinião sobre a gnose?

Há quem diga que Voegelin mudou de opinião, mais tarde, sobre o gnosticismo. Rossbach, porém, que dedicou seu trabalho a analisar justamente esta questão, nega que Voegelin tenha mudado:

"O tema do 'gnosticismo' perpassa a obra de Eric Voegelin desde A Nova Ciência da Política até In Search of

Order [o último livro de Voegelin]. Claro que houve qualificações, revisões e ajustes... Mas Voegelin jamais renunciou à sua crença de que por trás da noção de gnose, ou gnosticismo, havia um problema espiritual muito sério, perene, que de algum modo, na era moderna, se elevara ao nível de fenômenos de massa sociais e políticos." (ROSSBACH, p. 12).

O que aconteceu foi que Voegelin passou a acrescentar outros elementos, além do gnosticismo, como componentes da desordem moderna. São todos elementos que já eram mencionados nos primeiros livros de Voegelin, nos quais entretanto eram vistos como variantes da gnose. A questão aparece nitidamente num diálogo epistolar entre Voegelin eBishirjian:

"(...) 'E hoje eu teria de dizer que o Gnosticismo é um componente na estrutura histórica da modernidade, mas não mais do que um. De igual importância, no fim das contas, são os apocalípticos, o neoplatonismo, o hermetismo, a alquimia e a magia. (...)'

(Voegelin, Carta a Robert J. Bishirjian, 8 September 1976, Box 8, File 8.18).

Em sua resposta Bishirjian perguntou se 'estes vários movimentos [poderiam] ser espécies do gênero Gnosticismo' (Carta de Robert J. Bishirjian to Voegelin, 14 September 1976, Box 8, File 8.18). Mas Voegelin discordou:

'A literatura sobre magia, neoplatonismo, apocalípticos, cabala, hermetismo e alquimia está crescendo prodigiosamente e pode ser lida por quem quer que se interesse. Todos estes fatores são componentes da atual desordem intelectual, assim como o Gnosticismo. [...] Eu seria cuidadoso quanto a usar o termo "Gnosticismo" como um gênero, abrangendo os outros movimentos.' (Voegelin, Carta a Robert J. Bishirjian, 21 October 1976, Box 8, File 8.18)." (ROSSBACH, p. 11)

Três constatações devem ser feitas a partir das citações acima.

Primeiro, que Voegelin cita todos estes novos elementos como "componentes da atual desordem intelectual", ou seja, sua influência é vista como tão perniciosa quanto à da gnose. Isso deve ser enfatizado porque sempre há aqueles prontos a defender uma suposta "boa alquimia", "cabala cristã", "astrologia escolástica", assim como uma "boa gnose".

Em segundo lugar, Voegelin limita-se a recomendar cuidado, e de fato não afirma que o Gnosticismo não seja um gênero que abrange os outros movimentos citados.

Em terceiro lugar, é no mínimo curiosa a displicência com que Voegelin cita estes "novos elementos", pois mesmo no curto intervalo entre a primeira e a segunda cartas a Bishirjian, já há um elemento que só aparece na segunda: a cabala.

(Não cabe aqui demonstrar até que ponto cada uma destas correntes é gnóstica. Gershom Scholem afirma em diversos livros que a cabala é o gnosticismo judaico; sobre oneoplatonismo, Puech tem um ensaio sobre os pontos de encontro entre Plotino e os gnósticos, não obstante serem eles criticados por este neoplatônico; sobre o hermetismo e a gnose, tratam Jonas e Puech, baseando-se principalmente na obra clássica de Festugière; sobre os "apocalípticos", distinguindo precisamente entre milenarismo e utopia, e mostrando sua relação com o gnosticismo, o Prof. Orlando Fedeli tem o trabalho definitivo, Conceituação, Causas e

Classificação das Utopias, que se encontra no site da Associação Cultural Montfort

(http://www.montfort.org.br/cadernos/utopia1.html); o mesmo trabalho tem referências sobre a magia e a gnose, relação esta que se encontra em todos os livros sobre o assunto; finalmente, sobre os pressupostos gnósticos em que se baseiam tanto a alquimia como as demais pseudociências esotéricas (astrologia, numerologia, etc.), são seus próprios defensores que o afirmam, como os guénonianos Titus Burckhart e Serge Hutin, nos livros que dedicam ao assunto. O livro do Prof. Orlando Fedeli mencionado na apresentação deste trabalho contém um capítulo revelador sobre esta questão.)

