O Papa

Bento XVI contra o ecumenismo do Concílio Vaticano II
Orlando Fedeli
O sociólogo Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra, publicou na Folha de São Paulo de domingo, 8 de Outubro de 2.006 , um artigo sob o título A Exatidão do Erro, no qual ele faz interessantes considerações à recente “Aula” do Papa em Regensbug (Ratisbona). [Abaixo reproduzimos o artigo de Boaventura Sousa Santos, para documentar nosso texto].
Sousa Santos considera que o Papa, propositalmente, provocou os maometanos ao fazer a citação do Imperador Manoel II, Paleólogo, que tanta celeuma raivosa causou, porque queria deixar manifesta sua oposição ao ecumenismo do Concílio Vaticano II.
A tese é ousada e sem os matizes devidos, especialmente depois que o Vaticano publicou a “Aula” de Bento XVI, em Regensburg, com as notas prometidas.
E a nota 3, agora publicada, parece contrariar -- pelo menos em parte -- a explicação do sociólogo Sousa Santos.
Diz Bento XVI, nessa diplomática nota 3, agora dada a público, acrescentada evidentemente para acalmar a agitação frenética dos maometanos:

[3] Controvérsia VII 2c: Khoury, pp. 142-143; Förstel, vol.
I, VII. Dialog 1.5, pp. 240-241.
“Esta citação [do Imperador Manoel II sobre o maometismo] , infelizmente, foi tomada, no mundo muçulmano, como sendo a expressão de minha posição pessoal, suscitando assim uma compreensível indignação. Espero que o leitor de meu texto possa compreender imediatamente que essa frase não exprime a minha valorização pessoal do Corão, pelo qual tenho o respeito que é devido ao livro sagrado de uma grande religião. Citando o texto do Imperador Manuel II entendia eu pôr em evidência unicamente a relação essencial entre fé e razão. Sobre este ponto, estou de acordo com Manoel II, sem porém fazer minha a polêmica dele
(texto em italiano no final deste artigo http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20060912_university-regensburg_it.html ) (destaques nossos)
 
Claro que Sousa Santos poderia argumentar que essa nota,-- evidentemente diplomática --, tem escasso valor doutrinário. Tanto mais porque o Papa reitera que mantém a acusação de Manoel II Paleólogo dizendo: “estou de acordo com Manoel II”. E Bento XVI confirma que, citando o Imperador, quis apenas salientar a relação entre Fé e razão, que o Corão não respeitaria.
Sousa Santos poderia dizer também que a frase do Papa de que tem o respeito que é devido ao livro sagrado de uma grande religião” é também ela sibilinamente diplomática, pois que o Papa não esclarece qual é o respeito que se pode ter por esse livro de uma religião grande, como é o islamismo.
De qualquer modo, essa nota, ainda que sibilinamente diplomática, adotou um tom ecumênico que contraria a tese central do sociólogo lusitano.
A tese é ousada, dissemos, e, por isso, se nos permita citar as frases do articulista para não deixar dúvida sobre o seu pensamento.
Escreveu o articulista:

O papa falou como papa e escolheu o contexto que lhe permitisse romper mais claramente com a doutrina papal até agora vigente”. 
“Essa doutrina, vinda do Concílio Vaticano II e continuada pelo Papa João Paulo II, era a do ecumenismo e do diálogo entre religiões, no pressuposto de que todas são um caminho para Deus e têm, por isso, de ser tratadas com igual respeito, mesmo que cada uma reclame uma relação privilegiada com a Revelação. O ecumenismo obrigava a considerar como desvios ou adulterações o uso da violência como arma de afirmação religiosa”. 
“Essa posição é desde há muito questionada pelo atual papa, para quem a superioridade da religião cristã está na sua capacidade única de compatibilizar a fé e a razão: agir irracionalmente contradiz a natureza de Deus, uma verdade perene que decorre da filiação do Cristianismo à filosofia grega. Ao contrário, no Islã o serviço de Deus está para além da racionalidade. Por isso, a violência islâmica não é um desvio, antes é inerente ao Islã, o que faz do Islamismo uma religião inferior”. (Boaventura de Sousa Santos, artigo "A Exatidão do Erro", in Folha de São Paulo, 8 de Setembro de 2005).
 