Mas esta mudança de enfoque, sem maiores explicações, não é difícil de entender, ao se verificar as posições gnósticas que o próprio Voegelin adotou, como vimos brevemente e como qualquer análise de sua filosofia mostra com clareza, e também tendo em mente uma constatação importante de Rossbach sobre o caráter de Voegelin: "É verdadeiramente notável como Voegelin, durante a vida, e com muito sucesso, tentou se esconder por trás de uma cortina de fumaça de declarações nas quais ele nega a responsabilidade da autoria." (ROSSBACH, p. 34) .

 

14. A pseudomística de Eric Voegelin

Para este trabalho não ficar teórico demais, encerremos mostrando com exemplos qual é afinal a mística defendida por Voegelin.

Rossbach diz ser útil, para entender Voegelin, "compará-lo à personagem principal e ao título de um de seus romances prediletos, O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. A admiração de Voegelin por Musil é bastante conhecida. (...) Voegelin respeitava Musil como um 'observador da realidade incrivelmente cuidadoso' e como um 'mestre dos problemas intelectuais envolvidos'. Musil, por sua vez, tinha grande respeito pela obra de Voegelin; os dois se encontraram muitas vezes em Viena." (ROSSBACH, p. 36). Assim, Rossbach mostra a semelhança entre Voegelin e Ulrich, protagonista do romance O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil:

"Ulrich identifica aqui, sob as realidades secundárias que dominam seu cenário social e, de fato, sob os simbolismo religiosos, a verdade e a realidade primeira do misticismo. (...) Ulrich teria poucas dificuldades de entender os escritos de Voegelin sobre as equivalências de experiências. Por conseguinte, os dois também compartilham de uma peculiar 'falta de qualidades'... Ulrich, como Voegelin, é um 'homem sem qualidades' porque, para usar as palavras de Voegelin citadas acima, ele não insiste em 'achar suas coordenadas absolutas em sua nação, como um marxista, um liberal, etc.'. Ambos não prendem suas identidades ao que não passa das 'últimas palavras de cada religião histórica'. Ambos sabem que a 'realidade da fé' está além dos símbolos. Um comentador caracterizou Ulrich como 'um homem de fé que por acaso não acredita em nada', e nós sugerimos que a via negativa de Voegelin foi dirigida pelo mesmo problema." (ROSSBACH, p. 37, negrito nosso).

Como se o que foi dito não fosse suficiente, Rossbach ainda conta que a inspiração do livro de Musil é ninguém menos que o famoso escritor judeu Martin Buber, especialista em hassidismo (sistema gnóstico baseado na cabala luriânica): "O romance de Musil é entremeado com mais de trezentas citações da coletânea de Martin Buber intitulada Ecstatic Confessions: The Heart of Mysticism, publicada em 1909. A biblioteca de Ulrich, na verdade, vem das Ecstatic Confessions de Buber." (ROSSBACH, p. 37). Ainda mais interessante é o fato de Voegelin citar Henri Bergson e Jean Bodin como os dois grandes místicos da modernidade: "Nos tempos modernos, explica Voegelin, o misticismo se tornou duas vezes a fonte de tentativas de encontrar o caminho de volta do dogmatismo para a racionalidade do pensamento: primeiro por Bodin, no século 16, 'numa situação de dogmatomaquia teológica'; a segunda vez por Bergson no século 20, 'numa situação de dogmatomaquia ideológica'. O misticismo de Bodin evita o descarrilamento num 'dogma literalista' pela manutenção do equilíbrio entre o conhecimento dos símbolos e o conhecimento do que está além deles. Este balanço entre os domínios do silêncio e da expressão caracteriza a natureza da 'tolerância'. (Eric Voegelin, Was ist politische Realität?, pp. 333-340)" (ROSSBACH, pp. 24-25). Assim, Voegelin supõe um conhecimento que está além dos dogmas e que seria superior a eles. Isto é modernismo. Esse conhecimento seria superior a qualquer credo histórico concreto, inclusive o da Igreja Católica. Esse conhecimento seria então comum a todas as religiões. Estas idéias fazem de Voegelin não só um gnóstico, mas também um modernista. O que não é de surpreender num homem que admite ter sido muito influenciado por padres modernistas como Balthasar e Lubac.

Voltemos a Bergson e Bodin. Já que Voegelin afirma ser Bodin superior, concentremo-nos nele, para não tornar este trabalho mais longo do que já está, embora houvesse muito o que dizer sobre Bergson: "Eu duvido que Bergson tenha a mesma estatura de Bodin como místico, mas esses dois espiritualistas franceses são para mim as figuras representativas para a compreensão da ordem em tempos de desordem intelectual." (Eric Voegelin, Autobiographical Reflections, p. 114).

Voegelin afirma ter estudado Bodin cuidadosamente, e repete a seguir por que o "místico" lhe pareceu tão bom (e os modernistas aplaudem...): "No século dezesseis, quando havia oito guerras civis religiosas na França, Jean Bodin reconheceu que o conflito entre as várias verdades teológicas no campo de batalha só poderia ser apaziguado pela compreensão da importância secundária da verdade doutrinária em relação ao insight místico. (...) Meu estudo cuidadoso da obra de Bodin no começo dos anos trinta me deu minha

primeira compreensão total da função do misticismo numa época de desordem social." (Eric Voegelin, Autobiographical Reflections, p. 113, negrito nosso).

Rossbach cita a última obra de Bodin como fonte deste "insight" admirado por Voegelin: "No final do Colloquium Heptaplomeres, de Jean Bodin, Voegelin encontra refletido o insight de que 'o simbolismo não passa da última palavra de cada religião histórica; a realidade da fé através da conversio está além dos símbolos'. (Eric Voegelin, Was ist politische Realität?, pp. 337)" (ROSSBACH, p. 16).

Vejamos então, para entender melhor a tal "tolerância" que Voegelin atribui à "alta estatura mística" de Bodin, quem foi ele e, mais especificamente, qual o conteúdo deste seu último livro. Para isso, recorreremos ao capítulo dedicado a Jean Bodin pelo estudioso D.P. Walker, em sua obra clássica sobre a magia na Renascença, Spiritual & Demonic Magic - from Ficino to Campanella:

Para começar, Bodin foi um apóstata: "No final de sua vida, Bodin já deixara de ser um cristão e acreditava num tipo de judaismo arcaico e simplificado." (WALKER, p. 171)

Walker resume a última obra de Bodin, da qual Voegelin tirou o tal "insight" citado acima: "Heptaplomeres é uma busca conduzida por um católico, um luterano, um calvinista, um pagão, um judeu, um maometano e um naturalista pela Urreligion, o núcleo arcaico da verdade religiosa, que está incluído em todas as religiões deles, e que, restaurado à sua simplicidade original, reunirá a todas. Este núcleo é finalmente encontrado no decálogo, que é 'ipsissima lex naturae' (1). Os princípios pelos quais esta busca é dirigida, assim como sua conclusão, são judaicos: a verdadeira religião deve ser absolutamente monoteísta e deve fornecer uma Lei, um sistema ético rígido e preciso baseado em recompensas e punições. O cristianismo fracassa nas duas coisas e é rejeitado. (2)" (WALKER, p. 172, negritos nossos)

Na nota (1), Walker conta que, a partir deste momento da narrativa, este livro de Bodin "é uma defesa do judaísmo como a verdadeira religião natural", o que confirma que ele de fato apostatou para o judaísmo. Mais reveladora ainda é a nota (2), na qual Walker conta que, neste livro, Jean Bodin simplesmente: - defende a impossibilidade da Encarnação,

-  ataca a Santíssima Trindade,

-  nega o pecado original,

-  nega a Redenção,

-  opõe-se à ética dos Evangelhos,

-  ataca a autenticidade destes, baseando-se em Marcion, herege do séc. III condenado pelos Santos Padres (S. Irineu, S. Justino, S. Hipólito, S. Jerônimo, etc.), cujo sistema gnóstico, aliás, é descrito por Hans Jonas no capítulo 6 de seu The Gnostic Religion.