Dissemos “ousada” a tese do autor, porque, embora Bento XVI tenha condenado o chamado “espírito do concílio”; embora ele tenha permitido ao Instituto Pontifício do Bom Pastor, que ele há pouco aprovou, fazer críticas à letra do Concílio Vaticano II; embora ainda o Cardeal Ratzinger tenha se oposto à Jornada ecumênica de Assis, patrocinada pelo Papa João Paulo II, a participação dele em outros eventos ecumênicos, e sua defesa do ecumenismo, -- agora mesmo posta a lume por essa nota 3, mesmo que diplomática -- parecem contrariar a tese do autor.
Vejamos, então, como o autor desenvolve sua posição.
 
Santos Sousa afirma que o Papa, com esse discurso, teve vários objetivos:
 
1o – Apoiar Bush contra os árabes.
O primeiro e o mais óbvio é o de apor o selo do Vaticano na guerra de Bush contra o Islã e na guerra de civilizações mais vasta que a fundamenta”.

2o – “O segundo objetivo é muito mais vasto. Ao defender uma relação privilegiada entre o Cristianismo e a racionalidade grega, o papa visa estabelecer o Cristianismo como a única religião moderna”.
 
Este seria o objetivo anti ecumênico e anti Concílio Vaticano II de Bento XVI.
 
O Papa visaria “(...) fazer uma crítica radical a um dos pilares da modernidade: o secularismo. “O papa questiona a distinção entre o espaço público e o espaço privado, e acha "irracional" que a religião tenha sido relegada para o espaço privado. Dessa "irracionalidade" decorrerão todas as outras que atormentam as sociedades contemporâneas. Daí a urgência de trazer a mensagem cristã para a vida pública, para a educação e a saúde, para a política e a cultura”.
      
Ainda que a crítica do Papa Bento XVI ao irracionalismo do Islã ajude indiretamente Bush e os israelenses, porque se pode ver nela uma acusação implícita à irracionalidade do terrorismo árabe, parece-nos claro que o segundo objetivo estava muito mais presente à mente do Papa do que a guerra no Oriente Médio.
Bento XVI tem atacado o relativismo e o secularismo, que tem tiranizado especialmente o Ocidente. No discurso de Regensburg, ele atacou explicitamente as deshelenizações que romperam a harmonia entre a Fé e a razão.
O Papa atribuiu a culpa inicial dessa destruição da harmonia entre a Fé e a Razão a Duns Scoto, o primeiro a atacar a escolástica tomista. Mostrou, depois, que essa destruição cresceu com o misticismo irracional do Luteranismo – e nisso há, de fato, uma oposição ao ecumenismo do Concílio Vaticano II – para continuar pela crítica a Kant e seu subjetivismo pai de todo relativismo atual. O Papa atacou então o irracionalismo do Iluminismo racionalista.
Mais ainda, o Papa Bento XVI condenou, então, dois dos pilares do Modernismo: a teologia Liberal dos séculos XIX e XX, e o Método histórico-crítico da exegese de Harnack, que foram adotados por Loisy e pela heresia modernista. E Bento XVI não titubeou em confessar que ele mesmo foi educado nessas duas bases teológicas modernistas que, agora, ele condena.
Ora, a Teologia Liberal e o Método histórico-crítico são duas das colunas mestras dos Neo modernistas que fizeram o Concílio  Vaticano II, e que fundamentaram todas as novidades desse Concílio auto demolidor da Igreja e da Fé.
Condenando a Teologia Liberal dos séculos XIX e XX e o Método histórico-crítico, Bento XVI está dinamitando os pilares do Concílio Vaticano II.
Surpresa seria não adviessem, com o tempo, as conseqüências normais desse ato: a anulação e a condenação do Concílio Vaticano II por causa de seus erros e de tudo o que há nele de ambíguo.
Nesse sentido, Sousa Santos teria razão ao dizer que Bento XVI rompeu com o Concílio Vaticano II.
Mas, indagaria alguém, a nota 3 de Bento XVI, à sua “Aula“ de Regensburg, não afirma um respeito ecumênico ao Islã e ao Corão?
Devagar com o andor, pois mesmo nessa nota diplomática não se nega que o Islã tem uma Fé em contradição com a razão, e Bento XVI reafirma: “estou de acordo com Manoel II”.
A ousada tese de Sousa Santos é compartilhada pelos comentários dos modernistas mais radicais, que viram, no discurso do Papa na Universidade de Regensbug, uma bofetada no Vaticano II – como disse o padre modernista Falsini: “uno schiaffo al Vaticano due”; ou ainda, como disse a agência modernista Adista “o sepultamento do Vaticano II”.
Desse modo, sociólogos modernos e teólogos modernistas concordaram na análise do discurso de Bento XVI em Regensburg. O tempo mostrará ao certo ou a exatidão do erro dessa análise, ou a exatidão dela.  
Tomara que o sociólogo de Coimbra e os modernistas furiosos tenham razão.
A fúria deles é tão agradável!
E quanto tempo teremos que aguardar?
Parece que bem pouco tempo. Dizem que em Outubro e Novembro ver-se-ão mais claramente os horizontes...
Veremos. Rezemos. Brademos: Viva o Papa!