Encerremos com a seguinte passagem, ainda sobre a mesma obra e o mesmo autor, que fala por si só: "Os salmos hebreus são os únicos hinos antigos bons; todos os falantes em Heptaplomeres conseguem se unir nestes cantos de louvor ao Deus Único, enquanto todos os outros hinos são endereçados a 'deuses' inferiores, que na verdade são criaturas - e aqui Bodin dá uma lista de deuses pagãos, mas terminando com Jesus, Maria e os santos." (WALKER, p. 175, negrito nosso). Após esta citação, nada mais resta a dizer sobre Jean Bodin... ou sobre Eric Voegelin.

 

15. APÊNDICE: Ecos no Brasil

"Contento-me em não ser um gnóstico

na acepção tradicional e voegeliniana do termo."

(Olavo de Carvalho, Fé, ciência e ideologia: o fundo da questão Fedeli, 18.07.2001 apud <http://www.montfort.org.br/perguntas/olavo7.html#fe>, negrito nosso.) Contra-Reforma "gnóstica"?! Santos "idiotas"?!

Aqui no Brasil, um dos principais divulgadores de Eric Voegelin é o astrólogo-jornalista-escritor Olavo de Carvalho, que vê influências gnósticas até em Santo Inácio de Loyola e no Concílio de Trento (!), baseando-se nos mesmos pressupostos falsos que levaram Voegelin a ver gnose em ninguém menos que Santo Tomás de Aquino. (O que é uma conseqüência lógica, já que o Concílio de Trento foi baseado justamente em Sto.

Tomás.)

"Eu acho, e isto é uma teoria minha, eu acho que várias mudanças que houve na Igreja Católica a partir sobretudo da Reforma, eu acho que houve uma influência gnóstica. Eu acho que houve uma influência gnóstica na Companhia Jesuítica, por exemplo. Mas essa é uma hipótese, eu não tenho certeza disso. (...) Então, eu sei que, quanto a um católico atual, um católico conservador atual, você fala: 'Olha, houve uma influência gnóstica no Concílio de Trento'. O cara quer te matar, porque isso é o contrário de tudo o que ele pensa. E ele vai dizer: 'Olha, eu sou aqui um tridentino, então...'. E eu digo: 'Espere aí. Mas tinha negócio gnóstico lá.' Eu não estou dizendo que teve, mas que parece que teve." (Olavo de Carvalho, Aula de 10.02.2001 do Seminário de Filosofia de São Paulo, não revisada pelo autor, Fita 1, Lado B, negritos nossos).

Se cito esta aula assim, transcrevendo-a a partir de sua gravação, mesmo sem ter sido revisada pelo autor, é por três motivos: primeiro, porque eu estava presente neste dia, convidado por Olavo de Carvalho devido à polêmica que se iniciava, mas ainda não tinha os meios de lhe responder então, o que faço agora; segundo, porque esta aula foi gravada, com autorização de Olavo de Carvalho, também por outras três ou mais pessoas, sem ligação comigo, de modo que fica fácil aos outros conferi-la, sem contar que essas coisas já foram ditas também em outras ocasiões e não são nenhuma novidade a seus alunos; terceiro, porque o próprio Olavo de Carvalho encoraja seus alunos a se responsabilizarem pela transcrição de suas aulas, e é isto que acabo de fazer - como ex-aluno, bem entendido - tendo certeza de não ter distorcido suas palavras nem as tirado de contexto: "Ser capaz de assumir a responsabilidade científica por uma transcrição assinala o término da fase de absorção passiva e o ingresso no efetivo aprendizado da vida intelectual." (Olavo de Carvalho, "Considerações sobre o Seminário de Filosofia", 01.01.2000).

Além do mais, tal citação não só mostra o efeito da influência de Voegelin que é objeto deste estudo, como também justifica a seguinte declaração de Olavo de Carvalho, em entrevista reproduzida em seu site, na qual chama os Bispos do supracitado Concílio dogmático de "idiotas", incluindo assim santos como São Carlos Borromeu, por ter participado do Concílio, e também São Pio V, por ter sancionado os decretos tridentinos: "O declínio da intelectualidade católica dominante da época é terrível - se você compara os intelectuais dos séculos XII e XIII com aqueles idiotas do Concílio de Trento, é algo absolutamente deplorável. Há uma queda do nível das universidades ocasionada pela sua politização, por culpa dos papas e dos reis. Com a restauração na Alemanha [?], a universidade conserva uma imensa autonomia, possibilitando o surgimento do movimento notabilíssimo que foi o romantismo e o idealismo alemão. Filho direto da liberdade, da não interferência dos poderes externos na universidade." (Entrevista de Olavo de Carvalho à Revista Digital, 22.03.2001, <http://www.olavodecarvalho.org/textos/redigital.htm>, negritos nossos).

E contrapõe aos santos da Contra-Reforma nada menos que o movimento principal da modernidade gnóstica: o romantismo alemão! Já vimos citações do próprio Voegelin confirmando isto, baseando-se no discípulo de Hegel e especialista em gnose Ferdinand Christian Baur. Acrescentemos aqui uma declaração de Georges Gusdorf, cuja autoridade sobre o Romantismo dispensa comentários:

"O Romantismo é uma renascença gnóstica (...) Schelling é um gnóstico, cujas convicções se desenvolvem à medida que ele avança em idade, da mesma forma Baader; aNaturphilosophie impõe à pesquisa científica códigos gnósticos. Na França, em seqüência à de Saint Martin e de Fabre D’Olivet, a Gnose triunfa nos escritos de Ballanche; ela sustenta o gênio poético de Victor Hugo, ela está presente no

Lamartine das Visões e no Nerval dos Iluminados." (G. Gusdorf, Le Romantisme, Payot, Paris, 1993, I vol., p.

512;apud Prof. Orlando Fedeli, As Três Revoluções na Arte,

<http://www.montfort.org.br/cadernos/3revolucoes.html>, negrito nosso).

Já que Gusdorf menciona Schelling, convém aqui citar novamente a estima que Olavo de Carvalho tem por este gnóstico. Em seu livro O Jardim das Aflições, ele chega a parodiar Nosso Senhor Jesus Cristo para promover o herege Schelling: "Em verdade vos digo, filhinhos: Schelling era muito grande, et tenebrae non comprehenderunt eum" (Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. ed., p. 179, nota 127).

Além de Gusdorf, citemos também Simone de Pétrement, famosa estudiosa de gnose e ela mesma discípula da gnóstica Simone Weil, afirmando que o Romantismo é totalmente gnóstico: "Nós dissemos que os gnósticos são românticos; nós poderíamos dizer igualmente que o Romantismo é gnóstico." (Simone de Pétrement, Le Dualisme chez Platon, les Gnostiques et Manichéens, PUF, Paris, 1947, p. 344; apud Prof. Orlando Fedeli, As Três Revoluções na Arte, <http://www.montfort.org.br/cadernos/3revolucoes.html>, negrito nosso).  

O panteísmo é gnóstico?!

Mas o eco mais interessante do erro voegeliano se encontra no principal dentre os livros publicados de Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições. (Curiosamente, Olavo de Carvalho diz que escreveu este livro antes de ler a obra de Eric Voegelin, mas o erro de ambos é idêntico, como se verá a seguir.) Nele, há um capítulo intitulado "A Revolução Gnóstica", em que Olavo de Carvalho, ao se propor a definir a gnose, acaba definindo o panteísmo:

"Não cabe aqui entrar numa descrição aprofundada do fenômeno gnóstico, de cuja amplitude e variedade, quase alucinantes, somente estudos volumosos podem, de longe, dar conta. Mas não creio errar ao assinalar, como pontos comuns a uma ampla variedade de escolas gnósticas, a religião cósmica, de um lado, a sacralização da sociedade (ou do Estado), por outro." (Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. ed., É Realizações, p. 195, negrito nosso, itálicos do original).