São Paulo, 9 de Outubro de 2.005.
Orlando Fedeli
 
 
  
"A Exatidão do Erro"
 Boaventura de Sousa Santos
  
 
O comentário no Ocidente ao discurso do papa alinhou-se pelas seguintes idéias: não foi um discurso do papa, foi um discurso do professor; talvez o papa tenha cometido um erro ao escolher a citação do Imperador de Bizâncio, mas isso não justifica as violentas reações no mundo islâmico; o enfoque central do discurso foi a relação entre a razão e a fé, e a crítica do moderno secularismo ocidental.
Por que razão nenhum destes argumentos é convincente? O papa falou como papa e escolheu o contexto que lhe permitisse romper mais claramente com a doutrina papal até agora vigente.
Essa doutrina, vinda do Concílio Vaticano II e continuada pelo Papa João Paulo II, era a do ecumenismo e do diálogo entre religiões, no pressuposto de que todas são um caminho para Deus e têm, por isso, de ser tratadas com igual respeito, mesmo que cada uma reclame uma relação privilegiada com a Revelação. O ecumenismo obrigava a considerar como desvios ou adulterações o uso da violência como arma de afirmação religiosa.
Essa posição é desde há muito questionada pelo atual papa, para quem a superioridade da religião cristã está na sua capacidade única de compatibilizar a fé e a razão: agir irracionalmente contradiz a natureza de Deus, uma verdade perene que decorre da filiação do Cristianismo na filosofia grega. Ao contrário, no Islã o serviço de Deus está para além da racionalidade. Por isso, a violência islâmica não é um desvio, antes é inerente ao Islã, o que faz do Islamismo uma religião inferior.
Essa doutrina está bem documentada na sua condenação dos teólogos mais avançados no diálogo ecumênico, na sua recusa em designar o Islã como uma religião de paz, na sua posição contrária à entrada da Turquia na União Européia, dada a incompatibilidade essencial entre Islamismo e Cristianismo e ainda na sua convicção de que o Islã é incompatível com a democracia.
É, pois, claro que o papa não cometeu um erro. Foi exato no modo como formulou a sua provocação. Aliás, se o seu discurso pretendesse ser uma lição de teologia, ela seria de péssima qualidade. Porque não referiu o contexto da conversa entre o imperador e o persa e ocultou o passado beligerante e cruzadista do primeiro? Porque não citou outras opiniões contemporâneas totalmente contrárias à que preferiu? Porque não referiu que em qualquer das religiões abraâmicas há preceitos que podem justificar o recurso à violência, assim tendo sucedido em nome de todas elas?
Perante estas interrogações, é necessário analisar o discurso do papa pelos seus reais objetivos políticos. O primeiro e o mais óbvio é o de apor o selo do Vaticano na guerra de Bush contra o Islã e na guerra de civilizações mais vasta que a fundamenta.