Ora, a gnose é justamente a religião anticósmica, que por isso rejeita tanto a sociedade quanto o Estado. Isso já foi visto, e é confirmado claramente por Hans Jonas no breve trecho a seguir, que não custa citar novamente:

"Nem todo o Corpus [Hermeticum] pode ser considerado como uma fonte gnóstica: grandes partes dele respiram o espírito de um panteísmo cósmico muito distante da denúncia violenta do universo físico tão característica dos gnósticos." (Hans Jonas, "The Poimandres of Hermes Trismegistus", in The Gnostic Religion, p. 147, negrito nosso).

Assim, fica explicada também a confusão terminológica que leva Olavo de Carvalho, numa das aulas sobre Aristóteles publicadas em seu site, a dizer simplesmente que... o panteísmo é gnóstico! A contradição que vimos em Eric Voegelin, ao chamar do mesmo nome tanto uma coisa quanto o seu oposto, aparece aqui de modo indisfarçado:

"Existem duas maneiras de perverter o sentido do real. Uma é isolando uma parte; outra, empastelando tudo no ‘todo’. Então, de um lado temos o Panteísmo. A idéia de que tudo é Deus, sem distinção, é gnóstica. E a idéia da separação absoluta também é gnóstica." (Olavo de Carvalho, Pensamento e Atualidade de Aristóteles, Quarta Aula, 5 de abril de 1994, <http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/pensaris4_2.htm>, negritos nossos).

E, tanto aqui como no caso de Eric Voegelin, não se trata de uma mera confusão terminológica sem maiores conseqüências, pois esta confusão é usada pelos autores em questão para escamotear sua própria gnose, de modo que afetam condenar a gnose ao mesmo tempo em que, de fato, a defendem, limitando-se a condenar o panteísmo. Isso quando não incluem a Religião Católica em sua condenação da gnose, como já os vimos fazer. Pois note-se que a expressão "separação absoluta" é usada, na passagem acima, de modo equívoco, não podendo ser tomada como uma condenação da gnose por Olavo de Carvalho; muito pelo contrário, se significa a absoluta transcendência de Deus em relação ao mundo, que é dogma Católico, então Olavo de Carvalho estaria mais uma vez dizendo que o Catolicismo é gnóstico, à semelhança de Voegelin.

 

Antropologia gnóstica... contra a gnose?!

Voltando ao livro O Jardim das Aflições, vemos que Olavo de Carvalho vai mais longe: no mesmo momento em que alega estar condenando a gnose, defende uma interpretação da história baseada... nas categorias da antropologia gnóstica clássica!

Pois a gnose prega que o ser humano tem uma natureza tripartida: além de corpo (hylé) e alma (psiché), o homem teria também uma partícula divina presa no âmago de seu ser: o "espírito" (pneuma). Por isso, a humanidade se dividiria em três classes de seres: os "hílicos", nos quais predomina o corpo, os prazeres sensuais, e que estão todos condenados; os "psíquicos", nos quais predomina a razão, que no máximo chegam ao "exoterismo" das religiões, e que têm por isso alguma chance de "salvação"; e finalmente os "pneumáticos", os "libertados pelo conhecimento", os que se livraram de todo apego à matéria (para eles a alma também é material, feita de uma suposta "matéria sutil"); estes últimos são os próprios gnósticos. Assim, Olavo de Carvalho interpreta a história como uma luta entre duas forças: a da necessidade cega e a da razão prometéica, ou seja, entre "hílicos" e "psíquicos"! Usando simbolismo inspirado no gnóstico William Blake, Olavo de Carvalho identifica estas duas forças, respectivamente, com os demônios Leviatã e Behemot:

"COSMOS versus HUMANIDADE

LEIS FÍSICAS versus LEIS DA RAZÃO

EXPERIÊNCIA versus PENSAMENTO

NATUREZA versus HISTÓRIA

MECANICISMO versus VITALISMO

Nature versus Nurture

Behemoth versus Leviatã"

(Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. ed., p. 199).

Acrescentemos nós, esclarecendo a oposição:

Panteísmo sensual versus Panteísmo racionalista

Hílicos versus Psíquicos

Então, deste duelo interminável, ele propõe uma "saída pelo alto", que é justamente a gnose. Isto já foi visto minuciosamente no estudo do Prof. Orlando Fedeli sobre a gnose de René Guénon e Olavo de Carvalho, citado na apresentação e na bibliografia de nosso trabalho. Para não sermos redundantes, e sem sairmos do assunto e do livro O Jardim das Aflições, limitemo-nos a mencionar que Olavo de Carvalho aponta como "núcleo de resistência" às forças destrutivas citadas acima justamente a escola declaradamente gnóstica de Frithjof Schuon, discípulo de Guénon:

"É ainda nos Estados Unidos que se encontra hoje o mais poderoso núcleo de resistência ao avanço do ateísmo oficial - o que abrange desde as comunidadas que se organizam contra a lei do aborto até a elite espiritual concentrada em torno de figuras como Seyyed Hossein Nasr - exilado iraniano -, Huston Smith, Victor Danner e outros, profundamente influenciada pelo pensamento de Frithjof Schuon, homem espiritual de primeiro plano e formulador do único método válido já concebido para a comparação e aproximação das religiões." (Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. edição, pág. 308, negritos nossos).

É particularmente curioso que o próprio Schuon se diga não só "gnóstico", como também "pneumático": "Quanto à Sophia perennis, trata-se do seguinte: há verdades inatas no Espírito humano, que apesar disso estão em certo sentido enterradas nas profundezas do 'Coração' - no puro Intelecto - e são acessíveis apenas a quem for espiritualmente contemplativo; e essas são as verdades metafísicas fundamentais. O acesso a elas é possuído pelo 'gnóstico', 'pneumático' ou 'teósofo', - no sentido original e não sectário destes termos, - e o acesso a elas era também possuído pelos 'filósofos' no sentido real e ainda inocente da palavra: por exemplo, Pitágoras, Platão e em grande parte também Aristóteles." (Schuon, "Sophia perennis": Studies in Comparative Religion; apud Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, State University of New York Press, 1989, pág. 88, nota 18, negritos nossos).

E, como o Prof. Orlando Fedeli observa ao comentar esse trecho: "Embora Schuon, citado por Nasr, tivesse dito que a palavra gnóstico era aí empregada não no sentido sectário, mas no sentido 'inocente', o que ele, Schuon, afirma sobre o 'Coração' ou 'Intelecto', como instrumento do Conhecimento, demonstra que ele emprega o termo exatamente como a Gnose tradicional empregava esses termos: intelecto era, para a Gnose, a partícula divina no homemo, o Atma, o pneuma divino, o éon." (Prof. Orlando Fedeli, A Gnose "Tradicionalista" de René Guénon e Olavo de Carvalho, Cap. II-6, <http://www.montfort.org.br/cadernos/guenon.html>).

Diga-se de passagem que também Mendo Castro Henriques, em sua tese sobre Eric Voegelin (ambos autores, aliás, nos quais os termos "gnose" e "gnosticismo" são usados indistintamente, designando sempre a heresia dos primeiros séculos e suas muitas variantes), resume de passagem as posições de Guénon e Schuon e, apesar das ambigüidades e limitações de uma síntese tão compacta quanto a que faz, afirma com segurança que os guénonianos são variantes dos hereges gnósticos:

"A ligação entre gnose e modernidade é também recusada nas especulações de autores como Fritjof Schuon, René Guénon, Raymond Abellio e Julius Evola, representantes notórios de posições que se reclamam de uma tradição expressa pelo termo árabe ma'arifah e pelo sânscrito jnana e equivalente à gnose ocidental. Estes termos designam o conhecimento esotérico revelado numa suposta seqüência providencial de mensageiros divinos que, de Buda a Maomé, manifestariam o verbo de forma cada vez mais pura, até ao limite de compreensão do intelecto humano; em particular, até conferir aos eleitos o poder de compreender o

absoluto. Tais autores são gnósticos de uma variante que não admite a dogmatização da transcendência." (HENRIQUES 1994, pp. 136-7, negritos nossos).