Tal como João Paulo II alinhara o Vaticano com os EUA na luta contra o comunismo, Bento XVI pretende o mesmo alinhamento, agora na luta contra o Islamismo. Em seu entender, perante o avanço do Islã a resposta tem de ser mais dura, e precisa do poder temporal para se concretizar. Tal como aconteceu com as Cruzadas ou a Inquisição. Trata-se, pois, de uma teologia de vencedores, uma teologia teo-conservadora, paralela à política neoconservadora.
O segundo objetivo é muito mais vasto. Ao defender uma relação privilegiada entre o Cristianismo e a racionalidade grega, o papa visa estabelecer o Cristianismo como a única religião moderna. Só no âmbito dela é possível conceber "atos irracionais" (a perseguição dos judeus, as guerras religiosas, a violenta evangelização dos índios) como desvios ou exceções, por mais recorrentes que sejam. Por outro lado, visa fazer uma crítica radical a um dos pilares da modernidade: o secularismo. O papa questiona a distinção entre o espaço público e o espaço privado, e acha "irracional" que a religião tenha sido relegada para o espaço privado. Dessa "irracionalidade" decorrerão todas as outras que atormentam as sociedades contemporâneas. Daí a urgência de trazer a mensagem cristã para a vida pública, para a educação e a saúde, para a política e a cultura.        
O perigo desta crítica do secularismo está em que ela coincide com a posição dos clérigos islâmicos mais extremistas para quem, em vez de modernizar o Islã, há que islamizar a modernidade. Os opostos tocam-se, e não se tocam para dialogarem, senão para se confrontarem.
A irracionalidade deste choque reside nas concepções estreitas de racionalidade de que se parte. De um lado, uma racionalidade que transforma a fé numa crença racional ocidental; do outro, uma racionalidade que transforma a razão na manifestação transparente da intensidade da fé islâmica.
A luta contra estes extremismos é mais urgente do que nunca, pois sabemos que eles foram no passado os incubadores de guerras e genocídios devastadores. Mas pode o Ocidente lutar contra o extremismo do Oriente do mesmo passo em que reforça o seu?
 
Boaventura de Sousa Santos, 65, sociólogo , é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal)

Fonte: Folha de São Paulo, Domingo, 8 de Outubro de 2006,  p. 3.
(destaques nossos)


 [3]
Controversia VII 2c: Khoury, pp. 142-143; Förstel, vol. I, VII. Dialog 1.5, pp. 240-241. Questa citazione, nel mondo musulmano, è stata presa purtroppo come espressione  della mia posizione personale, suscitando così una comprensibile indignazione. Spero che il lettore del mio testo possa capire immediatamente che questa frase non esprime la mia valutazione personale di fronte al Corano, verso il quale ho il rispetto che è dovuto al libro sacro di una grande religione. Citando il testo dell'imperatore Manuele II intendevo unicamente evidenziare il rapporto essenziale tra fede e ragione. In questo punto sono d'accordo con Manuele II, senza però far mia la sua polemica. 

    Para citar este texto:
"Bento XVI contra o ecumenismo do Concílio Vaticano II"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/papa/bento_xvi_cvii/
Online, 28/03/2024 às 19:21:35h