Resumindo: na mesma ocasião em que, nominalmente, diz condenar a gnose, enquanto na verdade condena apenas o panteísmo, Olavo de Carvalho adota exatamente a divisão gnóstica clássica da humanidade - entre hílicos, psíquicos e pneumáticos - para interpretar a história como uma luta entre o que podemos chamar de "panteísmo sensual" (hílicos) e "panteísmo racionalista" (psíquicos), aos quais Olavo de Carvalho opõe a saída da gnose (pneumáticos).

E tudo isso sob o olhar de aprovação dos gnósticos que o próprio Olavo de Carvalho chama de "gurus": René Guénon e Eric Voegelin.

In Iesu et Mariae, Felipe Coelho. São Paulo, na festa da Purificação de Nossa Senhora, 2 de fevereiro de 2002.

 

16. Bibliografia

Santo AGOSTINHO, A Cidade de Deus (Contra os Pagãos), Petrópolis: Editora Vozes, 1999, 4a. edição.

Prof. Orlando FEDELI, A Gnose "Tradicionalista" de René

Guénon e Olavo de Carvalho,

<http://www.montfort.org.br/cadernos/guenon.html>.

_________________, "Gnose: Religião Oculta da História", <http://www.montfort.org.br/veritas/gnose.html>.

_________________, Conceituação, Causas e Classificação das Utopias,

<http://www.montfort.org.br/cadernos/utopia1.html>.

David GORDON, "The Fallacies of Voegelian Antiliberalism", Fall 2000, <http://www.mises.org/misesreview_detail.asp? control=166>.

Mendo Castro HENRIQUES, A Filosofia Civil de Eric Voegelin, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1994.

Stephen A. HOELLER, "What is a Gnostic?",

<http://www.webcom.com/~gnosis/whatisgnostic.htm>. Hans JONAS, The Gnostic Religion, Beacon Press, Boston, 1991, 2ª edição.

Bill McCLAIN, "Advice for those who want to read Eric Voegelin", <http://www.salamander.com/~wmcclain/evadvice.html>.

___________, "Dictionary of Voegelian Terminology", <http://www.salamander.com/~wmcclain/ev-dictionary.html>.

Stephen McKNIGHT, Gnosticism and Modernity: Voegelin's

Reconsiderations in 1976,

<http://pro.harvard.edu/papers/091/091007McKnightSt.pdf>.

Joshua MITCHELL, Voegelin and the Scandal of Luther:

Philosophy, Faith, and the Modern Age, 2000,

<http://www.artsci.lsu.edu/voegelin/EVS/PANEL5.html>.

Edward MOORE, "Gnosticism", verbete da Internet

Encyclopedia of Philosophy,

<http://www.utm.edu/research/iep/g/gnostic.htm>.

São PIO X, Pascendi Dominici Gregis

Stefan ROSSBACH, 'Gnosis' in Eric Voegelin's Philosophy, July 2001.

<http://pro.harvard.edu/papers/091/091007RossbachSt.pdf>.

Robert A. SEGAL, "Gnosticism, Ancient and Modern", Christian Century, November 1995.

<http://www2.gol.com/users/coynerhm/gnosticism_ancient_and_modern.htm>.

Eric VOEGELIN, Autobiographical Reflections, Louisiana State University Press, 1989.

_____________, A Nova Ciência da Política, Brasília, Universidade de Brasília, 1982, 2ª ed.

_____________, Plato, University of Missouri Press, 2000.

_____________, Order and History vol. V: In Search of Order, The Collected Works of Eric Voegelin, Vol. XI, Ed. Ellis Sandoz, University of Missouri Press, 2000.  

(Nota: Foram citadas também outras obras do autor, a partir de seus estudiosos.)

D.P. WALKER, Spiritual & Demonic Magic - from Ficino to Campanella, The Pennsylvania State University Press, 2000.



 


    Para citar este texto:
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MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/voegelin/
Online, 23/04/2024 às 07:43:34h